Em Górgias, o diálogo se dá em torno do tema da Retórica, iniciando pela disputa do objeto desta arte, mais ou menos no mesmo padrão que vimos na discussão sobre o objeto da arte sofística no livro anteriormente analisado, Protágoras.
É afirmado, e com razão, que há uma grande diferença entre a persuasão que move a crença e o ensino que transmite o conhecimento, sendo a Retórica uma atividade dirigida para o primeiro tipo de objetivo.
Um agravante no resultado da conduta do retor, em linha com a sua disposição mais interessada no convencimento do que no conhecimento, isto é, com amor maior à produção da imagem da verdade do que à descoberta da verdade, é que ele se torna mais convincente, sendo ignorante da matéria sobre a qual discursa, do que o especialista que possui maior conhecimento do assunto, mas menor conhecimento da arte retórica.
Mas fica implícito também, e entendemos isso em análise apartada já publicada, que se o público ignorante não distingue a competência de um conhecedor da de um argumentador para produzir o seu próprio juízo, e igualmente não pode confiar indiscriminadamente numa solução de certificação institucional –já que a sociedade não é mais capaz de eliminar o engano do que o são os indivíduos que a compõem–, ao fim parece ser mais razoável que cada um tenha mais amparo na solidez de uma Soberania esclarecida enquanto dom, respondendo à sua própria consciência, do que na impossível tarefa de desfazer-se de todo tipo de ignorância que prejudica um juízo.
O componente mais nobre do Górgias é a defesa socrática do bem próprio da Justiça, usufruído na alma do seu amante (ou seja, um testemunho da vida interior), na fórmula de que é melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la, e que é melhor ser punido por um mal do que sair impune. Analisamos isto de forma apartada, como foi muito merecido. No contexto desse tema, Sócrates exalta a sua posição de requerer apenas o testemunho do seu interlocutor (seja Pólo ou o próprio Górgias), em contraste com o procedimento sofístico de buscar o ganho das causas com o arrolamento de testemunhas em maior número e de maior prestígio. O discernimento moral da parte de Sócrates é espetacular. Como que, diante disso, até hoje as pessoas perdem tempo com filosofias tão inferiores, como o estoicismo, etc., para não falar das várias idolatrias religiosas que colocam o foco no exterior do homem, quando existe um testemunho tão excelente como este, pagão, com mais de vinte séculos de história?
Do meio do diálogo para o fim, Sócrates disputa com o mais enfezado e arrogante de seus adversários, Cálicles, que faz uma defesa absurda da lei da natureza (do mais forte), ao modo nietzscheano, darwinista, nazista, etc. Sócrates o humilha, embora faça uso de uma mistura entre convenções e intuições genuínas. Elogia a religiosidade, e até cita, ao fim, o mito de um juízo final com punições aos tiranos, mas não sem deixar a marca da sua humildade declarando que um dia algo melhor poderia ser revelado, e sem terminar por enfatizar que o maior objetivo do bem é ele mesmo, praticar a justiça, a moderação, etc.
Sutilmente, no meio do caminho Platão evidencia como a alma é mais livre e soberana da parte de quem resiste à produção do mal, do que da parte de quem quer resistir ao sofrimento do mal, já que ao primeiro basta a Vontade, mas ao segundo se exige que à Vontade seja somado o Poder, o que tende a corromper todo aquele que teme ser vítima de injustiça, porque ambiciona um domínio que vai para além de si mesmo. Um elogio formidável ao dom de Paixão.
Nota espiritual: 5,9 (Calaquendi)
| Humildade/Presunção | 6 |
| Presença/Idolatria | 5 |
| Louvor/Sedução-Pacto com a Morte | 6 |
| Paixão/Terror-Pacto com o Inferno | 9 |
| Soberania/Gnosticismo | 5 |
| Vigilância/Ingenuidade | 5 |
| Discernimento/Psiquismo | 5 |
| Nota final | 5,9 |