O crime de Caim/Horus, e a inocência de Abel/Sanguinius

E assim cairá sobre vós todo o sangue dos justos derramado sobre a terra, desde o sangue do inocente Abel até o sangue de Zacarias, que matastes entre o santuário e o altar.” (Mateus 23:35)

Pela influência de meu sobrinho nº 2, voltei a revisitar um certo conteúdo de ficção científica sobre o qual não pensava havia tempos, o universo de Warhammer 40k.

Em grande parte essa revisitação não geraria frutos dignos de nota dentro do meu trabalho, não fosse a observação de uma certa analogia funcional entre aquela mitologia e a do Gênesis, uma comparação que talvez nos ajudasse a compreender melhor algo que pode ser muito útil, algo que já foi abordado e explicado antes, mas que possivelmente não tenha ficado tão claro quanto deveria: o quanto que Caim foi realmente criminoso na sua ação, e o quanto que Abel era inocente.

Relembrando a mitologia edênica da Bíblia, no Capítulo 4 do Gênesis encontramos Adão iniciando seus filhos no culto divino, a primeira forma de religião referenciada nas sagradas escrituras. Abel oferece um sacrifício aceitável para a divindade, enquanto o sacrifício de Caim é tido como insatisfatório. Abalado pela rejeição da sua oferta, Caim é tomado de uma fúria assassina, e acaba se vingando através do homicídio de seu irmão, tornando-se assim um exilado da sociedade adâmica, e um construtor de uma alternativa civilizacional rival daquela de seu futuro irmão Set.

A Tradição nos informa que Caim perdeu a graça de Deus em virtude, em primeiro lugar, de ter se recusado a fazer a sua melhor oferta no ritual de sacrifício, entregando restos da sua colheita ao invés das primícias, ao contrário de Abel que entregou a melhor parte de seu rebanho. Em segundo lugar, alertado por Deus para que não caísse na tentação da vingança, ele ignora o guiamento divino e termina por se associar com o espírito que lhe incutiu o ódio pelo irmão.

A Revolução, porém, informa algo diferente: a recusa de Caim de sacrificar o seu melhor, ou mesmo de sacrificar sangue como seu irmão Abel, derivaria de sua ciência da mentira de seu pai. Consciente de que Adão trocou o culto do Deus verdadeiro, no antigo Jardim do Éden, pelo culto do falso deus, a Serpente do Mundo, Caim teria rejeitado a obediência ao culto ensinado por seu pai, ou seja, teria recusado participar na Tradição Primordial, que é o Culto do Ouroboros. Como consequência da sua recusa, porém, ele foi rejeitado pelo deus de Adão, e também por seus pais, e teria sido tentado pela fúria ao ver o sucesso de seu irmão Abel que, enganado por seus pais, não obstante obteve triunfo e glórias ao ter se submetido ao Sistema da Besta. Incapaz de tolerar a injustiça, Caim cai ele próprio na tentação, decorrente dessa tristeza, e mata o seu irmão.

Embora a Tradição sempre pareça nos contar a historia mais coerente, simplesmente porque usa a cultura do status quo (toda a narrativa reiterada por séculos pelas religiões cristãs), e também porque nos permite relaxar na hipótese menos sinistra, ela nunca explica o salto tremendo de Gênesis 3 até Gênesis 4, ou seja, a abrupta transição da situação de rebelião e condenação à morte até a situação de normalização do culto através do sacrifício de sangue.

Não é difícil cogitar a hipótese de que Adão e Eva trocaram de fato de divindade, e que o culto religioso mostrado em Gênesis 4 seja o Culto do Ouroboros. Afinal, mais tarde o Deus verdadeiro (e quem mais seria?) não nos diz que não tem prazer no derramamento de sangue, e que para o seu Espírito o verdadeiro sacrifício é a oferta de um coração contrito?

Por outro lado, Jesus, a maior autoridade, nos informa que o diabo é o Pai da Mentira, e que é “mentiroso desde o princípio“.

Usurpador por natureza, o Ouroboros sempre desejou tomar o lugar de Deus diante do homem, em primeiro lugar causando o distanciamento entre o Criador e a criatura através a malícia da desconfiança, e em segundo lugar oferecendo a alternativa de si próprio como salvador através da oferta da Gnose. O Pacto Ouroboros é o comércio entre os usurpadores, anjos caídos e humanos, para criar o seu império de rebelião.

Porém, Jesus diz também que Abel foi o primeiro inocente vitimado pela colaboração dos homens com os demônios. Como isso poderia ser verdade, se Abel fosse cúmplice de seus pais no Culto do Ouroboros?

Para compreender esta hipótese, ou seja, a de que Abel teria participado do Culto do Ouroboros e, ainda assim, que tenha sido inocente, nós temos que compreender os fenômenos da malícia e da inocência num nível mais profundo do que o normal.

E nisto é que pode convir, finalmente, o simbolismo daquela mitologia de Warhammer 40k: Horus e Sanguinius, ambos filhos do Imperador, correspondem em seus papéis a Caim e Abel, filhos de Adão.

Horus é influenciado por uma visão (ou por uma série de visões?) em que vê seu pai, o Imperador, manipulando a história e usando de toda a sua influência para alcançar o status de divindade, enganando seus filhos a respeito de seus propósitos megalomaníacos. Essa visão tem uma origem demoníaca (ou “caótica”) e o objetivo de criar divisão e conflito no Império, de modo que as forças do Caos pudessem triunfar contra a Humanidade. Crendo na visão, porém, Horus não percebe o quanto ele próprio é manipulado, e acaba por causar a guerra civil que terminará com o assassinato de seu irmão Sanguinius, antes que seu pai finalmente o mate e seja então, como consequência, cultuado como o Deus-Imperador da Humanidade. Assim, Horus acaba colaborando para a concretização daquela visão contra a qual se rebelou.

A sugestão mais frutuosa para a compreensão da mitologia do Gênesis vem da forma como o esclarecimento de Horus se inicia: a visão, embora tenha uma origem e uma intenção maligna, não revelava, afinal, um futuro contingente plenamente realizável? O Imperador não aceitaria, afinal de contas, a sua própria entronização como divindade, às custas do sacrifício de seus filhos e de todo o povo? Sim, o conteúdo da visão era verídico. Apenas não ficou claro para Horus o papel decisivo da sua própria intervenção na história, isto é, a contribuição do efeito da sua queda na malícia na produção do mal que sua visão anteviu.

Já Sanguinius, por sua vez, ainda que enganado pela mentira de seu pai, tendo sido não obstante fiel até o fim, pode ser considerado inocente ainda que sofresse de uma ilusão.

Pois eis a realidade espiritual: não é a Gnose da ciência do segredo que salva, como pensaria Horus, mas é a confiança amorosa que aproxima do Bem ao rejeitar a desconfiança maliciosa. Por mais enganado que fosse por seu pai, Sanguinius, mantendo-se fiel e rejeitando a malícia de Horus, estava mais próximo do Bem que lhe era possível do que seu irmão. Confiando em seu pai, Sanguinius na verdade confiava numa Providência maior que havia dado ao Imperador a autoridade e o poder por qualquer razão que transcendia o seu entendimento. Ou seja, por trás da enganação, havia a confiança num governo verdadeiramente divino por trás. Já Horus, desconfiado do Imperador, desconfiava junto também do governo divino da realidade, razão pela qual o seu crime é total, apesar de suas razões, assim como a inocência de Sanguinius é total.

Está escrito: com Deus estão o enganado, e também aquele que engana.

Também: não temeis por conspirações e segredos.

E por fim, Deus diz: não me procurai no Caos.

Isto quer dizer que a única coisa pela qual podemos nos responsabilizar é pela confiança ou não num governo divino maior, uma Providência que regula todas as coisas, inclusive e especialmente todas as injustiças e sofrimentos. Sanguinius confiou, e Horus caiu na malícia.

A vida com Deus está no repouso na confiança de que nada escapa ao seu divino Poder, e que tudo é sempre convertido, finalmente, para o bem daqueles que amam a Deus.

Percebemos assim como a obra divina é perfeita, mesmo no uso da liberdade com tendências maliciosas: se não for dada à Serpente a liberdade de tentar Adão, como é que ele pode decidir confiar ou não no Amor divino? Igualmente, se Caim não for tentado pela visão do culto do falso Deus, como é que ele poderia decidir agir diferentemente?

Nesta hipótese, a intervenção do Deus verdadeiro vem depois da ação da tentação que serve de campo de exploração para a liberdade humana. Ou seja, inicialmente Caim foi apenas influenciado por espíritos realmente demoníacos, ainda que estes em parte dissessem a verdade, isto é, que Adão traiu o Deus verdadeiro, e que o sacrifício de sangue era feito a um falso deus. A intenção infernal por trás dessa iluminação gnóstica, porém, era justamente que Caim se tornasse orgulhoso de sua Gnose, e que enxergasse a si próprio como melhor que seus pais e que seu irmão. Esse mesmo orgulho foi depois a causa da sua queda, por não suportar o louvor ao mérito de Abel.

Mas antes do assassinato de Abel, o Deus verdadeiro não deixa de chamar Caim para a verdade, dizendo: se a tua intenção é a correta (isto é, a de rejeitar a traição de seus pais), porque ficas triste? Não deverias levantar a cabeça?

Essa sugestão é excelente e cheia do Espírito Santo: uma vida com Deus, na sua Presença, ignorando a usurpação e desobediência da humanidade. Era preciso que Caim se libertasse do orgulho contra seus pais, e da inveja assassina contra seu irmão.

Mas Caim rejeita o Espírito Santo, e assim sua visão se torna uma prisão na malícia, no orgulho e na inveja. Seu crime é indesculpável.

Já Abel, apesar de ser enganado por seus pais e pelo próprio Ouroboros, tendo sido não obstante fiel e confiante num Bem maior, foi inocente até o fim, e duplamente inocente: não só foi enganado pelo Ouroboros e por seus pais, mas também foi traído por seu irmão cheio de malícia e ódio.

Ao contemplarmos a cena do assassinato de Sanguinius por Horus entendemos como a Gnose sempre dá um falso poder que leva à hybris e à ruína: o verdadeiro poder está na confiança no Bem transcendente.

O Caos tentou Horus. O Ouroboros tentou Caim.

A opção de Horus/Caim era a de aceitar a liberdade da contingência de seu pai, bem como a primazia de seu irmão.

Assim, a visão do futuro contingente talvez não fosse falsa, mas de qualquer modo a reação de Horus/Caim deveria ser a de amar a liberdade até o fim: a sua própria, a de Deus, e a do próximo.

Parafraseando a sabedoria socrática: é melhor ter a sua liberdade violada, do que se tornar o violador da liberdade alheia.

O mal, afinal, sempre está naquele que o causa, e não naquele que o sofre.

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