Ceticismo em Kant: local de passagem, nunca de permanência

Kant, repetindo-se como sempre, tem razões mas não tem razão.

É verdade que o Ceticismo, ainda que seja um descanso contra a pretensão dogmática, como a saída de um calabouço para se respirar ares puros, não pode constituir um local de permanência, pois as questões vitais para um ser consciente requerem uma resposta positiva, não somente negativa. O ser humano, liberto de sua prisão dogmática, precisa encontrar uma nova moradia.

Porém, Kant mostra-se tentado pela possibilidade da Gnose ao afirmar que devemos fixar residência definitiva numa certeza completa, seja a do conhecimento ou ao dos limites dele.

Temos aí uma perfeita ambiguidade: onde está a possibilidade da certeza, na posse da Gnose, ou na sua Crítica?

Presumiríamos, já que Kant se propôs a produzir uma Crítica infalível, que ele buscaria qualquer certeza somente por este caminho, mas isso não é assim. De fato, a Crítica da Razão deixa em aberto o passo seguinte, que pode ser tanto o de uma especulação metafísica guiada pelos limites da Crítica, quanto o de um refúgio no território dos conhecimentos garantidos pelos mesmos.

Assim, movido primariamente, seja pelo interesse da Vontade, ou do Intelecto, o ser humano se vê livre para escolher o caminho da Humildade ou da Pretensão, de modo que a filosofia kantiana, ao menos na Crítica da Razão Pura, pode ser entendida como contribuinte ao esclarecimento da condição humana, mas não no sentido da indicação do melhor caminho a percorrer, pois isto ultrapassaria o grau de certeza a que o filósofo se limitou.

Porém, como ele próprio diz, nenhum Ceticismo, nem mesmo o da própria Crítica, pode ser terminal.

Nenhum ser humano pode repousar na dúvida: ele decide todos os dias no que acredita para deliberar seus movimentos internos e externos. Mesmo que possuindo o esclarecimento da Crítica, o que fará esse ser humano, senão decidir novamente qual é, para si, a natureza e a finalidade da sua realidade?

Usando os termos da alquimia, diríamos que nenhuma alma subsiste com a consistência espiritual do Mercúrio: é necessário obter a estabilização do Enxofre e alcançar a solidez do Sal.

Ou, usando os termos da ficção científica popular Matrix, diríamos que só a pílula azul é terminativa. A função da pílula vermelha (seja ela um Ceticismo, ou uma Crítica), é a de dissolver o cristal anterior, isto é, o dogmatismo precedente que perdeu efeito, para que se obtenha uma nova síntese, um novo cristal com efeito.

Kant não nos dá sinal dessa escolha terminativa, ao menos não nesta obra.

Assim, sua Crítica pode até enxergar os limites do Ceticismo, mas em si não passa de uma continuidade esclarecida do mesmo, sem dar o passo seguinte por si.

A Crítica da Razão Pura ainda é Mercúrio, ainda é a pílula vermelha.

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