Do cálculo de tudo à razão de nada: Eu Robô, por Isaac Asimov

Tudo é Mente, ou Números, falando pitagoricamente, no livro Eu Robô de Isaac Asimov.

Não estaríamos tão mal assim se o problema fosse apenas a revisitação das idéias da filosofia pré-socrática. Infelizmente, porém, Asimov, não satisfeito com os problemas da humanidade passada, nos leva numa viagem em direção aos problemas da humanidade futura.

Com o progresso tecnológico o ser humano tende a expandir esta experiência que já faz parte do nosso presente: a vitória sobre as causas materiais e eficientes em detrimento da derrota sobre as formais e finais. Conseguimos viver cada vez mais e melhor, e com cada vez menos sentido. A robótica prometida por Asimov não chega a nenhuma outra conclusão. A humanidade ganhará o poder de calcular tudo ao mesmo tempo em que não vai entender a razão de mais nada. Digo “razão” naquele sentido mais profundo da vida humana: o telos, a finalidade, o motivo.

Não existe vida espiritual na ficção deste autor, embora saibamos melhor que tudo tem sentido espiritual, inclusive a recusa de dar sentido espiritual às coisas. Nosso guia que representa a sabedoria em Eu Robô é a psicóloga roboticista Susan Calvin. Eis um exemplo da sua grande sabedoria:

Houve um tempo em que o homem enfrentou o universo sozinho e sem amigos. A humanidade não está mais sozinha.”

Até mesmo aqueles pagãos pré-socráticos chamavam o universo de Cosmos, indicando a confiança numa ordem superior, e entendendo o mundo como o seu lar, e não como uma realidade a ser enfrentada. Asimov obviamente começa já declarando a sua premissa gnóstica. Se existe uma Maldição, esta não deve ser aceita de forma nenhuma: deve ser enfrentada, derrotada e conquistada. Tudo se resume a isso. O velho mito prometéico que apela para o espírito de rebelião dentro do homem.

Do mesmo modo a suposta solidão do ser humano também apresenta não só o total desprezo pela Presença, mas até mesmo a ingenuidade com relação a qualquer outra dimensão que não seja esta que o ser humano habita. Não há Deus, não há anjos nem demônios, e tudo está morto, exceto esse verdadeiro milagre que veio do Caos chamado ser humano.

A questão da criação de seres artificiais é muito empregada na ficção, e costuma apresentar dilemas e dicotomias falsas, principalmente no questionamento dos supostos direitos e dignidades das criações humanas em comparação com seus criadores. Ora, sem Deus o homem se torna o falso deus de si mesmo, o que torna essa questão indiferente. Não faz diferença o ser humano tratar os robôs como seus iguais ou como seus semelhantes: seu suposto valor autônomo, sem um desígnio divino que determine sua origem e seu destino, já não existe, e dessa perspectiva para baixo tudo pode fazer sentido porque nada faz sentido de fato, porque é uma pura arbitrariedade.

Não há nenhum problema com os robôs. O problema está no criador dos robôs: se este está desligado de Deus, sua vida não fará sentido nenhum, seja com mais ou menos robôs, ou com maior ou menor igualdade entre si.

Se o ser humano é eminentemente psíquico –e este é o ser que decreta, gnosticamente, que tudo é feito de Números ou de Mente–, ele pode criar seres mais ou menos psíquicos á sua imagem e semelhança que sejam portadores da sua mesma dignidade, já que esta foi reduzida à capacidade psíquica.

Qual é, afinal, a diferença essencial entre seres humanos e robôs?

Só pode ser uma diferença determinada por uma razão transcendente, por uma origem humana baseada na própria substância divina, com o propósito monádico de um destino eterno. Essa diferença é total e absoluta. Mas se, kantianamente, toda a transcendência já foi abolida do pensamento humano, daí para baixo tudo se resume ao pó, seja mais ou menos qualificado no seu próprio plano de insignificância.

Asimov quer que sintamos grandes simpatias pelos robôs, e certa reserva ou até mesmo desgosto com os nossos semelhantes. Um traço obviamente gnóstico.

Ao que parece este autor foi o responsável, nesta obra, pela invenção das chamadas Três Leis da Robótica, isto é, da programação universal para quaisquer robôs portadores de cérebros positrônicos, a saber:

Lei 1- Jamais causar dano a seres humanos ou, por omissão, deixar que sofram danos;

Lei 2- Obedecer as instruções humanas, exceto quanto violar a Lei 1;

Lei 3- Fazer o que for preciso para se preservar, exceto quando violar as Leis 1 e 2.

Asimov parece ter predileção pela análise lógica, pela dedução, assim como pela indução e pela investigação em geral. Seus contos exploram as diferentes possibilidades de experiência com a aplicação das Três Leis em cenários mais ou menos exóticos.

Toda essa experiência lógica e psicológica traz o interesse imediato da própria experiência ética da vida humana, que é espelhada no experimento fictício com os robôs. É uma ficção científica, mas não passa de ser, como sempre ocorre em qualquer literatura, um reflexo da realidade humana. No fim das contas o ser humano está sempre falando ou de Deus, ou de si mesmo.

Lembro-me, no sentido da idolatria denunciada no livro Eclesiástico, da passagem que diz: “Diante de um rosto aparece uma imagem. Do impuro que se pode tirar de puro? Da mentira que verdade se pode tirar?” Essas são boas perguntas a se fazer a Asimov e a todos os futurologistas que se animam com as promessas desse progresso. O que vai sair disso tudo, senão a mesma vaidade debaixo do sol, e o correr atrás do vento?

O que o estímulo à invenção dos robôs parece fazer é incentivar a multiplicação da entropia deste mundo, e a perversão da genuína criatividade monádica, como se estes seres humanos escravos da Maldição e do Poder tirassem inspiração das suas potências espirituais para gerar uma maior dissipação de suas forças e maior decadência, ao invés de se concentrar no ideal eterno, como no caso da criação dos Periannath, por exemplo. Toda essa saga de emancipação serve apenas para a prorrogação das limitações decretadas ao ser humano decaído: escassez, inviolabilidade das causas, e irreversibilidade dos efeitos. Pretendendo se tornar mais livre, este ser apenas expande a sua prisão.

A Dra. Susan Calvin nos dá outro exemplo da inevitável equiparação do pó ao pó, desde que o ser humano crie autômatos programados com seus ideais psíquicos: “Não se pode diferenciar entre um robô e os melhores seres humanos.” Claro que não, Dra. Susan. Se as máquinas foram programadas para realizar o maior ideal humano possível, o máximo desempenho moral que os seres humanos podem atingir é o de se igualar às suas próprias criações. Isto é uma falácia chamada petitio principii, Petição de Princípio. A perfeição ideal das máquinas é uma premissa, e não uma conclusão, como pode parecer.

Isso é psiquismo puro, a profecia de Protágoras: o homem como medida de todas as coisas.

Em determinado momento se coloca a dúvida sobre se um robô poderia ser eleito para um cargo público, como se essa fosse uma elevada questão moral e política.

Não é: sem uma responsabilidade diante de uma Autoridade transcendente, que diferença faz se o homem governa a si mesmo diretamente, ou através dos robôs programados para emular o seu psiquismo? A questão é vazia.

O que não quer dizer que Asimov não tenha uma visão política condenável, principalmente ao idealizar, como bom discípulo (consciente ou não) de Kant, o governo global sob o comando de um Coordenador Mundial.

Dos capítulos 1 a 8 Asimov nos apresenta casos variados de robôs que são quase sempre simpáticos, inocentes ou vítimas. Ele próprio diz numa carta anexada à edição que quis mudar a perspectiva do robô como vilão, ou monstro. Trabalhou fiel ao seu desejo, sem dúvida.

O que eu não gostei muito foi que ele esperou chegar ao último Capítulo 9, “O conflito evitável“, para declarar suas idéias mais importantes, as quais se fossem expostas desde o início talvez nos permitiria gastar menos energia tentando decifrar qual é a visão de mundo do autor.

Vejamos algumas citações relevantes:

No final das contas a Máquina é apenas uma ferramenta, que pode ajudar a humanidade a progredir mais rápido ao tirar de suas costas o peso dos cálculos e das interpretações. A tarefa do cérebro humano continua sendo a que sempre foi: descobrir novos dados a ser analisados e inventar novos conceitos a ser testados. É uma pena que a Sociedade pela Humanidade não entenda isso. Eles seriam contra a matemática ou contra a arte de escrever se tivessem vivido na época oportuna. Esses reacionários da Sociedade alegam que a Máquina rouba a alma do homem. Eu noto que os homens capazes ainda são poucos em nossa sociedade. Nós ainda precisamos do homem que é inteligente o bastante para pensar nas perguntas apropriadas a se fazer. Talvez, se pudéssemos encontrar homens assim em número suficiente, essas alterações [com ineficiências] com as quais o senhor (O Coordenador Mundial) se preocupa não ocorreriam.”

Essa passagem me fez refletir sobre várias coisas.

Em primeiro lugar, por que temos essa obsessão com o progresso tecnológico? Me parece validar aquela tese, sobre a qual falei no meu último livro, do perenialismo transhumanista que vai na direção da fantasia deus ex machina, ou seja, na construção de um artefato que permita a encarnação dos demônios para uma existência “imortal”.

Em segundo lugar, em nenhum momento o progresso é explicado por uma causa final que o justifique. O que quer dizer que o progresso é o próprio ideal de si mesmo: a humanidade teria que progredir para… progredir mais, indefinidamente. Obviamente não há Teodicéia num mundo de ateus. Mas, curiosamente, não há também nenhuma Antropodicéia. Essa questão filosófica parece não ter passado nem perto de uma reflexão.

Por fim, o que a burocracia tecnocrática quer não são seres humanos, mas justamente máquinas na forma humana, incapazes de verdadeira independência. A “Sociedade pela Humanidade”, herdeira dos “Fundamentalistas”, tem razão sobre o roubo da alma humana no ponto crucial que diferencia a forma da nossa espécie: o livre-arbítrio. Porém, a liberdade não pode ser inserida num cálculo, e portanto não pode ser ensinada para um computador, por mais avançado que este seja. Todo cálculo é uma razão sobre proporções determinadas. Mas a liberdade é justamente a singularidade de um ser capaz de produzir efeitos indeterminados por quaisquer elementos exteriores. Isso não quer dizer que a vontade livre é irracional. Antes, a liberdade é supraracional, transracional, ou metaracional, já que se dirige aos fins mais excelentes que justificam o emprego de qualquer racionalidade secundária. Isto é: as causas finais e formais justificam as materiais e eficientes. Jamais um robô vai compreender isso. Ele não pode subir a esse nível de entendimento. Mas é claro que o ser humano pode se rebaixar ao nível do raciocínio robótico, como parece ser o caso nesta passagem que declara o desejo por seres humanos mais úteis por serem justamente mais maquinais.

Asimov quer que sejamos todos mais burros no processo mesmo de crer que estamos ficando mais inteligentes.

Outra passagem: “Se a fé dos homens nas Máquinas pode ser destruída a ponto de elas serem abandonadas, teremos a lei da selva de novo.” Isso é propaganda de totalitarismo tecnocrático. E é puro Gnosticismo. A idéia de fé nas máquinas remete diretamente a fé na Razão, na Ciência e no Conhecimento, como se esses fossem os elementos salvíficos da experiência humana.

Em certa parte há a condenação do pessoal reacionário, novamente: “Homens que acreditam ser fortes o bastante para decidir por conta própria o que é melhor para si.” Ora, eles acreditam ser fortes, ou antes acreditam serem livres? Isso é Gnose pura. O conhecimento como força obriga os ignorantes a obedecerem aos sábios, mesmo que não creiam nessa autoridade. A realidade da liberdade humana é totalmente desprezada. Só sobra a força pura, e os ignorantes são os mais fracos, portanto incapazes de decidir o que é melhor para si mesmos.

Asimov ainda diz, por um personagem: “Desobedecer às análises da Máquina é deixar de seguir o caminho ideal.”

Ideal de quem? Da máquina? Do inventor da Máquina? De uma Razão Pura representada por uma intelligentsia humana totalmente fiel ao ideal?

Essa é uma mistura perfeita de psiquismo com gnosticismo e com ingenuidade. E equivale ao suicídio moral da humanidade: é o próprio desejo de morrer na forma de uma filosofia pseudoracionalista.

Vejam ainda: “Só as Máquinas sabem [todas as respostas], e elas estão seguindo nessa direção e levando-nos consigo.” … “Todos os conflitos se tornaram por fim evitáveis. Apenas as Máquinas são, de agora em diante, inevitáveis!

Não precisamos mais do Espírito Santo.

Temos o Logos encarnado na forma de máquina para nos salvar!

Seria cômico, se não fosse trágico.

E há repercussões esotéricas, quando por exemplo Susan Calvin diz, no fim: “Acompanhei tudo desde o início, quando os pobres robôs não podiam falar, até o fim, quando eles se colocaram entre a humanidade e a destruição.”

Talvez essa destruição seja aquela que os Illuminati desejam adiar indefinidamente, ou seja, a do próprio Fim do Mundo. De algum modo essa pode ser uma fantasia demoníaca: a de garantir a sua sobrevivência através da perenidade do Annuit Coeptis, mediante o emprego de um sistema que faça o ser humano prescindir totalmente de uma redenção verdadeira.

Para encerrar, o próprio Asimov, em sua carta, parece não querer esconder muito o seu gnosticismo, como quando diz: “Não conseguiria acreditar que, se o conhecimento oferecesse perigo, a solução seria a ignorância. Sempre me pareceu que a solução tinha de ser a sabedoria.”

Isto quer dizer: se o conhecimento nos traz um mal, a solução é redobrar a aposta num conhecimento melhor, uma sabedoria mais perfeita, como se essa não pudesse trazer um mal pior ainda, como provou o caso de Salomão, ídolo gnóstico e Illuminati.

Aliás, o testemunho de Asimov não contém um óbvio tertium non datur, a falácia do terceiro excluso?

Não estamos presos a escolha da sabedoria ou da ignorância, já que a ignorância assumida toma a forma da virtude moral da Humildade. Solução que aliás era a preferida de David, aquele ungido que agradou a Deus mais que seu filho, o “sábio”.

Para Asimov, ao menos nesta obra, não existe vida espiritual, e não existe liberdade humana, existe somente uma triste série de cálculos que levam do nada ao lugar nenhum.

Tudo está muito bem calculado e significa exatamente nada.

Notas (de 0 a 10):

Valor EMD: 1,0

Hipótese: P&A

M. Maior – Gratidão/Soberba0
M. Maior – Obediência/Rebelião5
M. Menor – Perdão/Julgamento5
M. Menor – Libertação/Sadismo3
M. Primeira – Liberdade/Masoquismo0
Ataques Avari-Moriquendi0
Testemunho ES-Calaquendi0
Nota EMD1,8

Valor Espiritual:

Humildade/Presunção0
Presença/Idolatria 0
Louvor/Sedução 5
Paixão/Terror 5
Soberania/Gnosticismo0
Vigilância/Ingenuidade0
Discernimento/Psiquismo 0
Nota Espiritual1,4

Cultural

Inspiração (moral, estética, etc.)1
Informação1
Diversão3
Nota Cultural1,7

Nota Final: 1,6

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