Teeteto, livro por PLATÃO

O que é o Conhecimento?

Essa é a pergunta do Teeteto de Platão, uma questão espistemológica que corresponde à dificuldade do pedido para que uma pessoa enxergue os seus próprios olhos, ou do pedido a um peixe para que ele defina no que consiste o nadar. Se a operação elementar da mônada é a Percepção, como ela pode qualificar essa ação em comparação com algum outro ato que não seja o mesmo?

É claro que só podemos ver nossos olhos através de um espelho, ou seja, de um reflexo, e que esta visão não é tão perfeita ou direta quanto a das outras coisas. Essa dificuldade pode ser aceita, ou não, conforme a pessoa seja mais amorosa ou mais furiosa a respeito do domínio gnóstico da realidade.

A própria importância da pergunta já denuncia um certo sabor gnóstico, derivado de uma perspectiva de desconfiança misturada com a curiosidade natural. Na experiência ordinária, traduzimos conhecer por saber, ou por perceber, ou por intuir, ou por entender, ou por inteligir, etc., meio que indiscriminadamente. Detalhamos apenas um conceito ou uma definição mais precisa, pelo que seja necessário a uma finalidade exterior. Uma dessas finalidades pode ser a dúvida gnóstica a respeito da integridade da experiência humana.

A Filosofia se inaugura sob os auspícios da pretensão de possuir uma episteme acima de toda doxa. Nesse intuito é claro que é preciso produzir uma epistemologia que sirva como crítica da opinião, ou da imagem da verdade.

O que nós precisamos nos perguntar é: até que ponto isso convém a nós?

Monadofilicamente, o conhecimento é o produto da Percepção, enquanto conteúdo de consciência. Se este produto é obtido pela sensação, ou pela memória, ou pela imaginação, etc., isso já é indiferente e posterior ao dado da Percepção enquanto ação do Intelecto humano.

Mas vejamos a abordagem platônica do tema.

Até aqui, tudo bem. A afirmação de Teeteto é razoável e intuitiva.

Mas é claro que não pode ser satisfatório. Mais adiante, para construir essa insatisfação, encontramos uma proposta interessante.

Sócrates fez Teeteto afirmar, ao longo do caminho, que aquilo que aparece também possui ser. Mas reparem que isso não foi originalmente afirmado por Teeteto, que apenas afirmou a primeira parte da proposição socrática, ou seja, que a percepção é conhecimento.

Platão não aceita que a Percepção conheça apenas a representação das coisas, e não as coisas mesmas, pois ele procura justamente ligar sua epistemologia à ontologia: ele precisa que o ser humano conheça a verdade do ser tal como é, e não apenas tal como lhe pareça, caso contrário o ideal filosófico da episteme terá que ser abandonado.

Dada essa premissa platônica, foi preciso forçar o argumento de Teeteto a afirmar o que não era originalmente dito: que a percepção produz o conhecimento da verdade do ser tal como é. Mas isto sempre será inviável.

Mas qual seria a base do pensamento platônico, que lhe moveu a alma a desejar o reconhecimento da conexão entre ser e conhecer, entre ontologia e epistemologia?

Abaixo encontramos uma pista, no próprio texto do Teeteto.

A negação do Permanente, ou do Uno, era uma das idéias mais importantes a que Platão se dignou tratar e combater, com justiça, na defesa do princípio parmenídico da identidade do Ser.

O problema platônico, e filosófico em geral, porém, será o de que se a experiência só nos dá o conhecimento do movimento, ou seja, da impermanência, mas só se poderia atribuir conhecimento a um ser que seja sempre igual a si próprio (imóvel na sua própria idéia, ou forma), ou não conheceríamos jamais nada que tenha substância, nenhuma verdade, ou teríamos que conhecer, através do mutável, o permanente que o sustenta como fundamento, o que é exatamente a solução platônica da teoria do Mundo das Idéias, como estrutura ontológica do Ser, e da teoria da Reminiscência, como estrutura espistemológica do Saber.

O que escapou a Platão, pelo menos no contexto do Teeteto, foi que a solução mais direta ao problema do conhecimento se dá não pela multiplicação dos mundos e dos processos, mas pela hipótese da Substância Simples, ou Mônada, que possui a integridade da verdade incognoscível da sua singularidade, com o potencial produtivo de toda multiplicidade como reflexo do seu ser, de modo que qualquer conhecimento é apenas produto da simples Percepção como ação do Intelecto. Não é preciso atribuir substancialidade a nada fora da Mônada, já que isso é o que complica toda a ontologia, bem como toda a epistemologia.

Ora, “não vê” não é idêntico a “não conhece“, porque lembrar mesmo sem ver pode ser o mesmo que conhecer por ver, como por reflexo num espelho, no caso da visão. Essa lógica deriva da diminuição do conceito de Percepção, que deixa de ser todo ato de conhecer do Intelecto, sob qualquer forma, e passa a ser meramente a percepção derivada dos sentidos. Se não diminuísse o seu conceito de Percepção, Platão não precisaria recusar a sua aplicabilidade ao caso da memória. Por esse tipo de procedimento se vê como a diferença entre filósofos e sofistas é mais ideal do que real, no fim das contas.

Em seguida, entre as partes mais significativas do diálogo, encontramos, quase que numa total mudança de assunto, um belo discurso de elogio da liberdade do amante da Verdade, em contraste com a escravidão daquele que deseja ter o poder sobre a mesma, ou seja, daquele que precisa ter razão, como por exemplo para vencer uma disputa.

Digo que é quase que uma mudança total de assunto, porque no fundo não é realmente assim: o conhecimento, afinal, pode ser visto como uma dessas duas coisas, como objeto de busca amorosa, ou de desejo de domínio e poder, e isto certamente interfere muito na experiência da busca do mesmo.

Vejamos este, que é um dos mais belos discursos platônicos:

É uma pena que ao final do belo discurso em elogio à liberdade do filósofo, Platão escorregue no seu gnosticismo de mistura de bem com o mal, e da idéia da salvação pela ascese gnóstica, etc. Mas isto é perdoável com facilidade: bem entendido, o que Platão está reconhecendo é que a situação de confusão e mistura precisa ser desfeita de algum modo, e mesmo que ele se confunda com relação ao motivo da mistura e da forma da solução da situação, ele não deixa de desejar, de algum modo, aquilo que é divino como salvação para o homem.

A boa intenção, no entanto, também não nos dispensa de criticar a metodologia platônica como um todo, principalmente em face de uma muito mais eficiente resposta espiritual. Buscando o domínio do conhecimento do Ser, mas obviamente impedido pela inefabilidade da singularidade monádica, Platão oferecerá o Mundo das Idéias como alternativa do que é permanente para o filósofo, em face do que é transitório na mera sensibilidade, e assim nos arrasta para a desconfiança da experiência ordinária da Percepção como ação intelectual de conhecer. O Intelecto torna-se propriedade dos gnósticos iniciados, os filósofos que não mais se distraem com as mentiras e ilusões da Percepção.

Era mais simples reconhecer a estabilidade gnosiológica de aspectos do ser através da Percepção, sempre complementados pelo movimento da alma, por sua Apetição, desde uma Percepção até a próxima, mas isto requereria assumir que a Verdade transcende o homem, e que ele é salvo não por si mesmo enquanto filósofo que vai dominar o conhecimento do Ser, mas enquanto recipiente do amor divino que lhe transmite a Sua Glória através dessa Percepção, na forma mesmo da sua precisa limitação.

O ideal humanista e antropocentrista começa a ganhar fôlego e profundidade com essas propostas filosóficas:

Em suma: a verdade é fruto da educação, a qual possivelmente não pode ser melhor do que a que é provida por um filósofo (o que convém a Platão, et caterva), por outro lado não se pode conhecer algo de modo parcial, sem que o todo escape à Gnose hu mana, ou seja, sem que a ignorância permaneça como experiência determinante da condição humana, e que por fim é o raciocínio que fornece o conhecimento, e não a Percepção, ou a ação intelectual da intuição sobre a Percepção, quando esta não é refletida. Isto é pura idolatria humanista.

Deus não fez o homem à sua imagem e semelhança para que tivesse a pretensão de por si conhecer as coisas (como se essas existissem nelas mesmas, ou como se nele a luz fosse um dom próprio de visão!), mas para que participasse do seu Amor enquanto ser iluminado para conhecer a Sua Glória na medida da sua forma limitada de ser.

Reparem que o orgulho é imediatamente derivado da satisfação com o Bem, quando este não é apreciado na sua absoluta santidade e transcendência com relação ao humano: Platão falava da liberdade de amar a verdade, e assim fortaleceu seu espírito e o nosso próprio, na confiança dessa liberdade, mas logo em seguida passa a contar com a sua própria força e mérito para ser o possuidor dessa verdade, como um Alberich no Rio Reno. Perde, assim, a qualidade da sua liberdade inicial, derivada da contemplação amorosa.

Em seguida, já avançando na construção da hipótese do Conhecimento como Reminiscência, Platão nos dá a imagem do registro do conhecimento na alma como a de um sinete numa superfície de cera:

O que não é dito acima, mas que nos convém afirmar, é o grau da interferência no arbítrio humano na experiência da retenção do conhecimento, de modo que a qualidade da cera (moleza ou dureza, impureza ou pureza, etc.) corresponde aos atributos de Nitidez e Cristalinidade da Percepção, falando monadofilicamente, já como produtos da liberdade humana na ação da passividade da nossa atenção consciente (no caso da Nitidez), bem como na ação da atividade da nossa reflexão autoconsciente (no caso da Cristalinidade). Mas isto pode ficar ainda melhor, e ser maximamente otimizado do ponto de vista espiritual, através do Discernimento, com a hipótese da Metareflexividade: a qualidade do “sinete” que produz a Nitidez é definido pela Graça da luz divina, tanto quanto a qualidade da “cera” que retém a Percepção é a Cristalinidade da mônada, igualmente sustentada e animada pelo Espírito Santo de Deus. Assim, não depende tanto da educação, e nem das circunstâncias tais como a herança genética, ou meio de criação, mas da liberdade de aceitação ou não da Graça divina, a obtenção da qualidade da Percepção como origem de todo conhecimento possível. Voltamos, assim, do gnosticismo de Platão à vida moral de Sócrates, e daí para a iluminação divina como origem de todo saber.

Será preciso um Aristóteles para dar seguimento ao problema da Epistemologia para além da teoria das Idéias platônicas, bem como será preciso o pleno desenvolvimento do combate entre aristotélicos-tomistas e agostinianos-franciscanos para que as opções ficassem claras à nossa geração.

Ainda no âmbito do Teeteto, porém, devemos reconhecer o respeito de Platão ao seu mestre Sócrates, reconhecendo ao fim que as suas teses de explicação sobre a natureza do conhecimento, quais sejam, a de que o conhecimento é a percepção (tal como dada pelos sentidos), ou a de que o conhecimento é a opinião verdadeira acrescida de explicação racional, são insuficientes para dar a questão por resolvida. Sócrates, com a última palavra, decreta a sua sabedoria do não-saber, o que nos dá uma satisfação final com este trabalho platônico:

Nota espiritual: 4,7 (Moriquendi)

Humildade/Presunção7
Presença/Idolatria5
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo2
Vigilância/Ingenuidade5
Discernimento/Psiquismo4
Nota final4,7

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