O Incondicionado no Prefácio da 2ª Edição da Crítica de Kant

Aquilo que nos impulsiona necessariamente a ir além dos limites da experiência é o incondicionado, que a razão exige necessariamente nas coisas em si mesmas e, com toda justiça, em todos os condicionados e, portanto, na série das condições como uma série completa. Se, quando se assume que o nosso conhecimento por experiência se regula pelos objetos como coisas em si mesmas, verifica-se que o incondicionado não poderia ser pensado sem contradição; se, ao contrário, quando se assume que a nossa representação das coisas, tal como nos são dadas, não se regula por estas como coisas em si mesmas, mas os objetos é que se regulam pelo nosso modo de representação, verifica-se que a contradição desaparece; e se, portanto, o incondicionado tem de ser encontrado não nas coisas enquanto as conhecemos (enquanto nos são dadas), mas sim enquanto não as conhecemos, enquanto coisas em si mesmas: assim se evidencia que tem fundamento aquilo que, no começo, assumíamos apenas a título de tentativa.”

Kant está nos dizendo que, por um lado, o Incondicionado é necessário para que o Condicionado seja possível, e que, por outro lado, se só possuímos conhecimento do que é Condicionado (ou através do Condicionado), o Incondicionado perde a sua qualidade de necessário, o que é impossível. Esta contradição só pode ser resolvida se considerarmos todo o conhecimento do Condicionado como uma representação de um conhecimento, e não como conhecimento direto.

Ele nada mais está fazendo do que uma recuperação de um dos temas mais antigos e importantes –se não for o mais importante–, da História da Filosofia: a diferença entre o que é por si e o que não é por si. Vejamos os nomes dados a esse contraste nas terminologias dos filósofos:

Parmênides-HeráclitoPermanenteTransitório
PlatãoIdéiaImagem
Aristóteles 1SubstânciaPredicado
Aristóteles 2PossibilidadeSer
Aristóteles 3FormaMatéria
Aristóteles 4EssênciaAcidente
Aristóteles 5AbstratoConcreto
Pitágoras-PlotinoUnoMúltiplo
AgostinhoAlmaMundo
Descartes 1Substância PensanteSubstância Extensa
Descartes 2Qualidade do DiscretoQualidade do Contínuo
Kant 1Coisa-em-SiRepresentação Fenomênica
Kant 2IncondicionadoCondicionado
LeibnizMônadaReflexo

Além da Filosofia, a Teologia também apresenta essa importante distinção na visão das coisas espirituais.

Quando Deus é chamado de “A Rocha”, por exemplo, estamos falando da mesma Substância permanente diante do qual todo os outros seres possuem uma substância derivada, ou relativa. Quando os Profetas acusam os ídolos afirmando que cada um é “Vazio”, é uma repetição da mesma coisa. Quando Deus diz para Adão, em Gênesis 3, que ele por si é apenas “pó”, é a mesma afirmação por novo ângulo. Já Jesus afirma que apenas uma coisa é necessária, e que devemos procurar em primeiro lugar o Reino de Deus diante do qual nada mais interessa (nada mesmo, inclusive a família, a religião, etc.), e ainda por cima diz que o Reino de Deus está dentro de cada um de nós. A contemplação disso é fundamental para o entendimento do dom da Presença.

Voltando ao Kant, procurando pelo “conceito racional transcendente do incondicionado”, que é a antiga Substância, ele tateia igualmente na direção da Unidade plotiniana e da Mônada leibniziana.

Ele verifica, com razão, que se conhecemos a verdade somente através dos objetos da experiência da transitoriedade, não podemos conceber o Incondicionado que é, aprioristicamente, necessário pela própria Razão, do contrário toda a lógica do pensamento é destruída, a começar pelo Princípio de Identidade. Só se pode preservar a necessidade do Incondicionado ao se relativizar o conhecimento obtido por experiência como uma representação da verdade, e não como domínio da mesma. Para que o Incondicionado mantenha a sua integridade, é preciso que o conhecimento experimental seja uma representação.

A repercussão dessa intuição é tremenda.

Monadofilicamente, por exemplo, afirmamos que as mônadas sem janelas do Leibniz só se conhecem pela mútua representação, de tal modo que todos amamos a Deus no fim das contas, através de vários reflexos, e é impossível conhecer o inefável, que é a singularidade monádica de outra pessoa (o tal do João não ama Maria, mas ama João na forma de Maria).

Também afirmamos, com tranquilidade, que é impossível uma mônada vir a ser por um processo natural de geração, tanto quanto é impossível que seja corrompida por um processo natural de entropia, podendo apenas ser criada ou aniquilada por ato puramente divino, resultando assim em absurda a hipótese de que qualquer alma humana dependa do processo natural de geração e corrupção da procriação animal da espécie para vir a ser.

As aplicações dessa intuição são intermináveis, é uma fonte ilimitada de sabedoria.

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