Passando um verniz no inferno: The Bear, por Christopher Storer

Você já assistiu as duas temporadas da série The Bear, de Christopher Stores? Eu já vi, e gostaria de ter vivido uma vida em que isso não me tivesse acontecido, quero dizer, em que coisas melhores me fossem possíveis.

Dito isso, ao finalizar a série me senti compensado por decepções do início da experiência. O último quarto da série, ou seja, a metade final da segunda temporada –episódios de 6 a 10– foi bem melhor de assistir do que o resto.

Começamos ambientados em Chicago que, como toda cidade grande, funciona como mais uma filial da Babilônia, com muito caos e tristeza, do jeito que essa raça de masoquistas gosta. A série conta a história de pessoas bem habituadas com essa realidade, e pretende nos transmitir o magnetismo desse sofrimento na forma de uma animação pela participação nesse caos. Esta é a mesma animação que enganou a muitos, mas que não enganava o autor do Eclesiastes, que identificou a velha vaidade da escravidão sob o sol, e o correr atrás do vento. Ao menos a série não esconde o sofrimento, e isso até o fim, embora passe boa parte do tempo tentando embelezar essa realidade, talvez justificar ou legitimar. Como é aliás a função do Bispo no Sistema da Besta, função esta desempenhada por muitas produtoras de cultura de massas. The Bear parece ser apenas mais um trabalho de passar verniz no inferno para torná-lo mais palatável, mais charmoso, cool.

Nosso personagem principal é o cozinheiro Carmen, que assumiu o restaurante que era de seu irmão após o falecimento do mesmo. Ele sai da sua realidade de cozinheiro profissional acostumado com um trabalho de altíssimo nível, e entra num cenário completamente oposto, uma bagunça total. Ao mesmo tempo em que tenta lidar com essa situação, vive o seu drama pessoal, ligado ao falecido irmão e outras questões.

As pessoas mais profissionais têm excelentes idéias, mas, como diria Peter Drucker, “a cultura come a estratégia no café-da-manhã“. Existe muita resistência dos adeptos do que eles chamam de “sistema”, e essa tensão entre a conservação e a mudança é um dos temas principais da série. Há um elemento de valorização da funcionalidade, ou seja, toda realidade humana que não se refira à participação colaborativa na engrenagem civilizacional é indiretamente rebaixada pela valorização da vida funcional e integrada. O ser humano que não produz e não busca a melhoria é inferior. O drama da série apresenta a dificuldade de servir a um mundo maluco, mas sempre legitima essa busca. Ao menos a série mostra realmente o custo disso em sofrimento humano. Os idealizadores de sonhos são realizadores de pesadêlos.

Há um tema na série, que é o do progresso de uma geração para a próxima. Dá a impressão de que a humanidade pode melhorar conforme os filhos tentarem corrigir os erros dos pais. Até certo ponto sou um crente nisso, principalmente quando o progresso material permite um progresso moral que antes era inviável, como já pude explicar em outras ocasiões (libertação histórica dos escravos, das mulheres e finalmente dos filhos).

Reparei que o personagem (ou o ator?) tem uma tatuagem no braço esquerdo que todo mundo diz que é o número 773, supostamente o código da área onde fica o restaurante em Chicago. Mas esses “7” estão meio esquisitos, me pareceram o número “2” de ponta-cabeça, se invertermos para 322, esse simbolismo ficaria bem mais interessante (número usado pela Skull & Bones para representar a queda do homem no Gênesis).

Em determinado momento da série, já na segunda temporada, temos um breve diálogo que vou transcrever aqui para mostrar a que grau de clareza chega a propaganda do masoquismo. É uma cena de uma conversa entre Carmen e sua namorada, Claire. Ele comenta a escolha dela pela carreira de medicina.

Carmen: “Você deve amar. Principalmente por ser tão horrível e péssimo.

Claire: “E um restaurante não é horrível e péssimo?

Carmen: “Claro que é.

Claire: “Você deve amar.

Carmen: “Com certeza.

Esse é o tipo de testemunho Moriquendi que ninguém percebe que recebe porque repara em mil outras coisas que acontecem na cena, os atores, a fotografia, isso para não falar da música que torna tudo bem mais leve e aceitável, uma brincadeira sem grandes consequências e seriedades. É um jeito de dizer claramente algo e ao mesmo tempo afirmar que isso não deve ser levado a sério. É aquela situação em que a responsabilidade nunca pode ser cobrada, como quando pedimos satisfação por um posicionamento de uma pessoa e ela responde: “era brincadeira”. É o que esse tipo de cena faz, aliás, é uma prática extremamente comum no show business: tornar idéias e valores aceitáveis sem assumir responsabilidade, dentro da pura liberdade artística. Certamente é um dos meios mais fáceis de disseminar o câncer espiritual do testemunho das Trevas.

Em outra cena temos um diálogo interessante entre a irmã de Carmen, Natalie, e um empregado do restaurante. Ela está grávida de alguns meses.

Natalie: “Só fico pensando em como vai ser trazer uma criança para este mundo infernal.”

Empregado: “Parece bom.”

Natalie: “Parece mesmo.”

É a mesma coisa. Um testemunho horrível embalado na brincadeira, com uma atmosfera amena, muito fluída, uma música que nos conduz sentimentos contraditórios com o que está sendo dito. E é assim que se cria ao mesmo tempo uma dissonância cognitiva nas massas, e a anuência espiritual ao mal, a partir do momento em que as pessoas validam o que estão assistindo por não ter condição de resistir ou protestar contra aquela bela embalagem mentirosa onde a coisa ruim foi apresentada. A arte é uma forma de magia, de encantamento, por esta razão: é o poder humano de mentir, de gerar a imagem da verdade para enganar a si mesmo e ao próximo.

O maior engodo consiste em escancarar a verdade e ao mesmo tempo convencer as pessoas à odiá-la e a preferir a mentira. O melhor (ou menos pior) personagem da série, o tio de Carmen, em determinado momento responde à pergunta de sua sobrinha grávida sobre o que faria de diferente sobre os filhos que teve. Ele responde com muita serenidade: “não os teria“. Depois ele atenua isso e dá a resposta politicamente correta, é claro. Mas a série está muito perto da justiça artística à realidade da condição humana, algo que só é possível porque esta representação não ameaça o Sistema da Besta, já que a maioria dos seres humanos preferirá se apegar às suas ancestrais ilusões, como sempre.

Boa parte da série se resume a um ciclo de Euforia-Caos-Cansaço-Depressão-Euforia. Os personagens se animam com suas idéias e melhores perspectivas, e em seguida se chocam contra uma realidade massacrante que os deprimem e os forçam a buscar novas possibilidades animadoras, reiniciando o ciclo.

É só lá pelo Episódio 6 da segunda temporada que a série atinge um nível superior, ao apresentar o trauma familiar causado nos filhos de uma mãe louca, uma provável origem de boa parte dos males vividos por eles. Esta senhora em determinado momento diz, num grande estado de desequilíbrio psíquico e emocional: “eu faço as coisas bonitas para todos, e ninguém faz nada bonito para mim“. Isto é: não só ela não amou e não esperou apenas amor, como esperou ser reconhecida e recompensada por atos de poder, mesmo que seja um soft power venusiano. O episódio da ceia de Natal escancara o inferno de muitas realidades familiares: um monte de gente bem alimentada, vestida, abrigada e ingrata, incapaz de viver na leveza da Graça, querendo tirar satisfações de Deus e uns dos outros. É algo horrível com uma mais horrível ainda semelhança com a vida real. Mas isso é arte boa, ao representar a condição da vida humana como ela é.

Mas isso não salva a série. Um lema que Carmen aprendeu em sua carreira e leva para o seu restaurante é o “every second counts“. É uma expressão tão típica da escravidão neste mundo que poderia ter saído da boca do próprio Faraó, e tem também conotações espirituais no sentido do Pacto com a Morte.

Em suma, The Bear deve ser popular por representar bem a realidade humana e gerar identificação na audiência, mas faz isso ao mesmo tempo em que legitima o status quo e leva à uma conclusão trágica sobre a vida humana, gerando danos espirituais nas almas desavisadas. Não é de todo ruim por ser uma representação fiel e sem analgésicos, e terminou de um modo que me agradou, uma solução um tanto monadofílica, com cada personagem tendo que assumir a sua situação concreta de individualidade, sem respostas coletivas. Tomara que não façam outra temporada e deixem isso acabar assim. Não fico triste por Carmen ser vítima da sua obsessão profissional (o que o afasta de Claire no fim), porque se isto indiretamente o impedir de multiplicar os males da Terra, termina por ser razão para uma alegria maior, ao menos a quem buscar o Discernimento.

Notas (de 0 a 10):

Valor EMD

Hipótese: P&A 2,0 (Influência Demoníaca)

M. Maior – Gratidão/Soberba2
M. Maior – Obediência/Rebelião5
M. Menor – Perdão/Julgamento4
M. Menor – Libertação/Sadismo4
M. Primeira – Liberdade/Masoquismo1
Ataques Avari-Moriquendi1
Testemunho ES-Calaquendi1
Nota EMD2,5

Valor Espiritual

Humildade/Presunção 5
Presença/Idolatria (constante culto do sucesso funcional)2
Louvor/Sedução-PcM (tentação do sucesso profissional)3
Paixão/Terror-PcI (Carmen preso à mãe louca e ao irmão suicida)4
Soberania/Gnosticismo5
Vigilância/Ingenuidade (ninguém tem a mínima idéia de que vive na Babilônia)1
Discernimento/Psiquismo (os traumas definem as crenças)1
Nota Espiritual3,0

Cultural

Inspiração (moral, estética, etc.)3
Informação5
Diversão2
Nota Cultural3,3

Nota Final: 2,9 (IMDB 8,6)

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