Kant é um filósofo iluminista que trabalha na conciliação entre o racionalismo de Descartes e o empirismo de Hume. A verdade deve ser um fruto que vem tanto da Razão quanto da experiência.
Nascido em 22 de Abril de 1724 em Königsberg, Prússia Oriental, sua contribuição ao Aufklärung não pôde evitar a consolidação do hiato entre as futuras filosofias continental e analítica.
O filósofo prussiano abre a sua Crítica da Razão Pura citando Francis Bacon:
“Pedimos que os homens não o considerem [a Grande Restauração, ou renovação das ciências] uma opinião, mas um trabalho sério; e que estejam convencidos de que lutamos para assentar os fundamentos não de alguma seita ou opinião arbitrária, mas sim para a utilidade e o engrandecimento da humanidade.”
Esta é uma escolha curiosa de palavras. Nosso dever crítico é o de localizar e exprimir as premissas desse pensamento.
Como de qualquer outro, aliás. Talvez seja importante explicar isso aos meus alunos que ainda não tenham essa noção.
Entender algo é conhecer as suas causas.
Sócrates inaugurou a consciência disso quando inverteu a lógica sofística: ao invés de seguir adiante somando novos argumentos para levar a vítima à conclusão desejada, o que constitui uma ação de Poder sobre o outro, o desejo de dominar e escravizar com a imagem da verdade, um filósofo investiga na direção oposta, para trás, ao se questionar o que deveria ser verdade como premissa para que a idéia proposta seja verdadeira ela mesma, ou seja, uma ação que constitui um ato de Amor sobre o outro, o desejo de libertar da mentira e do engano.
Por isso se diz que um filósofo é um amante, porque ele exerce um ato amoroso, ama a Verdade e ama a liberdade do próximo de conhecê-la. E também por isso a filosofia cristã é uma idéia tão viável, porque é a prática, no âmbito intelectual, dos Mandamentos: amar a Deus e ao próximo, através do amor pela Verdade em si mesma, e através do amor pela libertação do próximo contra a escravidão da mentira.
Dada uma idéia, o entendimento deve buscar as suas causas e não os seus efeitos, por mais desejáveis que estes possam aparentemente ser. A corrupção provém da mentira que legitima uma idéia pelo desejo de alcançar a conclusão. A libertação faz o oposto. Danem-se os nossos interesses mesquinhos, a Verdade deve ser honrada, inclusive e principalmente contra os nossos desejos mais imediatos. Não quero saber dos efeitos do discurso. Quero saber das suas causas. O que as coisas significam? O que deve ser verdadeiro antes, para que uma idéia também o seja depois?
Na citação escolhida por Kant, Francis Bacon contrapõe, em primeiro lugar, a idéia de OPINIÃO com a de SERIEDADE, e em segundo lugar, as idéias de SEITA e OPINIÃO ARBITRÁRIA com as de UTILIDADE e ENGRANDECIMENTO DA HUMANIDADE.
Entender o que Francis Bacon disse, e portanto o que Kant subscreveu, requer entender o que significam essas contraposições.
Ora, comecemos com a seguinte questão: por que uma opinião não pode ser séria?
Se uma opinião é um tipo de idéia, o que torna uma idéia séria ou não séria, para que atribuamos seriedade ou não a ela?
Opinião, ou doxa, é uma imagem da verdade que substitui o conhecimento da mesma, enquanto Ciência, ou episteme, é o próprio conhecimento da verdade.
Evidentemente, quando se possui acesso ao que é verdadeiro, não é preciso e nem conveniente presumir o que de outro modo o seria. A quem sabe algo, presumir qualquer outra possibilidade a respeito do que é sabido significa o que se sabe, e portanto trair a si próprio. É claro que isso deve ser evitado.
O nosso problema é que a ignorância é tão fundamental e constitutiva da situação humana, que a capacidade de se possuir o conhecimento pleno e acabado sobre o que quer que seja termina por ser mais um ideal do que uma realidade. Justamente com certos objetos de abstração pura, como os dados pela geometria e pela matemática, nós alcançamos o grau de perfeição desse ideal, apenas para voltar nossa mente à realidade onde a nossa consciência não consegue atribuir o mesmo tipo de veracidade aos objetos da experiência sensível, mesmo quando possuímos o tipo de conhecimento técnico que nos permite dominar a natureza antes de compreendê-la.
Isto significa que a Opinião (doxa) existe, e deve existir necessariamente, para atribuir possibilidade (eikasia) ou verossimilhança (pistis) àquilo que ainda não se pode conhecer cientificamente (episteme) como mais provável (dianoia) ou mesmo como certo (noesis).
Por outro lado, o que é seriedade?
Seriedade é o tratamento digno que é merecido por uma pessoa, assunto ou coisa. Quer dizer respeitar, honrar, dignificar, etc. O contrário da seriedade é a leviandade, o jogo, a falsidade, etc.
Voltemos à questão, então: porque uma opinião não pode ser séria?
O que torna uma idéia séria ou não séria?
Uma idéia séria é aquela que honra o seu objeto ou assunto, enquanto uma idéia não séria é aquela que o trai com desrespeito.
Ora, honrar e respeitar é uma ação moral que implica ter o objeto como importante e sério.
Por outro lado, opinar é uma ação intelectual que produz uma imagem da verdade na ausência do conhecimento mais provável ou certo da mesma.
Por que uma idéia não pode, na ausência de um conhecimento mais provável ou certo do seu objeto, honrar e respeitá-lo mesmo assim?
A contradição não existe necessariamente, porque a ação moral e a ação intelectual se referem a gêneros diferentes de seres.
Moralmente, escolhemos respeitar ou não o objeto ao qual nos referimos.
Intelectualmente, porém, escolhemos produzir uma idéia que tem um tipo de credibilidade variável conforme possuamos ou não o conhecimento desejado.
Uma opinião pode honrar o seu objeto e tratá-lo seriamente, sem subir seu grau de entendimento ao nível da ciência, tão somente porque isso pode não ser possível dada a condição comum da ignorância humana.
Um assunto ou problema mantém indefinidamente o seu grau de seriedade, independentemente da ignorância daquele que o trata. É assim que sabemos que a guerra em Gaza ou a proliferação de armas nucleares são problemas sérios sobre os quais não há uma solução científica a respeito, mas muitas opiniões que devem ser sérias ao nível desses problemas.
É o que o artista faz com sua imaginação, é o que o político faz com a sua promessa de governo, é o que o crente faz com a sua fé, etc.
Um cientista pode e deve restringir as suas idéias, enquanto científicas, ao âmbito apenas do que pode ser dado como provável ou certo. Mas todos os demais seres humanos que NECESSITAM crer em algo antes de sabê-lo para simplesmente viverem as suas vidas não só podem como devem produzir uma opinião que busque ser a mais séria e responsável possível, dadas as limitações da condição humana e certos valores tidos como princípios gerais para todos os casos, como os que baseiam a moralidade comum.
Opiniões, portanto, não só podem ser sérias como devem ser.
A evidência disso está na realidade humana de cada dia onde, por exemplo, é totalmente comum e esperado a responsabilização moral de uma pessoa pela sua opinião. Se nenhuma opinião pudesse ser séria, nenhuma opinião poderia ser contestada seriamente, por exemplo, pela verificação das suas consequências e pela imputação de responsabilidade aos seus proponentes.
Pior ainda, a motivação por trás da Grande Restauração, ou renovação das ciências, é ela mesma uma opinião e e não uma certeza, dado que se fosse certo seria objeto de demonstração e não de apologia. Veremos isso com mais detalhe mais tarde ao tratar da segunda contraposição.
E para destruir de vez essa noção de contraposição entre opinião e seriedade, convém lembrar que o princípio de qualquer investigação científica é uma opinião inicial, que é tratada como hipótese sobre o verdadeiro, e portanto seriamente, para que se possa seguir para as próximas etapas do processo. Ainda mais, as premissas de qualquer investigação são tomadas como autoevidentes por um ato de crença, e não por uma exaustiva demonstração, do contrário o próprio progresso científico seria inviável. Acredita-se que tal e qual premissa é válida por ter sido eventualmente demonstrada como a mais provável, mas a qualquer momento um pesquisador pode revisar aquilo que se tinha como premissa de método, ao introduzir uma nova hipótese a respeito.
Com isso tudo temos que a primeira contrariedade sugerida por Francis Bacon, e subscrita por Kant, é uma figura de estilo e não um conceito rigoroso.
Ou seja, os nossos amigos aqui querem nos convencer de que são rigorosos no ato mesmo de nos provar que não o são, ao menos no uso mais ligeiro e corrido da linguagem, onde se assemelham aos demais pobres mortais que são cheios de opiniões.
O ideal de ciência é o desejo de libertação da opinião como um tipo inferior e indesejado de idéia.
Pois bem, esse ideal nunca foi realizado na existência humana, nem mesmo no âmbito da ciência, já que a certeza continua sendo extremamente restrita a objetos de pura abstração e o resto depende, no máximo, de opiniões mais qualificadas por diferentes graus de credibilidade. Isso chega ao ponto, com a Falseabilidade de Popper, da confissão de uma consciência da investigação científica como um método de se trocar opiniões menos sérias por outras mais sérias, mas que só podem continuar a ser defendidas exatamente porque podem ser contestadas, ou seja, porque não significam uma certeza. Fazer ciência, quem diria, é fazer opiniões sérias, marginalmente mais qualificadas, justamente aquilo que os iluministas queriam negar, ou seja, o que queriam negar aos outros mas não a si mesmos.
Se o ideal da libertação da opinião nunca foi realizado, isto quer dizer que não passa de um objeto de imaginação e crença nos corações e mentes dos homens. E essa é exatamente a imaginação e a crença do Gnosticismo, a vontade de se libertar da necessidade de crença através da Gnose.
Infelizmente para os gnósticos, isso nunca vai passar de um sonho e de uma farsa. É uma mentira. O Conhecimento pleno só é possível ao Ser pleno, que é Deus. E Deus só tem um. Qualquer ser finito terá, diante do pleno possível que só um Logos divino pode dominar, um conhecimento necessariamente limitado e, portanto, uma condição existencial de ignorância permanente.
A forma do ser humano, como a de qualquer ser contingente, contém uma limitação que o determina constitutivamente. No nosso caso, temos o grande privilégio de sermos feitos, à imagem e semelhança do Criador, com Intelecto e Vontade. Isso significa que, ao contrário dos demais seres, somos agentes morais que completam a sua Percepção com a Apercepção: sabemos que sabemos um pouco, e sabemos que não sabemos todo o resto. A consciência da limitação da nossa forma deveria instruir o nosso Intelecto a assumir a condição humana de ignorância atual com a escolha moral livre e responsável mais compatível e condizente com esta realidade: a opção pelos dons de Soberania e Humildade.
Nos primórdios da História da Filosofia nós temos, na origem do platonismo, essa dupla influência decisiva que vai demarcar o território das possibilidades de todo o futuro filosofar humano: o gnosticismo pitagórico, algo transhumanista, para não dizer prometéico (ou luciferiano), e a responsabilidade socrática, que antecipa na história das idéias o valor moral cristão de humildade e mansidão.
Na minha obra e no meu ensino deixo claro a todos a minha escolha: pela responsabilidade moral contra a ilusão gnóstica. Aqui tratamos de um exemplo disso.
Depois continuamos com a análise da segunda contraposição, entre as noções de “seita” e “opinião arbitrária”, e “utilidade” e “engrandecimento da humanidade”.