Recentemente alguém observou, a partir de uma explicação que dei num vídeo publicado, que aquilo que se costuma atribuir ao mérito das virtudes humanas na verdade é dom de Deus. Eu falava particularmente de generosidade e magnanimidade, mas podia falar de qualquer outra qualidade.
A visão do conteúdo vida interior como dom puro da Graça divina nos permite entender o que é a vida na Presença sob um ponto de vista interessante. Porém, falar disso não é tão fácil, dependendo do quanto cada pessoa está envolvida com o espírito de idolatria, seja do objeto da sua percepção, ou seja da sua própria subjetividade. Somos inclinados à idolatria por uma natureza decaída e por uma criação de cativeiro. E entendemos a realidade sob a ótica da causalidade natural, um código embutido na realidade percebida exatamente para o exercício da nossa função de amar livremente, seja a criação ou o Criador.
Convém-nos entender esse tema com maior profundidade, usando o entendimento do que é a Mônada, e usando qualquer recurso que nos auxilie, como por exemplo o funcionamento do simbolismo do Sol e da Lua, entre outras idéias.
A Mônada possui essas potências já muito referidas, de Percepção e Apetição, às quais Leibniz mesmo acrescentou a potência da Apercepção (que é a Percepção da Percepção), e às quais eu acrescento agora a hipótese da Metareflexividade.
A Percepção é a visão que a Mônada tem do seu próprio reflexo, que também chamamos de Intelecto.
A Apetição é o desejo que a Mônada tem da próxima Percepção, que também chamamos de Vontade.
A Apercepção é a visão que a Mônada tem da sua própria Percepção, que também chamamos de Consciência.
Já a Metareflexividade é a visão da visão que a Mônada tem da sua própria Percepção, que também chamamos de Discernimento, ou consciência da Presença.
Iniciemos, como exemplo, uma analogia com a operação da nossa visão física.
A Percepção é como a visão que o olho tem do seu objeto.
A Apetição é como o desejo que o olho tem, por assim dizer, de ver o próximo objeto.
A Apercepção é como a visão que o olho tem de si mesmo, por exemplo vendo-se num espelho.
A Metareflexividade é como a visão que o olho tem de si mesmo e de seus objetos como aspectos da mesma substância, isto é, de que tanto a qualidade do objeto quanto a do olho são dados pelo mesmo ser, como um olho do olho, ou visão da visão.
Existe a qualidade daquilo que é visto, e a qualidade da visão em si mesma.
A qualidade do que é visto é a Nitidez da Percepção, ou na sua ausência, Ofuscação.
Já a qualidade do olho que vê é a Cristalinidade da Percepção, ou na sua ausência, Opacidade.
Com a Metareflexividade compreendemos que a qualidade das coisas percebidas são aspectos da luz divina refletidos pela nossa Percepção, tanto enquanto a qualidade do nosso perceber é dada pela luz divina que anima o nosso espírito (ou com o qual entramos em comunhão através do livre-arbítrio). Tanto Nitidez quanto Cristalinidade são dons divinos para o ato humano de Percepção: Deus dá o bem que percebemos, e dá o bem de perceber, ou ainda, Deus nos dá o que amamos e nos dá a capacidade de amar.
A consciência disto é um recurso tremendo, para o qual já usei o nome de Discernimento. Com essa noção entendemos que a nossa reação ao que percebemos, conduzida pelo costume da idolatria naturalista da causalidade, normalmente ignora a origem divina tanto da qualidade do percebido quanto do nosso ânimo de perceber. As coisas não são boas ou ruins independentemente da Providência como causa fundamental, e nem temos um bom ou mau ânimo por causa do nosso psiquismo, porque tudo é dom divino. Viver na Presença, com Discernimento, ou na Metareflexividade, é ter a consciência simples do Amor divino como causa do que é percebido e da própria Percepção.
No simbolismo do Sol e da Lua apreendemos esse esquema facilmente ao verificar que a virtude da Lua diante do Sol é a de uma total passividade, a capacidade de receber um dom externo, que é o poder solar. Por si mesma a Lua é Nova, pura potencialidade, e se nunca for iluminada pelo Sol, permanecerá na sua própria obscuridade indefinidamente. O que temos, por nós, é essa obscuridade da mônada que não atualiza nenhuma Percepção se não for a do reflexo da luz divina no seu próprio ser.
Vejamos na tabela abaixo alguns outros termos que podem ajudar a compreender a idéia da Metareflexividade:
| PERCEPÇÃO | APERCEPÇÃO | METAREFLEXIVIDADE |
| Nitidez/Ofuscação | Cristalinidade/Opacidade | Discernimento |
| Qualidade do Objeto percebido | Qualidade do Sujeito que vê | Qualidade da Origem da Relação Objeto-Sujeito |
| Clareza na visão do bem divino (objetos em Deus) | Clareza na visão da visão do bem divino (sujeito em Deus) | Clareza na visão da visão da visão do bem divino (tudo em Deus) |
| Consciência do Reflexo | Consciência da consciência | Consciência da consciência da consciência |
| Consciência em Potência | Consciência em Ato Primeiro | Consciência em Ato Segundo |
| Satisfação primária da Apetição (qualidade do percebido) | Satisfação secundária da Apetição (qualidade do percipiente) | Satisfação plena da Apetição (qualidade da consciência de ser amado através da Percepção) |
| Ciência do Ser | Ciência da Possibilidade | Ciência da Presença |
| Consciência primária, “sensação inteligente” (Zubiri) | Filosofia | Metafilosofia |
Podemos traçar um exemplo através de uma cena ordinária: João vê seu gato dormindo e fica contente (Percepção, Potência, vida inteligente); João vê que vê seu gato dormindo e fica contente (Apercepção, Ato Primeiro, vida psíquica); e João vê que vê que vê seu gato dormindo e fica contente (Metareflexão, Ato Segundo, vida espiritual, ou vida na Presença).
Em termos do testemunho bíblico e evangélico a respeito da Metareflexividade, talvez não haja sinal mais evidente dessa realidade do arbítrio da consciência do que esta expressão de Jesus:
“A lâmpada do corpo é o olho. Portanto, se teu olho estiver são, todo teu corpo ficará iluminado; mas se teu olho estiver doente, todo teu corpo ficará escuro. Pois se a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão as trevas!“
Jesus está dizendo, entendendo nos nossos termos, que a verdade e a luz não são propriedades externas ao nosso ser, mas realidades da vida interior. O Reino de Deus está dentro de nós. Não adianta buscar isso fora. Não existe fora. O “fora” é uma ilusão da nossa idolatria. Só existe a Presença e a nossa Percepção dela. Qualquer realidade externa pode ser vista através de um olhar sadio ou doente. E cabe a nós cultivar ou não o dom da luz divina que nos permite ter um olhar luminoso. A Metareflexividade é a busca da consciência da vida na Presença, a busca de Deus no que é percebido e também no nosso ânimo de perceber, pois tudo é dom Dele.
O que é, afinal, a Metareflexividade? É a visão da visão, noesis noeseos, o encontro do Amor divino nas duas pontas da Percepção, naquilo que é visto e no espírito que vê o que é visto. Com isto entendemos finalmente que nós vivemos somente para amar e ser amados. A função da vida humana é a mais simples que se possa conceber, eficientemente e monadologicamente pela apreensão da natureza da substância simples, e finalisticamente e monadofilicamente pela apreensão do bem próprio da substância simples.
E esta pode ser a pedra filosofal da Monadofilia porque, se isto for atingido, o que mais pode ser necessário?
Não é esta reflexão a descoberta do Reino de Deus dentro de nós?
É exatamente isto.
Quem faz esta descoberta prescinde de qualquer outro recurso espiritual, pois tem a única coisa necessária, o verdadeiro Evangelho: a Boa Notícia de que Deus é Amor, e de que nisto consiste o Amor, em que não fomos nós que amamos, mas que foi Deus quem nos amou primeiro.