O privilégio da perspectiva cristã

Quem me dera ter nascido num mundo lotado de cristãos convictos do privilégio da sua perspectiva, anunciando o verdadeiro Evangelho em toda parte, glorificando o Altíssimo de maneira impecável e perfeita todos os dias.

Tenho que me contentar com o suficiente fato de que pelo menos algumas pessoas neste mundo ainda entendem o que é a Boa Notícia, ou pelo menos possuem algum desejo de entender, e que pela santa misericórdia do Eterno eu mesmo pude receber a liberdade de crer em Jesus Cristo.

Façamos as honras? Vamos novamente testemunhar?

Meu sonho é produzir o último discurso, a solução final da questão cristã. Claro que ainda não o posso, mas ao menos tenho a chance de treinar para quem sabe chegar lá um dia (embora já sabemos que não é matéria para esta vida).

Partimos da premissa do idealismo transcendental, de que a Unidade e o Bem são a forma do Ser (unum, verum et bonum convertuntur), e de que na sua infinitude o Bem só pode ser cogitado por uma mente finita como o melhor possível de acordo com a forma do limite de seu próprio intelecto e vontade em dado momento de uma jornada particular de busca e entendimento. Assim, a filosofia cristã é ao mesmo tempo universalidade e particularidade: dá o testemunho do processo do conhecer e desejar, testemunho que deve ser formulado com pretensão universalista, mas que reflete sempre uma experiência particular impossível de ser totalmente replicada em outra alma. O que é a filosofia cristã? É o amor pela verdade do Evangelho no coração de um filósofo cristão que testemunha, numa fórmula universal compreensível por analogia, a experiência da sua vida espiritual. A verdade em si nunca é relativa, ela é absoluta como posse do Intelecto divino, isto é, enquanto conhecimento que o Absoluto tem de si mesmo, ao qual cada alma criada terá o acesso parcial que corresponde à sua forma particular de ser. Isto quer dizer que a verdade em si mesma enquanto conteúdo da consciência divina é absoluta, mas enquanto conteúdo de consciência de um ser finito é relativa à sua forma limitada de ser. E não poderia ser de outra forma, porque só em Deus o objeto do Intelecto é pleno em ato. Daí que qualquer premissa realista é defeituosa por definição, querendo recompor a totalidade desde sua perspectiva limitada, partindo “de baixo para cima”, ou do Múltiplo ao Uno. O que honra a essência divina é o uso que o intelecto criado faz da sua potência para contemplar o que lhe transcende como fonte da compreensão do Ser, “de cima para baixo”, do ideal para o real, e do transcendente para o imanente. Esta forma de ciência é espiritual, superior, porque é uma contemplação amorosa (usando um termo caro ao Olavo), ou seja, é um ato íntegro que sintetiza Intelecto e Vontade, realizando a máxima da filosofia cristã do intellige ut credas, credas ut intelligas (“conhecer para crer, crer para conhecer”).

Dada essa premissa, que podemos afirmar?

O único e verdadeiro Deus, Criador de todas as coisas, sempre foi pleno em si, na substância do seu ser divino. Deus conheceu e amou, satisfeito no seu Ser uno e trino, sendo visão da visão e amor do amor, conhece e é conhecido, ama e é amado pela Eternidade.

Absoluto e imperturbável na sua felicidade, paz e alegria, desejou como manifestação gratuita da sua majestade criar outros seres que vivessem, na sua condição, algo da sua gloriosa felicidade.

Agora, isto pode ser difícil, mas é preciso compreender a inefabilidade do ser abscôndito de Deus, que é o único capaz de conhecer e amar a sua verdadeira natureza infinita. Como poderia então o Absoluto criar seres que pudessem viver, no seu aspecto próprio, limitado e finito, a sua glória divina que só Ele mesmo conhece e ama plenamente? Em suma, como o Santíssimo, o Santo dos Santos, infinitamente separado e transcendente a qualquer substância que não seja a sua própria, poderia imprimir a sua experiência de ser a outro ser?

Só poderia fazê-lo criando seres completamente separados e análogos ao seu ser, singularidades indeterminadas com a potência de realizar o análogo da operação divina em suas próprias substâncias limitadas, e portanto capazes de experimentar, pela recepção da pura luz divina no seu ser, um reflexo da Glória do Criador.

Criou, assim, seres à sua imagem e semelhança, capazes, por seu Intelecto e Vontade, de conhecê-lo e amá-lo no reflexo de suas próprias substâncias.

Cada uma dessas criaturas foi feita para a plenitude designada pela Sabedoria da Providência divina que, já conhecendo eternamente a forma final que limita e define cada criatura, tem um propósito próprio para a realização do ser de cada um que criou, propósito cuja experiência chamamos de Paraíso.

Deus sempre soube, por sua eterna Onisciência que domina a totalidade dos futuros contingentes, que nenhuma criatura poderia realizar plenamente a sua liberdade na condição paradisíaca sem que antes experimentasse o seu próprio arbítrio de aceitar o desígnio divino. Qualquer criatura alcançaria eventualmente um estado paradoxal que constituiria defeito na forma de uma dúvida sem conteúdo, por não poder conceber condição melhor do que aquela em que já estaria, mas por não poder afirmar que de fato e de direito escolheu esta realidade, por perfeita que fosse. Isto quer dizer que este nunca poderia ser um verdadeiro Paraíso, porque a liberdade nunca seria plenamente satisfeita. É preciso que cada criatura livre viva o Paraíso verdadeiro, sem mácula e perfeito, o que exige que cada um decida realizar essa possibilidade como puro arbítrio, o que é impossível ser escolhido no próprio usufruto dela, dado que todas as demais condições fora da própria indeterminação do ser ou não ser já estariam realizadas perfeitamente.

Se tudo é bom, como pode um ser livre decidir escolher o que é bom?

Por outro lado, se um ser livre não pode escolher o que é bom, não se pode dizer que a bondade é plena na sua experiência, por mais que tudo mais o seja, porque a liberdade da própria criatura não é boa para si mesma, já que não possui o conhecimento total de seu próprio arbítrio.

Em suma, a plenitude perfeita do Paraíso exige que a criatura conheça a sua própria liberdade de escolher o Bem divino, e esta escolha só pode ser feita em qualquer condição inferior à plenitude designada pela Providência, no exato grau exigido para que cada criatura não desista do Amor divino, e ao mesmo tempo que não sofra nenhuma imperfeição na sua liberdade interior de dizer “sim” ao Criador de modo impecável e eternamente pleno.

A criatura que vive eternamente no seu estado paradisíaco precisa possuir, nesta perfeição, a consciência plena da sua própria liberdade de ter escolhido esta vida.

A suprema arte divina, a mais bela e sábia de todas, é a Providência da circunstância exata que satisfaça o grau interior de perfeição que cada criatura requer para a aceitação livre do Amor divino, ou seja, a garantia da precisa condição necessária à atualização da fórmula interior de aceite de cada alma.

Conhecendo a sua liberdade interior de amar o Bem, a criatura se torna capaz finalmente de se separar daquelas trevas de que teve de se servir, por sua escolha e integral responsabilidade, para discernir a conveniência do Amor divino para si.

Ser ou não ser amado?

Eis a única questão real que se põe a cada criatura, requerendo de si a confiança naquilo que ainda não se experimenta, já que se experimentasse não poderia confiar e nem escolher o Bem com verdadeira liberdade.

Dito tudo isso, lembremos que são incontáveis os mundos, universos e multiversos possíveis em que Deus realiza a sua obra, dado que cada criatura foi feita, à sua imagem e semelhança, para possuir integralmente as próprias dimensões ilimitadas de ser. O que quer dizer que, substancialmente, são incontáveis as criaturas herdeiras da Glória divina e, portanto, são igualmente incontáveis os seus mundos e dimensões particulares, em potência.

Vivemos a experiência deste mundo particular no qual nascemos como se ele fosse substancial em si mesmo, mas qualquer ciência séria, física ou metafísica, deverá finalmente reconhecer, mais cedo ou mais tarde, a indeterminação de qualquer realidade per se sem a relação com aquele que a percebe, isto é, como diria Leibniz, que o real é a Percepção que a mônada tem de seu próprio reflexo.

Vencida essa questão, resta-nos considerar que há a experiência do comum e universal, isto é, da mutualidade, e esta é mais simplesmente explicável como mútua representação das mônadas sem janelas, atualizada pela luz divina em sincronia e simultaneidade, do que por uma muito mais complexa e problemática série causal que atribuiria realidade a qualquer ser que não seja a substância simples. É inútil fazer com mais aquilo que pode ser feito com menos (Ockham).

Pior: a atribuição de substância à realidade exterior à alma constitui idolatria por um declínio da forma pura da luz refletida na mônada para a atribuição de luminosidade própria ao seu reflexo, como se fosse presumido que a Lua cheia emitisse sua própria luz e não apenas refletisse a luz que recebe do Sol (exemplo histórico: considerar João Batista um “santo” e não enxergar nele apenas o reflexo da glória de Jesus Cristo). Esse erro de idolatria é a origem da parasitagem e usurpação do Amor divino, o culto gnóstico da mistura de Luz e Trevas como origem constitutiva da realidade.

Assim, a natureza daquilo que entendemos como “realidade” não se trata de Simulação ou Holograma, mas da operação divina de criação santificada que produz a mutualidade para que cada criatura possa escolher ser ou não ser amada por si, isto é, crer ou não na transcendência do Bem em face da realidade manifestada.

Em algum grau todas as criaturas na ante-sala do Paraíso deverão realizar a sua escolha de crença na pureza da luz transcendente de Deus, ou na falsidade da mistura de luz e trevas (isto é, entre o ser e o não-ser), de modo que algum mundo terá que ser sempre manifestado para que possa ser crido como ens proprium gerado pela mistura. Esta é, por exemplo, a razão do nosso nascimento neste mundo, ou melhor, da manifestação da representação do nascimento do “nosso corpo” neste mundo.

Por mais que uma teologia honesta alcance a realidade do Pecado Original, como por exemplo na idéia do Pacto Ouroboros, não podemos daí fazer a redução antinatalista, porque esta exclui o propósito da Providência divina, por desconfiar dele ou mesmo desprezá-lo totalmente, o que já constitui uma deliberação de quem tem mais crença na integridade da mistura do ser do que na da sua pureza (como se dá com os que adoram o Caos, o Nada, etc.).

Amar a Deus e ao próximo é amar a liberdade de Deus e também a do próximo: tanto a do Criador de permitir a manifestação da liberdade humana, quanto a de cada criatura de conhecer a sua própria liberdade, já que tudo isto é o próprio sentido da vida presente. O ódio contra essa liberdade é apenas uma fraqueza de fé, facilmente curável pela vida espiritual, mas impossível de se resolver no âmbito exclusivo do psiquismo.

Sobretudo, no espírito de amor ao próximo, devemos receber e cultivar a inteligência de respeitar a jornada individual de cada alma, já que somente o Criador conhece a medida própria da experiência necessária a cada uma para atingir a solução espiritual, bem como as potências particulares que devem ser nutridas para cada caso. Há uma fórmula precisa para cada alma, conhecida apenas pelo Altíssimo. Na nossa ignorância, só podemos respeitar e aceitar esse mistério. A obra de Deus se realiza num muito exato e apropriado PROCESSO, e a integridade desse ultrapassa todos os nossos tolos idealismos, mesmo que supostamente cheios da caridade cristã. Mas que caridade pode superar a confiança no triunfo do Bem?

Entendido tudo isso, o que nos cabe?

A quem ficar clara a necessidade espiritual da liberdade humana, resta terminar o movimento interior de escolha do Bem na própria vida interior, que é o Primeiro Mandamento de amar o Amor divino que livremente nos concedeu a promessa do Bem eterno, bem como o outro movimento interior de produzir o melhor testemunho possível, com ações e palavras, para que as outras almas sejam incentivadas a desejar e escolher a confiança no mesmo Bem, que é o Segundo Mandamento de amar ao próximo como a nós mesmos, isto é, desejando para o outro o melhor que podemos desejar para nós mesmos, que é uma vida cheia de fé, esperança e amor. Certos dons espirituais, quando esclarecidos e assumidos, podem auxiliar nesta jornada (o que já falamos na explicação das várias Libertações, do Realismo Responsável, e da contemplação da Mônada e dos Sete Dons particulares).

Esse é o Evangelho, a Boa Notícia, a verdadeira comida e a verdadeira bebida de que estão esfomeados e sedentos todos os seres humanos.

É o anúncio da Cruz, que é a morte da mentira.

E é o anúncio da Ressurreição, que é a vida da verdade.

Mas só podemos dar o que primeiro recebemos: daí que só pode dar o testemunho do Amor divino quem o recebeu em si.

Se existisse uma escola de filosofia cristã sobre a qual eu fosse o responsável, esse seria o seu mandato: a recepção e a doação do testemunho do Amor, que é o privilégio da perspectiva cristã.

Um testemunho que antes recebemos de Jesus Cristo, porque nisto consiste o Amor: em que não fomos nós que amamos, mas foi Deus quem nos amou primeiro.

Natsu 2024

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