Presta um bom serviço quem honra a própria natureza em fidelidade ao ideal que a formou, no lugar de prestar culto e pagar tributos a outras demandas estranhas a sua essência. É assim que nos aproximamos de Deus conforme estranhamos tudo no mundo que diminua a evidência da sua bondade e do seu governo justo, como o que deriva da história da usurpação humana contra o Trono.
Digo essas coisas em caráter de introdução dos meus leitores ao problema, bem típico, que ando enfrentando agora: o da escolha entre a fidelidade a uma forma de trabalho mais ideal e perfeita, porém menos funcional, ou outra mais adequada ao sistema do mundo humano, mas menos adequada para a chamada do próximo a um nível melhor de entendimento da realidade.
Pode-se pensar que esse tipo de questão é menor, ou até uma futilidade, mas só julga assim quem não possui mais (se é que já possuiu) o poder de apreciação da verdade das formas das coisas. Somos humanos e, portanto, capazes pela nossa liberdade para definir os mais sutis e efetivos caracteres das nossas ações, de modo a produzir influência em nós mesmos e nos outros de modos muito variados e ricos, com tanto mais poder quanto mais algumas almas queiram manter-se ignorantes do sentido daquilo que lhes impressiona. Quando dizemos, por exemplo, que alguém sofre de apeirokalia, estamos falando disso certamente: de uma profunda incapacidade de percepção de sutilezas. E pois bem, eis a questão mesma que se me apresenta: tratar de temas que requerem uma riqueza maior na sua lida da forma como merecem, ou na forma de um mundo que as despreza na sua sutileza.
Ora, se o mundo detesta o valor do detalhe das coisas, e o meu trabalho é o de “pescar homens”, ou seja, resgatar os que tiverem olhos e ouvidos para receberem um chamado para fora da confusão em que foram enfiados, como farei isso se me preocupar com a forma que mais agrada ao espírito do mundo de cujas garras mesmas eu desejo livrar aqueles irmãos que estão perdidos por força dele?
Usar do mundo sem se deixar escravizar por ele: essa é a lição do Apóstolo, e é uma grande tarefa que exige uma sabedoria que apenas Deus pode nos dar. É assim que uso a língua portuguesa, os computadores, a internet, etc. E devo ir além, abandonando a preocupação de agradar o mundo nas suas preferências que tendem à dissolução das almas, e produzindo o que tem maior valor de acordo com uma régua mais benéfica.
Essa medida mais positiva leva em conta a essência espiritual do ser humano: a sua liberdade. E a liberdade é a primeira coisa vendida no altar dos sucessos mundanos. Faz-se o que é preciso ser feito, e assim aos poucos o comprador da vitória vende dia a dia a sua integridade moral, a sua felicidade, a sua liberdade de ser quem é.
É preciso escolher entre ser feliz ou ter razão.
A felicidade é uma realidade interior que resulta da ação da paz de Deus no nosso coração, porque estamos reconciliados com Ele e conosco mesmos. Esse estado só pode resultar da fidelidade à verdade tal como ela está refletida na nossa consciência. A verdade plena pertence apenas a Deus, ela nunca é nossa posse plena, mas algum reflexo dela sempre toca nossa alma, e uma consciência limpa é a que resulta da fidelidade à verdade que está refletida no nosso interior.
O ser humano aprendeu a mentir dizendo assim para si mesmo: já que não tenho aquele conhecimento divino e perfeito das últimas realidades, não preciso ser fiel ao pouco que vejo, porque não posso garantir plenamente nem esse pouco, então vivo com certa permissão para mentir, fingir, presumir, etc. É o caminho do orgulho, da soberba, da presunção.
Muito mais prudente é o passo que vai na direção da humildade e que aprende a valorizar o pouco que tem em si: por menor que seja a verdade na qual posso acreditar, se isso que tenho é o suficiente para que eu viva bem de acordo com a minha consciência, sem traição ao que já percebo e intuo, devo viver honestamente em fidelidade a esse pouco, confiante de que o muito que me escapa de algum modo está de acordo com o pouco que me foi dado. Esse é o caminho da humildade.
Querer ter razão neste mundo é o equivalente a total prostituição moral e intelectual, isto é, à venda da nossa herança divina de seres livres e inteligentes em troca de qualquer sucesso temporário que nos é oferecido.
Digo “mundo” num sentido muito específico, aquele do bolchevismo espiritual que denunciei na minha Monadofilia. É a grande corrupção da carência de pertencimento, uma consequência da força da parte mais animalesca do nosso ser, que tende a querer se agrupar, imitar, seguir, etc., violando aquela natureza divina que exige de nós o contrário: a individuação, a separação, a consciência singular, etc.
Posso (e até devo) querer ter razão e sucesso num sentido particular, que é o de impressionar e influenciar o próximo no sentido do reconhecimento das coisas divinas, da bondade, da verdade, da beleza, da justiça, etc. A minha ação parte da unidade e chega na unidade: da unidade divina que me resgatou da confusão e atualizou minha própria unidade de ser criado com a grande honra da imagem e semelhança da unidade divina, realizo-me agindo para afetar o espírito de unidade do próximo, da outra alma humana que continua experimentando alguma confusão derivada da idolatria do mundo, de modo que essa unidade se reconheça na mesma honra da criação divina e deseje por si realizar sua unidade na unidade de Deus.
Por isso digo que não se trata de um quietismo, como pode parecer o elogio da vida interior a quem falte o discernimento dessas coisas. Não é nada disso. É uma ação forte, decisiva, cheia de desejo de sucesso, e por que não até mesmo cheia de ambição. Mas tudo do jeito certo, com a orientação certa, e isto quer dizer que devemos desprezar os modos do mundo, ainda que usemos dele e dos seus recursos para fazer avançar a ação mais conveniente para a nossa vida espiritual.
Como posso despertar o desejo de realização da liberdade individuante no próximo, se para isso eu usar dos meios que o mundo usa para a finalidade contrária, isto é, para a dispersão das almas na idolatria generalizada e no desprezo da Presença e das coisas de Deus?
Não devemos nos impressionar com números, embora queiramos que eles cresçam quando forem na direção correta. Tudo que é quantitativo deve ser qualificado, porque se não for não significa nada. É assim que vemos os grandes empreendimentos da cultura de massas, e até de certa alta cultura, todo esse testemunho produzido pelo Bispo do Sistema da Besta para afastar as pessoas da consciência do Criador. São massas e massas, mas dirigem-se ao vazio, e por isso anulam a força do seu agregado, porque vão se tornando um agregado sem substância verdadeira, conforme aproximam-se do nada que tanto amam, do vazio que é próprio dos seus ídolos.
Um de meus grandes interesses é o de transmitir precisamente esta mensagem: a de que cada um de nós deve se encorajar pela perdição do mundo, e não o contrário.
Sim! Encorajar e até aprender a gostar da dissolução mundana. Mas como?
Simples: quando vejo o mundo mergulhando no seu próprio caos, só posso enxergar essa realidade porque não participo dela. E se não participo, é porque Deus me separou na sua obra de salvação.
É assim que “estar sozinho” na verdade se revela o contrário disso: afastados da confusão do mundo, estamos com Deus, a melhor companhia por toda a Eternidade, e estamos em comunhão espiritual uns com os outros, por mais ilhados que nos sintamos.
Grandes tristezas são futilmente sentidas por almas desavisadas que se atormentam com o desejo de participar de um mundo no qual já sabem que não há esperança de nada verdadeiro, já que suas próprias consciências lhes serviram para denunciar as grandes e pequenas mentiras que sustentam esse espetáculo humano. Meu trabalho deve ser o de afetar esse tipo de alma com a mensagem correta, e é claro que não poderei fazer isso usando do mesmo espírito do mundo que deve ser denunciado.
Digo todas essas coisas com quase quatro décadas de experiência do mundo. Aprendi a desconfiar confiando, a desacreditar acreditando, a despertencer pertencendo, a desengajar engajando. Quis ser muitas coisas e uma a uma aprendi a desgostar de todas elas: de ser acadêmico, de ser rico, de ser religioso, de ser político, etc. Finalmente entendi que é melhor querer ser algo muito mais simples, porém mais misterioso: aquilo a que o Criador de todas as coisas me destinou, ser amado por Ele. E hoje, aqui e agora, isso significa ser uma testemunha, ou um pescador de almas, se formos imitar aqueles que quiseram imitar Jesus Cristo.
Essa pescaria é a arte de ser fiel e íntegro à verdade que denuncia o mundo e elogia a Deus. E por isso mesmo, quanto melhores formos nessa arte, mais o mundo nos odiará e desejará a nossa destruição. Ótimo: aquilo que sempre esteve oculto virá a ser revelado. Ou por acaso os espíritos imundos que me queriam acadêmico, rico, religioso ou político não me odiaram sempre por desprezar os seus prêmios mundanos, e não quiseram sempre me destruir? Isso sempre foi verdade. É isso que os perdidos do mundo devem entender, e o quanto antes: a função da sua perdição no mundo é o seu encontro em Deus. Feita a primeira parte, falta a segunda, a própria causa final desse desajuste.
Falo aos desajustados, despertencidos e disfuncionais, porque estes eu tenho certeza de que o mundo não conseguiu enganar, ou pelo menos não completamente. Porque não há ninguém que está mais perdido para Deus do que aquele que está totalmente achado no mundo, que se levanta sobre todos os seus irmãos com grande vaidade e orgulho. Por acaso vamos invejar esse destino miserável e infeliz? Não se inveje a suposta felicidade e alegria dos soberbos, porque tudo isso é falso e está para ser destruído num piscar de olhos. A esperança dos enaltecidos se revelará uma total farsa. Mas a nossa esperança no Eterno, quem a destruirá, se é o próprio Criador quem a constituiu? Quem chamará a Deus de mentiroso e infiel?
Um por um, tudo aos poucos, mantendo a fidelidade e a integridade, é assim que eu penso sobre o meu trabalho. O dia em que quisesse seguir as modas da maioria, seria o dia da minha perdição. E isso sempre foi impossível para mim, graças a Deus, porque o Altíssimo sempre me deu um ânimo de profundo desgosto com a falsidade do mundo, na verdade desde que eu sou criança. Sim, desde bem pequeno vejo como o meu semelhante é mentiroso, horripilantemente falso, farsante, e que a sua canalhice começa quando mente para si mesmo e vai se convencendo da virtude da sua safadeza. Tudo isso que o mundo faz é baseado na desconfiança de Deus. O ser humano que aprendeu a desconfiar do Criador é um aprendiz do primeiro ser que fez isso, sim, aquele coitado.
Eis a essência da mentira que provém da desconfiança: é uma escolha livre.
Quem desconfia do Amor de Deus se dá mil e uma razões que seriam supostamente suficientes para a justiça da sua posição, mas toda essa arquitetura de idéias está baseada numa única coluna, que é uma crença livre, a crença de que Deus não é bom. A mentira consiste no fingimento de que toda essa estrutura posterior não está baseada numa decisão totalmente livre e arbitrária, de vez que se a alma do desconfiante desejasse seriamente produzir as evidências no sentido inverso, da confiança no Amor de Deus, poderia fazer isso plenamente, e a grande safadeza consiste no fingimento de que isso não seria possível. Eis a arrogância e o orgulho no seu estado mais puro: a postura de sabedoria que tem um segredo escondido, aquele primeiro pecado oculto nas profundezas da alma, tido como esquecido para sempre, mas que será resgatado e evidenciado no fim de todas as coisas, para uma grande humilhação. Grande humilhação! Meu Deus, eu quero ver o Dia do seu Juízo, o dia do triunfo da justiça, mas mesmo assim meu coração tem medo.
Todas essas vergonhas terminarão escancaradas. O homem mentiroso não terá mais onde se esconder, o seu truque será desfeito num instante. Sua proeza teatral, seu fingimento todo, tudo isso desabará numa grande catástrofe, e sua realidade será exibida, como está escrito: está pobre, cego e nu.
Mas não quero falar dessa gente. Deixe que eles estão aproveitando o prêmio da sua traição no pouco de tempo que têm. Voltemos aos chamados de Deus, os que ainda não sabem mas querem ser pescados. A estes o melhor serviço deve honrar a sua vontade de fidelidade e integridade, e por isso deve ser um serviço fiel e íntegro, sem cultuar o espírito do mundo, nem lhe pagar tributos. Não é fácil fazer isso, se alguém quer fazer por si mesmo, mas Deus é mestre e seu guiamento é perfeito. Ele nos ensinará a arte da sua pescaria espiritual.