“…e que estejam convencidos de que lutamos para assentar os fundamentos não de alguma seita ou opinião arbitrária, mas sim para a utilidade e o engrandecimento da humanidade.”
Continuemos com o contraponto à citação de Francis Bacon escolhida por Kant para a abertura da sua obra magna, a Crítica da Razão Pura.
Para um professor membro da Real Academia de Ciências de Berlim, até que o nosso cuidadoso e criterioso filósofo prussiano foi mais desleixado do que se poderia supor que seria ao escolher a supracitada frase de Bacon, porque não é difícil produzir o contraponto e ilustrar a inconsistência.
O referido autor quer que sejamos convencidos de que está fazendo um bem contrário a um mal, e designa o primeiro com os termos UTILIDADE e ENGRANDECIMENTO DA HUMANIDADE, em oposição ao que seria o assentamento de uma SEITA ou OPINIÃO ARBITRÁRIA.
Mas será que as idéias, respectivamente, de utilitarismo e de exaltação da humanidade (ou progresso), são tão separadas e opostas das idéias de seita e opinião arbitrária?
É o que se teria que ter como premissa autoevidente para que o argumento funcionasse. Mas não é o caso.
Por um lado, o utilitarismo, que é um sistema de valoração que atribui bondade ao que é útil e maldade ao que não é, ao contrário de ser uma verdade óbvia acima de qualquer questionamento, é uma idéia altamente questionável, especialmente do ponto de vista moral, mas não somente (dado o óbvio problema do relativismo de uma ética utilitarista).
Por outro lado, o humanismo, que é um outro sistema de valoração que atribui bondade ao ser humano e aos seus empreendimentos civilizacionais, culturais e históricos, também pode ser questionado facilmente, como aliás era o caso na cultura imediatamente antecedente, a medieval, para não falar da antiga.
Ambos, tanto utilitarismo quanto humanismo, podem ser aderidos como opiniões arbitrárias e também servir de base para a fundamentação de uma seita, como a seita dos iluministas, e acabam que devem ser, pois o contrário sempre é igualmente crível: que há valores superiores ao do critério de utilidade, assim como que há possíveis objetos superiores acima da devoção à idéia da humanidade.
Isso só poderia passar despercebido ao momento do Aufklärung justamente porque este movimento cultural faz parte da dialética histórica, ou seja, de um mero ajuste contra um excesso histórico que já havia produzido muita cristalização na outra direção, especialmente através da concentração de poder nas mãos da Igreja Católica. Esse era o verdadeiro problema, cuja solução iluminista, ao invés de temperar na medida certa e buscar uma correção mais afinada, causou excesso para o outro lado, o que teria então que ser novamente corrigido dialeticamente, e assim por diante.
Tudo ficaria mais fácil, ou, em outros termos, o ajuste seria mais refinado, se o ser humano se concentrasse no seu fenômeno moral como centro da sua realidade, e produzisse a visão de mundo mais adequada ao respeito à sua liberdade, ao invés de compensar um gnosticismo com o outro. Já falamos aqui sobre a dialética gnóstica do Ouroboros. Esse é o perigo constante das reações para os dois lados da história. A dor é real: uma agressão contra a liberdade humana, dom divino de um ser feito à imagem e semelhança do Criador. Mas a solução é falsa, pois custará a clareza da liberdade por outro lado. Exatamente como ocorre com os iluministas. Eles reagiram a uma dor causada pela opressão da liberdade em decorrência do dogmatismo da ortodoxia religiosa. Se apenas defendessem a realidade do império da liberdade, sua correção operaria com a restrição devida. Mas a pancada vem como uma reação violenta proporcional ao dano sentido, gerando um novo dogmatismo. Liberta-se do antropocentrismo que idolatrava o homem ideal do passado, religioso ortodoxo, para prender-se no antropocentrismo que idolatra o homem ideal do futuro, racionalista iluminista.
Jogou-se fora, na reação contra a forma concreta da fé religiosa, a sabedoria da fé como dom puro decorrente do fenômeno liberdade humana de crer, e entronizou-se assim esses totens como a Utilidade ou a Humanidade, em atitude de total desprezo ao Amor de Deus. A culpa por todas as insanidades iluministas deve recair sobre a Religião: se não fosse o abuso religioso, nunca teria havido a abuso da reação contra ele.
Além do desprezo ao Amor de Deus, há o desprezo ao próprio ser humano, algo que é irônico numa agenda humanista, mas esta é a realidade: o humanismo é anti-humanitário por violar, enquanto crença arbitrária no ídolo do homem, o verdadeiro valor humano que está na liberdade de crer num ideal muito superior ao humanista, que é o divino.
Rejeita-se não apenas o Amor de Deus, mas a própria Soberania humana.
A linguagem de Bacon, preferida por Kant para ilustrar a sua própria intenção, propõe crenças como razões contrárias ao pensamento de seita e ao arbítrio humano, uma óbvia cegueira, falta de visão da visão, noesis noeseos, que é a verdadeira consciência humana: consciência da liberdade, e da força da Vontade para arbitrar os objetos do Intelecto. Se os iluministas tivessem investigado isso, estariam muito mais pertos de realmente superar a escolástica medieval, pois corrigiria o que realmente carecia de correção, para não falar de destruição: a Gnose.
Porém, a citação de Bacon não se encontra no fim da Crítica, mas no seu começo, o que é significativo. Kant, ao seu modo, mesmo que ainda algo iludido com as luzes do racionalismo, pretende criticar o próprio sonho de Bacon e colocar-lhe limites, ainda que não pelas razões certas. Monadofilicamente, a obra do prussiano parece-me ambígua. Se considerarmos a sua preocupação de defender uma moral degradante em face do próprio Iluminismo, podemos tê-lo, senão como um verdadeiro amante da sabedoria, ao menos como um inimigo da ignorância, o que já é alguma coisa.