Monadologia, livro por Gottfried Wilhelm LEIBNIZ

Depois de várias horas de trabalho numa tentativa de fazer uma leitura comentada do livro Monadologia, de Leibniz, em vídeos para o meu Canal do Youtube, resolvi desistir dessa idéia e fazer uma apresentação mais simples neste texto.

A influência de Leibniz sobre o meu pensamento é enorme, e pude verificar recentemente que é até maior do que eu mesmo já estimava. Ocorreu então, naturalmente, que na tentativa de expôr as idéias leibnizianas no que elas podem contribuir ao meu próprio sistema eu acabei por abrir uma rede de significados complexíssima que daria tanto trabalho quanto tentar refazer toda a minha própria obra em alguns poucos vídeos. Era impraticável. Dado, como sou, a digressões muito vastas e múltiplas, a coisa toda logo se tornou impossível para o propósito em foco, que era apenas o de fazer uma leitura para incluir o filósofo alemão no rol do meu Livro das Tendências.

Tendo finalmente desistido daquele empreendimento hercúleo, resolvi portanto fazer uma exposição a mais simples possível, e que ainda fizesse justiça ao verdadeiro monumento intelectual que é a Monadologia.

Comecemos por considerar que Leibniz não é infalível e nem perfeito. Não tem a teologia sagrada de um Apóstolo Paulo, e nem mesmo em sua filosofia pode ser completo o suficiente para nos fazer dispensar o estudo do platonismo, do aristotelismo, ou das luzes de Agostinho, Plotino, Tomás de Aquino ou Duns Scot, para citar apenas alguns.

No que tem de mais fraco, sucumbe ao Racionalismo mecanicista que era o vício da sua época, não se permitindo pensar a sua própria Metafísica com a liberdade total que lhe seria mais conveniente. Mas possui o vigor e a firmeza de manter alta a visão transcendente, não deixando que a avaliação das coisas sob o ponto de vista moderno atrapalhasse as considerações superiores, lembrando assim a prudência do conceito de Analogia tão caro aos Escolásticos, ao qual certamente pôde honrar muito mais do que a média dos seus contemporâneos.

No seu otimismo, o autor também não dá conta do grau de comprometimento de algumas almas com a traição e usurpação do Amor de Deus, e do quanto isso repercutiu na experiência humana deste mundo em particular, e assim parece enxergar o ambiente humano com alguma ingenuidade, embora em nenhum ponto isso chegue a comprometer a consistência da sua visão de mundo.

Já do ponto de vista do gnosticismo tipicamente filosófico, Leibniz também não escapa de alguns problemas comuns: a consideração da necessidade de alguma alteridade num sentido negativo para a evidência do positivo (embora de maneira tênue, como veremos), a hipótese da imortalidade da alma, e de que a natureza bondosa em Deus é secundária ao conhecimento do bem próprio à Criação. Mas em nenhum caso essas eventuais falhas representaram um elemento constitutivo da sua filosofia, ao menos nesta obra.

A maior vantagem da visão monadológica como ensinada por Leibniz consiste na recuperação da substância metafísica como o sujeito real de toda experiência possível, resgatando a necessária Unidade por trás da experiência manifestada da Multiplicidade. Por outro lado, com a consideração da realidade moral das mônadas livres e racionais, Leibniz também retorna ao tema da individuação diante de Deus como finalidade da alma humana. Juntas, essas soluções já sugerem o que eu concebi como a forma da vida paradisíaca pela noção da criatividade monádica.

Ainda, a visão monadológica da realidade parece diminuir consideravelmente a importância da ciência da Física moderna, no que esta se incumbiu de explicar a realidade como totalidade, tornando mais fácil a admissão das hipóteses de simulação e holograma pela função analógica da manifestação da Multiplicidade na forma das percepções das mônadas.

Leibniz foi, afinal, um filósofo no sentido pleno da palavra, um metafísico generalista capaz de enxergar a experiência humana na sua unidade, e buscando do mesmo modo entender a coerência da unidade do próprio mundo. Quando especializava o seu pensamento, isso era feito com a intenção do enriquecimento da visão mais generosa e ampla possível.

Vejamos algumas passagens desta obra, que aliás é uma coleção de textos, começando por “A Monadologia, ou princípios da filosofia“:

Aqui temos o postulado da necessidade do simples como anterior para a manifestação posterior do complexo, bem como a referência clara à ação divina de produção ex nihil e de extinção total, por criação e aniquilação, em contraste com a complexidade das formações e corrupções dos compostos. É desta observação que derivamos, por exemplo, a distância total que existe entre o corpo humano preternatural ou paradisíaco produzido simpliciter (Corpos de Graça e de Glória, respectivamente) mantido na plenitude pela ação exclusiva da Graça, com relação ao corpo humano natural produzido secundum quid (Corpos de Queda) submetido ao Princípio de Geração e Corrupção.

Nesta sequência temos que se as mônadas não podem sofrer alternação por força de elementos exteriores, como elas experimentam tanto a multiplicidade quanto o movimento, devem haver princípios internos que dão origem a essa relação do simples com o que se lhe contrasta, e estes são os que Leibniz chama de Percepção e Apetição. Isto quer dizer que as mônadas experimentam qualquer universo como uma variação da Percepção do reflexo do seu próprio ser, movida sempre pela Apetição.

O sentido disto para a vida espiritual é o de que tudo o que é exterior à nossa alma pode ser considerado simulação ou holograma no sentido de que é uma manifestação da potência anímica concedida por Deus, de modo que cada singularidade criada à imagem e semelhança de Deus tem como destino reconhecer que a substância de todos os seres experimentados como reais é tão somente a manifestação da Glória divina ao nosso poder de testemunhá-la (a “apercepção”, na linguagem leibniziana). Seguindo nesta linha entendemos facilmente como a Vida Eterna é simples, sendo tão somente o resultado da liberação da potência das almas conforme a sua adesão voluntária à comunhão com o Espírito Santo. Tudo o que era bom sempre foi a experiência direta de Deus, e para sempre todo bem será uma experiência da qualidade de Deus.

Na diferença entre o limitado e o ilimitado, ou entre o finito e o infinito, já temos dada de imediato a finalidade amorosa de toda criação possível, sendo a Graça divina a fonte eminente dos seres e dos contingentes necessários à sua perfeição ou completude, restando a cada um o ser que é por si imperfeito por carência constitutiva da sua forma, como uma concavidade que atrai por sua natureza uma convexidade que lhe corresponde essencialmente. Todas as coisas foram feitas pelo e para o Amor de Deus, que constitui a sua origem e o seu destino, seu fundamento e a sua finalidade, e por isso o Criador diz de si mesmo: Eu Sou o Alfa e o Ômega.

Observamos em Leibniz um grande cuidado com a concepção de uma Harmonia Universal, reconhecendo a obra divina como o ordenamento de todos os seres para o melhor resultado estimado pela Sabedoria do Criador, o que o leva a exigir o reconhecimento de que de todos este seja o melhor universo possível.

É preciso esclarecer que as minhas hipóteses de Multiversos e do Omniverso não ficam excluídas, de vez que o que Leibniz exige é que um dado Universo de compossíveis seja constituído de tal forma que o seu conjunto seja o melhor possível dadas as combinações consideradas pelo entendimento divino deste particular. Cada Universo considerado em si mesmo deve possuir esse grau de perfeição interna. Quando, na minha avaliação das variações possíveis no conjunto das escolhas humanas de aceitação ou rejeição do Amor divino, que é a causa final de todas as realidades antes do Paraíso, elenquei para as almas humanas as variáveis dos Vanyar, Sindar, e Teleri, de modo que diferentes universos devessem comportar essas formas de escolha do Amor divino, considerei que cada um deles necessitasse do grau interno de perfeição exigido por Leibniz, razão mesma pela qual estas espécies de deliberações não poderiam coexistir coerentemente em uma mesma experiência espiritual (são incompossíveis). A existência do melhor é uma necessidade que não exclui a variância dos mundos paralelos que é determinada não pelo desejo divino, que de por si criaria apenas um único Universo Vanyar plenamente cheio de adesão ao seu Amor, mas pela imperfeição das mônadas livres que escolhem de forma precária, fazendo gerar uma mais conveniente pluralidade de mundos que comporte a realização da sua liberdade.

Que visão espetacular da Criação divina!

Pense-se no que isso representa à noção física de entanglement (“entrelaçamento”), para não falar de uma possível solução à teoria unificada que possa unir a gravitação universal da relatividade geral com o comportamento localizado das partículas na física quântica. Tudo sendo feito de mônadas que estão absolutamente conectadas por uma reflexividade ideal, não existe um caminho mais acessível –em uma palavra: mais fácil–, para a explicação da realidade?

Não sei dessas coisas que concernem à Física, mas na Filosofia Primeira, ou Teologia, observo a implicação imediata da particularidade da experiência de cada mônada cuja possibilidade tende ao infinito, mas que se concretiza na proximidade das Percepções mais distintas ou nítidas, estas movidas pelo princípio de Apetição que é o bonum próprio de cada ser, isto é, a realização do propósito amoroso determinado pela forma singular de cada mônada.

A nossa limitação não é uma carência de ser, mas é a própria forma da nossa felicidade, de modo que é bom para a criatura não ser Deus, porque assim se têm o Amor de Deus como causa da felicidade que se ajusta à nossa limitação. Bem-aventurança é, assim, a conformidade com o desígnio que já deu aos seres criados a medida total da sua realização na forma do seu limite constitutivo.

Temos aqui outro elemento condenável na visão de Leibniz, já que ele confunde o Criador de todas as coisas, sempre suficiente em si mesmo, e inclusive na sua natureza amorosa (como já pudemos demonstrar ao afirmar a necessidade da relação entre Pai e Filho no Ser de Deus), com um criador menor, deficiente e necessitado de um ser contingente que lhe conheça e admire para que se complete a sua dignidade divina. Deus tem sua Glória em si mesmo e de forma atual desde a Eternidade.

Em seguida temos outro texto, “Princípios da Natureza e da Graça“:

Metafísico por excelência, Leibniz verifica que não se pode jamais encontrar na série das causas materiais e eficientes a razão de qualquer ser no lugar do não-ser, sendo necessária uma causa externa a estas séries contingentes que torne atuais algumas possibilidades.

Do mesmo modo como Leibniz requer uma causa fundamental que tenha causado o primeiro dos movimentos, uma causa não causada alinhada com a visão aristotélica do Primeiro Motor Imóvel, ele também reconhece que nenhum movimento seria possível sem que tivesse uma finalidade que determinasse uma determinada escolha em função de outras alternativas, sendo essa razão o melhor em face do Bem, formalmente e finalísticamente alinhada com o Sumo Bem platônico. Como filósofo pleno, o alemão integra sua visão moderna com o ápice da metafísica antiga, sem deixar perder nenhum patamar anteriormente conquistado. Seu esforço de integração é notável e contrasta bastante com a ânsia de novidades e com o costume de ruptura da sua geração.

Reafirmando os entendimentos anteriores, Leibniz erra na afirmação da qualidade de “existência” atribuída a Deus, enquanto o existir só pode ser um predicado para os contingentes, mas de qualquer modo acerta na sua intenção geral de evidenciar a necessidade do Criador na justificativa da Criação, como aliás bem colocou o Apóstolo como um dever para qualquer cientista sério que avaliasse a natureza das coisas criadas e visse nesta a indicação da origem volitiva dos seres.

O autor nos introduz aos importantes conceitos de Nitidez e Confusão, embora como sempre não faça muita questão de determinar o detalhe dessas noções de maneira sistemática.

Por necessidade temos que cada mônada possui em potência o reflexo de todas as coisas, realizando porém esses reflexos em si mesma de modo particular, de acordo com a sua forma limitada de ser, movendo-se por Apetição de Percepção em Percepção para encontrar com maior nitidez os seres que correspondem ao seu maior bem, enquanto os demais mantém-se em algum grau inferior de confusão, embora a qualquer momento reconhecíveis por um interesse que justifique sua clareza, isto é, a partir de um movimento interior desde sua Apetição.

Em seguida temos outro texto chamado “Sistema Novo da Natureza e da Comunicação das Substâncias“:

Este é um testemunho que reflete, de certo modo, o drama da razão humana, e que prova inequivocamente o quanto é tola a presunção de que exista uma continuidade na forma de progresso do conhecimento. Leibniz está explicitamente indicando a trajetória que teve que percorrer, arriscando-se a violar os preceitos da ciência do seu tempo, para recuperar noções elementares já possuídas pelo pitagorismo, pelo platonismo, pelo aristotelismo, pelo neoplatonismo, pelo escolasticismo, etc.

Uma mente tão privilegiada quando a dele teve que passar por um percurso algo desafiador apenas para retomar pontos de vista que já eram possuídos anteriormente, não podendo se dar ao direito de receber uma herança pronta que lhe permitisse se dedicar exclusivamente ao avanço da pesquisa desde o ponto de evolução anteriormente alcançado. Se há uma força em ação no mundo do intelecto, é o da confusão e do esquecimento, contra o esclarecimento e a memória. Espiritualmente podemos atribuir isso a uma ação infernal designada para manutenção da situação humana de cativeiro. Algo que Leibniz não reconhece diretamente, mas que está implícito no enquadramento do seu pensamento na História da Filosofia, e mais ainda pelo desprezo moderno à sua própria contribuição.

Precisamos fazer algumas ressalvas importantes neste ponto.

A linguagem teológica de Leibniz não é muito apurada.

Para começar, nenhuma mônada, não importando a sua dignidade, possui um “raio de luz divina” dentro de si. Essa noção romperia com a ordem da Analogia. Também podemos dispensar a “punição dos maus” como uma confusão com a consequência do afastamento do Amor de Deus, uma necessidade para o arrependimento e para a conversão, e portanto uma dispensação graciosa para a felicidade até dos maus, o que culmina inclusive com a aniquilação daquelas mônadas que se obstinarem na rejeição do Amor, um ato também cheio de misericórdia até o fim. Deus não muda jamais, e sendo amoroso, seu Amor também não tem termo.

Por outro lado, ao afirmar que “tudo mais é feito para eles”, Leibniz acerta em cheio na causa final dos contingentes não livres quando estes são criados em qualquer mundo que seja habitado por mônadas livres (o que exclui os criados no Omniverso interior, ou anterior).

O que ele não afirma, mas podemos nós dizer partindo do seu raciocínio, é que toda a natureza criada para o exercício da liberdade das mônadas racionais e livres aguarda a sua redenção quando da completude da obra divina de santificação, ou separação. Significando isso que o termo da felicidade desses seres é constituído pelo resultado da liberdade das mônadas racionais. É claro que Leibniz não trabalha com a premissa de mundos ou realidades consecutivas, de modo que a exigência de que ele entendesse a progressão histórica em direção ao ideal divino seria excessiva da nossa parte.

Deste modo Leibniz expandiu a sua definição de mônada numa direção que eu entendo ser a mais conveniente, tendo eu mesmo proposto a minha definição como a de uma unidade metafísica, de ser capaz de ser sujeito e objeto da experiência do amor. Isso integra mais perfeitamente todos os seres com a sua origem na criatividade divina.

Mas observamos como o filósofo lutou contra outros tipos de problemas que lhe eram peculiares pela sua linha de pesquisa, isto é, a solução do problema da Dualidade cartesiana entre coisas extensas e coisas pensantes. Coerentemente, ele verificou que a solução do Materialismo não resolveria nada jamais, porque a definição da fisicalidade de qualquer corpo requer a sua potencial divisibilidade ao infinito. Tampouco, porém, o Racionalismo cartesiano propunha uma solução razoável, desde que o cogito nunca conseguiria alcançar o status de substância, possuindo apenas a reflexão (ou apercepção) posterior ao ser. Era preciso vencer essa aporia com o Idealismo que aceitava, com a recuperação da Metafísica, o conceito de substância simples, uma singularidade capaz de refletir o diverso, ou Unidade capaz de manifestar o Múltiplo. Leibniz reorganizou toda a bagunça.

À primeira vista este raciocínio pode parecer inconveniente por uma ilusão de complexidade, mas bem entendido o princípio criativo de Deus, a razão leva ao contrário, isto é, à observação da conveniência do esquema proposto como o mais simples possível, pensando-se na preservação da integridade das substâncias, o que é uma preocupação constante para Leibniz. Igualmente, seu pensamento está em perfeito acordo com a noção de criação analógica, e sua concordância com a idéia do ordenamento divino chega ao ponto de que o autor não teme o reconhecimento da concordância com um nome como o de Teresa de Ávila. Este é um espírito realmente livre de preconceitos, buscando a verdade onde a puder encontrar.

Convém ainda reconhecer o quanto Leibniz facilita o caminho, no seu pensamento monadológico, para as modernas teorias de simulação e holografia. De minha parte tenho uma alegação pronta para trabalhar, que trata da idéia da Mutualidade da Simulação, onde levaremos a hipótese ao ponto de reconhecer, junto com Leibniz e Teresa de Ávila, que só existe a Alma e Deus, e a realização ou a frustração do Amor conforme o desenvolvimento da liberdade da mônada racional. Quando tratei da idéia dos Periannath na vida paradisíaca, ou ainda antes, quando relatei que João ao amar Maria na verdade ama João na forma de Maria, foi a isso que quis me referir. Meu objetivo será mostrar, com a ajuda de Deus, que embora isso possa parecer levar à complexidade, realmente revela apenas a simplicidade das coisas divinas. Algo que já é confusamente intuído em algumas experiências místicas relatadas aqui ou ali, mas que podemos e devemos avançar com a busca do Discernimento, com a permissão de Deus.

Por fim convém notar a observação de que os corpos são feitos para os espíritos capazes de se associar a Deus e de o glorificar, o que evidencia a absurdidade da condenação ao inferno e invoca a razão divina de extinguir misericordiosamente os seres desinteressados do seu Amor por aniquilação, que é a “perdição” ou “segunda morte”.

Da imortalidade da alma já pude falar o suficiente, e é fácil entender como Leibniz cairia nessa forma de entendimento, embora não seja tão simples determinar as razões externas à sua lógica, como as psicológicas, para que ele tenha preferido fazer isso. O certo é que se quisesse ele poderia igualmente reconhecer a autoridade maior daquele poder primário que antes de tudo trouxe as mônadas à vida, e assim propor não que as almas sejam imortais em si mesmas, mas que o sejam por um desejo divino que a qualquer momento pode decidir diferentemente, quando o contrário for mais conveniente ao Amor divino.

É muito poderosa a invocação da separação total dos espíritos, com independência e autosuficiência, realizando aqui o filósofo a admissão metafísica da profecia divina de santificação ou separação, num sentido que animicamente implica na realização da individuação das singularidades. Esta é a Vida Eterna, e foi a isto que Jesus Cristo se referiu quando disse que o Reino de Deus está dentro de nós. Somente por esta razão, se não tivesse mesmo dito mais nada, Leibniz já deveria ser reconhecido como um príncipe entre os filósofos cristãos.

O que é incrível, e que evidencia certamente a Presença de Deus (muito mais apropriadamente do que a sua “existência”), é esse alinhamento nas manifestações das unidades em concurso com o Amor do Criador, como Leibniz mostrou. Essa é a Arte Suprema, a Arte Divina, e nada mais belo e mais sábio jamais será encontrado do que este ordenamento harmônico que o Criador providencia para levar todas as coisas à perfeição, justamente por computar na Providência todas as modificações por liberalidade das almas racionais, e todos os efeitos destas.

Em seguida temos outro texto, intitulado “Sobre a origem fundamental das coisas“:

Aqui Leibniz expõe com muita clareza e elegância o Princípio da Razão Suficiente que requer o reconhecimento da substância divina, ou do Criador, para justificar o ser de todos os contingentes. Parece que todo filósofo de fato, ou amante da sabedoria de fato, vai sempre circular em torno da necessidade de Deus e de seu Amor, como aqueles serafins que cantam ao redor do Trono e proclamam a respeito de Deus que é “Santo, Santo, Santo“.

Quem entenda isso como uma “repetição” ainda não entendeu a razão nem sequer da sua própria existência particular, quanto menos de todas as coisas criadas. Todas as alegrias particulares serão formas concretas de louvor e glorificação alinhadas com essa realidade espiritual elementar e subsidiária à toda a Criação.

Este é um excelente elogio da Humildade, o que é raro da parte de um filósofo e torna mais brilhante a sua contribuição ao legado moral da busca da verdade. É verdade que Leibniz já havia previsto essa realidade ao propor a intuição confusa de algumas das Percepções, mas aqui ele deixou marcada a limitação humana como constituição da nossa condição neste mundo. Evoca os ecos da sabedoria de Sócrates, e mesmo do platonismo do Mito da Caverna. Ao fim, a justificação de Deus, ou Teodicéia, sustenta-se suficientemente sobre este ponto, como apontou Agostinho contra o Paradoxo de Epicuro. Como pode uma criatura finita julgar seu Criador infinito? Não seria nem mesmo um milagre, pois é simplesmente impossível.

Aqui temos uma referência tênue à experiência do negativo para o proveito do positivo, embora isso não seja inequívoco. Penso que tratando-se de um filósofo ocupado com o rigor expressivo, a alternação não se refere a uma analogia entre bem e mal ou luz e trevas, mas entre diferenças num mesmo plano, ou entre espécies do mesmo gênero. Cabe-nos, generosamente, interpretar desta forma, embora ainda assim Leibniz seja limitado na sua visão teológica, como podemos constatar pelo que já pude expôr a respeito da garantia dos ânimos interiores por uma força espiritual concedida por Deus para a correção das subjetividades, de modo que o ser desgostoso e fadado a idiotice é este que ainda não tem aquela comunhão com o Espírito Santo que tornará toda e cada experiência única e perfeita na milésima vez, mesmo que em sequência direta, preservando a mesma qualidade como da primeira. E esta sim é a lei da alegria completa: o encontro da subjetividade plena com a objetividade perfeita, não restando hipótese que não seja ótima, e não sendo assim necessária a alternação dos estados e das circunstâncias, estando a alma mais livre do que nunca para escolher a sua próxima Percepção com total felicidade, e novamente a cada vez, para sempre.

Devo sustentar, contra a alegação de que Deus precisa do mal para fazer o que é bom, que a liberdade humana requer certa experiência do que está abaixo do ótimo e desejado pela Providência, para que possa então dirigir a sua escolha ao ideal desde a sua experiência, e isto é permitido em linha com o que Leibniz afirma, isto é, que há sempre um atalho garantido por Deus para a maior eficiência soteriológica do seu sistema, ou melhor, da sua obra de separação.

Temos em seguida a documentação da “Primeira carta a Nicolas Rémond“:

O que mais nos interessa aqui é o entendimento de que as realidades empíricas, inclusive o movimento dos corpos, são manifestações posteriores à substancialidade das mônadas, das quais toda multiplicidade experimentada subsiste apenas como manifestação para a realização da Percepção adequada a cada uma conforme o bem que corresponde ao objeto de sua Apetição.

Tudo o que entendemos como real e concreto, no sentido de material e físico, é secundário à substância verdadeira que não é composta, mas simples, e esse agregado manifestado atende apenas ao propósito do ser de cada singularidade, isto é, que Perceba o Múltiplo como reflexo da sua Unidade, e que se mova de uma Percepção a outra de acordo com o bem definido pela sua forma determinada de Apetição.

A relatividade das dimensões às quais atribuímos integridade, como Espaço e Tempo, é espantosa numa filosofia que antecedeu tanto aos avanços da Física futura. E mais espantosa ainda é a ignorância corrente dessa noção elementar, mesmo por várias mentes supostamente esclarecidas. Nem mesmo as observações mais óbvias da física quântica parecem ser suficientes para mostrar a eminência do Observador diante de uma realidade manifestada que é dócil ao seu ato cognitivo, exatamente como Leibniz postula que toda Multiplicidade é derivada e serviçal, por assim dizer, das Unidades.

Por isso é justo dizer que, embora no que concerne à infraestrutura da Criação tudo esteja de acordo para a alegada Confraternização das almas junto ao seu Criador, é mais fácil crer no fim deste mundo particular antes que a maior parte dos seres humanos possam reconhecer a simplicidade da obra divina que foi produzida para o seu próprio benefício.

Por fim, temos a “Segunda carta a Nicolas Rémond“:

Esta é a única passagem em toda a coleção de textos em que Leibniz dá a entender a sua plena ciência do estado circunstancialmente precário da situação humana, embora o faça de forma velada. Definitivamente, o dom de Vigilância não era o ponto mais forte do filósofo. Mas seus apontamentos são fortuitos: há uma necessidade especial de produzir discursos que evidenciem as realidades mais supremas, não porque estas sejam particularmente difíceis ou complexas, mas porque o entendimento humano está dissipado e distraído com os elementos do mundo. A “atenção” de que fala Leibniz não seria necessária se não fosse o estado decaído e amaldiçoado de um ser que herdou de seus pais a traição contra o Criador de todas as coisas. É claro que tal observação seria muito contraditória com o tom da obra do filósofo, mas não deixaria de concordar e explicar o fenômeno que ele observou. Justificando a necessidade de um esforço, Leibniz prova que a natureza humana não está mais inclinada ao reconhecimento da verdade, mas ao engano pelos erros que lhe fazem se perder.

Isso não deveria acontecer, se entendermos que com sua boa vontade Leibniz apenas precisa se defender daqueles que são incapazes de alcançar o nível das suas contemplações, como das de Platão ou Agostinho. Seria mais justo que o filósofo prestasse contas apenas àqueles que são realmente interessados na sua busca, isto é, que não tenham mais a necessidade de testar as imagens das coisas para verificar, finalmente, que há a garantia necessária do produtor delas. A discussão sobre a integridade geral das idéias considerando o mundo real que as manifesta particularmente é um objeto para almas limitadas, autocastradas na verdade, não dispostas ao reconhecimento da integridade formal da realidade. E isto se dá por uma razão moral, como bem o sabiam os filósofos que aprenderam com Sócrates, porque a transcendência das idéias em Deus só está disponível às almas que não tenham ainda a presunção da posse das mesmas na sua forma secundária e limitada de concepção, como produtos da racionalidade humana, por exemplo.

Qualquer teoria epistemológica de abstração opera no nível da causalidade eficiente do processo cognitivo, enquanto a tese da iluminação divina é requerida para dar assertividade a este processo por necessidade de acerto na intuição do que é tomado como autoevidente, a começar pelos princípios da própria Lógica. As luzes da razão natural são concedidas pela Graça divina sem a qual tudo o que o ser humano poderia fazer seria a quantificação dos dados da realidade, como um animal ou um computador, sem jamais aperceber-se da substância dos seres, e muito menos da necessidade das causas formal e final, para não falar da reflexão autoconsciente.

Leibniz, como um verdadeiro diplomata da filosofia, trouxe ao seu tratamento dos objetos intelectuais a arte da harmonia política da sua ocupação profissional, e em tudo buscou conciliar os antigos e os modernos, tentando realizar a sua visão de Comunidade de almas sob o governo divino da Cidade de Deus.

É um belo exemplo, mas entendo que teria sido mais eficaz se fosse mais assertivo no que diz respeito ao estado deste mundo em particular, o que talvez não estivesse tão disposto a fazer por ainda não poder trabalhar com níveis de profundidade secundários na sua Teodicéia.

Tal imperfeição é muito desculpável num filósofo que lidava com certa barbárie ao seu redor, seja da parte dos pensadores ou dos líderes religiosos. É muito compreensível que não quisesse entrar em confronto por estar um tanto isolado nos seus entendimentos sobre coisas sagradas que a humanidade que lhe cercava provavelmente não poderia aceitar. Na verdade, ainda hoje muitas dessas coisas são inaceitáveis, mas ao menos podemos contar com o benefício das luzes de um Leibniz para contribuir com o melhor entendimento da natureza da nossa realidade.

Nota Espiritual: 8,1

Humildade (representação ou intuição confusa das Percepções)9
Presença (todas as substâncias criadas existem diante da Substância primordial)10
Louvor (a felicidade das mônadas é a sua finalidade de reflexo da glória divina)10
Paixão (este deve ser o melhor mundo possível, ou outro mais necessário existiria)9
Soberania (racionalismo e mecanicismo, compensados por forte Metafísica)7
Vigilância6
Discernimento6
Nota Final8,1

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