A presença ignorada de Deus, livro por Viktor FRANKL

Ainda que limitado pelo âmbito da sua especialidade, isto é, pelo ângulo de um médico, o Dr. Frankl consegue pressionar os limites do Psiquismo humano para reconhecer a razão de ser do que nos transcende, mais ou menos como um kantiano. E tem um sucesso louvável no seu empreendimento.

Muito respeitoso com as ousadias, ou pretensões mesmo, das teorias das demais escolas de psicologia, Frankl não teme ser Humilde, ou talvez parecer ingênuo, e reclama o direito do homem de ser livre e de se autodeterminar espiritualmente. Sua defesa do arbítrio humano contra os condicionamentos naturais e ambientais nos causa um alívio. E sua crítica ao fatalismo determinista de tipos como Jung chega a nos divertir. Até aqui eu poderia pensar que toda psicologia tende a ser idolátrica, como toda astrologia, mas Frankl me impede de continuar pensando assim. A ciência séria é, afinal de contas, sempre possível.

A linguagem de Frankl talvez não seja a que mais facilitaria o nosso entendimento hoje, principalmente o que ele entende sob o conceito de religião em geral. Esclarecendo: na busca do sentido, e na liberdade humana de crer neste sentido, Frankl está falando da vida espiritual do ser humano, a qual pode ou não ser mais ou menos identificada com determinado conjunto de símbolos na linguagem de uma religião determinada. Esta interpretação, por sua vez, não é forçada, como ficará claro nas palavras do próprio Dr. Frankl que serão citadas logo mais.

Em síntese, esta obra de Frankl defende a dignidade espiritual do ser humano no limite do que é suportável dentro da discussão da psicologia. Não consegue alcançar as alturas de uma teologia, ou de uma filosofia metafísica, mas faz justiça à vida espiritual na sua própria dimensão, sem grandes ressalvas.

Vejamos algumas citações:

Esta é, possivelmente, a melhor defesa do dom de Soberania no contexto da psicologia. Na direção contrária à superlotação do id como condicionante da pessoa humana, Frankl declara que o ser humano começa a existir enquanto eu que recebe a sua circunstância e que determina o seu ser diante dela, responsavelmente. Indiretamente, esta é também uma defesa da Presença contra o espírito de idolatria: os elementos exteriores ao Eu limitam o campo da liberdade, mas não a determinam.

A idéia de Destino é espiritualmente ambígua, mas razoável como índice da Providência divina. Cabe ao ser humano colher na sua concretude aquilo que é dado como inescapável, e então decidir aceitar isto como condição desejada ou permitida por uma Vontade divina. O foco obsessivo nas consequências da causalidade psicofísica tende a camuflar ou até a negar completamente este elemento vital da experiência espiritual humana. Frankl não deixa isso acontecer sob o seu juízo. É um herói, uma testemunha espiritual entre os grandes da psicologia.

Não é surpreendente, e até mesmo assombroso, que Frankl possa corrigir a perspectiva comum da causalidade, e reconhecer a prioridade das causas fundamentais sobre as intermediárias? Nossos pais carnais não nos dão a idéia do Pai Celeste, mas antes Deus é quem nos provê pais carnais para que o conheçamos por analogia, esperando o maior em virtude do menor, etc. Como diz Jesus, por exemplo: “se até vos que sois maus sabei dar coisas boas aos vossos filhos…“. Isto é: tudo o que experimentamos como bondade das relações familiares é apenas uma amostra que aponta para a perfeição divina, que é o alvo máximo da vida humana.

Eis uma defesa impecável da integridade do dom da Presença, ainda que sem declará-lo explicitamente. Frankl toma o cuidado de afastar as idéias erradas a respeito do que ele chama de “Deus inconsciente”, sem deixar de defender a experiência humana de um encontro espiritual com o que nos transcende infinitamente.

O vício psicológico de tratar o ignorado como “inconsciente” talvez ainda seja um resquício indevido da cosmovisão psíquica a partir da qual Frankl trabalhou. Afinal, se a ignorância é constitutiva de qualquer ser limitado, que sentido há em chamar o desconhecido, ou misterioso, de “inconsciente”, senão como uma tentativa de exercer alguma forma de controle, ou ao menos de reconhecimento, para que sejamos amparados da necessidade pura de confiar no Amor divino? Qualquer idéia de “inconsciente” é espiritualmente problemática, mesmo a de Frankl.

Talvez a saída seja apenas mística, ou teológica, no amparo do conceito de Mistério. Mas este, obviamente, não pode entrar em linha de conta de uma psicologia.

Fiquei satisfeitíssimo que um médico tenha operado essa justa correção na visão de mundo do Psiquismo. O ser humano completamente manipulado pelos impulsos que determinam o seu ser, interior e exteriormente, nunca existiu e nunca existirá. Ao contrário, ser humano significa ter liberdade interior diante de qualquer circunstância, ainda que sem o poder de modificá-la exteriormente, mas sempre podendo assentir e rejeitar, desejar e repelir, etc.

As experiências mais toscas, ou meramente exteriores da religiosidade, camuflam essa realidade, mas um exame atento sempre mostrará o fato inegável da liberdade em operação debaixo, nem que seja na responsabilidade da própria alienação. Justificar o movimento do arbítrio à partir somente de impulsos externos ao Ego é o mesmo que desumanizar o humano, e tirar-lhe a sua maior dignidade, que é a de ter sido feito à imagem e semelhança de seu criador.

Aqui Frankl já se aproxima da própria Monadofilia, ou ao menos do aspecto da singularidade indeterminada da alma humana.

Confesso que senti alívio, depois que o autor usou tantas vezes a idéia de “religião” na sua obra, ao saber que ele não fez a confusão que o uso do termo poderia ter sugerido, entre o que é a liberdade interior de viver diante do Deus verdadeiro, e as formas exteriores de expressão dessa realidade individual sob símbolos coletivos.

Já que nem tudo pode ser perfeito, aqui Frankl mostra a sua associação com um dos lados da dialética do Ouroboros, justamente o da Tradição.

Embora seja verdade que a sociedade moderna ofereça riscos determinados ao ser humano atual, e que estes riscos específicos possam e devam ser identificados, não é verdade que o ideal humano esteja no tempo, isto é, no passado, tanto quanto do ponto de vista progressista também é um erro afirmar que o ideal esteja no tempo futuro.

A solução espiritual mais impecável e simples é a do idealismo transcendental, fora e acima de todos os tempos. Como homem de ação, Frankl com razão buscou fontes imanentes de exemplo, e encontrou algo assim no passado da humanidade, mas igualmente um progressista o poderia fazer idealizando o homem do futuro. O único homem verdadeiramente ideal, porém, é o da Eternidade, constituído por sua plena comunhão interior com o Espírito Santo.

Nesta passagem Frankl se posiciona favoravelmente à uma solução pela linha do Realismo Responsável, através das Liberalidades do amor contingente, e pela linha do Idealismo Transcendental através do recurso do dom da Paixão, através do qual Deus nos permite converter todo sofrimento em repouso na Providência.

Ainda que pudesse ter ido além se o quisesse, que ele tenha chegado longe assim partindo do ponto de vista de uma psicologia, é algo muito admirável, e torna o seu trabalho único e recomendável acima de todos os outros.

A linguagem da vida interior é a própria vida espiritual: é a nossa honestidade de sermos carentes diante do nosso Criador, confiantes na sua excelente qualidade de Amante fiel e perfeito.

Neste sentido Frankl não só supera as limitações da psicologia, como também da própria religião como um todo.

E abre o caminho para a ação humana que está acima de qualquer outra: a do testemunho e da amizade.

Quanto mais amamos a Deus e ao próximo, mais verificamos a imensa profundidade da diversidade criada pelo Altíssimo, e nos libertamos da mesquinhez e tolice da restrição do nosso entendimento de acordo com símbolos e critérios que só existem para a conveniência da ordem social.

Vida espiritual, em suma, é a experiência real do ser humano que não cabe mais dentro de nenhum papel social: nem familiar, nem econômico, nem político, nem religioso. É uma alma livre que fala para outras almas livres sobre a sua experiência amorosa da vida e de Deus.

Que um psicólogo tenha nos dado a abertura para considerar essa realidade sobre todos os interesses específicos da sua especialidade, é algo muito louvável.

Nota espiritual: 6,0 (Calaquendi)

Humildade/Presunção7
Presença/Idolatria6
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno6
Soberania/Gnosticismo9
Vigilância/Ingenuidade5
Discernimento/Psiquismo4
Nota final6,0

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