O diálogo cujo assunto é a erística, ou seja, a arte da discussão como fim em si mesmo, é aberto com a exibição da capacidade de jogar com palavras ignorando-se a verdade de seus sentidos particulares e qualificados, um expediente que obviamente não impressiona Sócrates, e na verdade só pode nos irritar, principalmente a reação de riso debochado e escarnecedor da plateia ao ver um amante de discussões perturbar a paz e “vencer” um amante da sabedoria. De todo modo esse tipo de ensino propunha tornar virtuosos os seus aprendizes, e Sócrates não deixa de querer investigar essa possibilidade.
Mas então, depois de algumas falas sem sentido da parte dos sofistas, Sócrates assume o comando da situação com sua própria proposta de exortação da virtude (a Filosofia, ou amor pela sabedoria), iniciando pela demonstração que acima de todos os bens mundanos, como a saúde, a riqueza, a beleza, etc., está a sabedoria, pois sem ela todos esses bens tornam-se potencialmente males, pelo seu mau uso, de modo que a sabedoria é o principal dos bens, já que permite ao ser humano o usufruto adequado de todos os demais. Essa concepção clássica é irrefutável enquanto ideal de conhecimento, mas é inviável enquanto realidade pela limitação constitutiva da sabedoria humana. É no limiar dessa fronteira que encontramos a distinção dos territórios de Sócrates e Platão, o primeiro mais satisfeito com a condição humana, e o segundo mais pretensioso em seu Gnosticismo.
Em seguida, porém, os sofistas Eutidemo e Dionisodoro continuam produzindo seus truques verbais no intuito de causar perplexidade e paralisia. Um adversário deles, Ctesipo, chega ao cúmulo da irritação, mas é apaziguado por Sócrates, que oferece a muito mais digna e sólida posição de se levar a sério o discurso alheio até o fim, uma deliberação que é na verdade invencível, embora seja muitas vezes difícil de se manter, se não se possuir a necessária frieza.
Até o fim deste diálogo parece que Sócrates apenas ironiza a suposta sabedoria dos adversários, mas há que se considerar uma outra possibilidade. Quando dizem grandes e óbvios absurdos, como que o conhecimento de uma coisa constituiria o conhecimento de todas (e desde sempre), bem como que a paternidade de um ser significaria a paternidade de todos, etc., a prática desconstrucionista dos sofistas não deixa de ser um reflexo dos limites da linguagem humana, e de todo discurso no fim das contas: não é possível produzir um testemunho completo a respeito de nada, porque as predicações e qualificações tenderiam ao infinito e nunca bastariam. Tanto a premissa quanto a conclusão de um argumento encontram-se numa realidade que transcende a linguagem necessariamente. A prática erística apenas evidencia que a comunicação humana é um jogo que depende da credulidade dos participantes, e embora evidencie isso com exemplos muito exagerados, nos dá o que pensar a respeito dos casos menos óbvios e mais sutis, sobre o quanto também não são efetivos com base na mesma lógica de crença numa suficiência que nunca é esgotada no discurso. Isto quer dizer que, mesmo que indiretamente, a erística favorece a recepção dos dons de Humildade e de Soberania.
Gnosiologicamente, compreendemos isso pelo limite da Percepção da mônada criada, determinada pela sua forma substancial. A linguagem humana, afinal de contas, repercute apenas parte do que é objeto de sua Percepção, mas esta própria experiência de perceber só realiza, de cada vez, uma ínfima parte daquilo que é possível de ser percebido, no infinito escopo da Possibilidade Universal. Assim sendo, apenas o Intelecto da Mônada Incriada possui em si a satisfação da plenitude da sua Percepção, enquanto a mônada criada, por seu turno, se realiza na satisfação determinada pela sua forma limitada de ser, em que cada Percepção é sempre parcial e finita, e só precisa atender também a uma Apetição igualmente parcial e finita. Filosoficamente, isso implica na admissão dos limites do conhecimento humano com espírito de contentamento e gratidão, o espírito exatamente contrário ao Gnosticismo luciferino. O objetivo da linguagem humana nunca deve ser o da Pretensão, isto é, o de desejar o domínio da verdade, já que aquilo que é verdadeiro o é tão mais quanto é divino, isto é, o quanto escape do nosso controle e nos transcenda. Há, na postura de Sócrates, em contraste com a de Platão, um aceite muito mais adequado a essa condição humana. E, bem tratado, sem preconceitos, o testemunho a respeito das provocações de Eutidemo e Dionisodoro, vemos que esses irresponsáveis acabam tendo sua função na desmoralização da falsa veracidade de alguns responsáveis, mais ou menos como desempenham seus papéis os bobos da côrte ao ridicularizar aqueles que não podem perder a pose de suas supostas seriedades.
Note-se que Platão, mesmo sendo tão empolgado com as perspectivas gnósticas da Filosofia, não deixa de ser fiel em seu testemunho, nos permitindo ligar pontos que ele talvez não pudesse, ou não quisesse ligar. Onde os sofistas parecem argumentar com a mesma lógica dos eleatas, há um rastro de investigação da Unidade do Ser e, portanto, da forma da mônada. Senão vejamos: quando afirmam que o conhecimento de uma coisa é o mesmo que o conhecimento de todas, não estão falando da Percepção potencial? Embora apenas em Deus a atualidade da Percepção seja total, ela não é virtualmente total também na mônada criada, que apenas passa de uma Percepção para a próxima, mas sempre o tendo podido fazer diversamente, ou seja, sempre tendo podido de fato conhecer qualquer coisa? Essa possibilidade não é simultânea? E mesmo não sendo conhecimento em ato, não é em potência? O conhecimento de uma coisa não implica, por definição, a potência de conhecer todas as demais? E essa potência não é imediata? Platão mesmo, de certo modo, não vai poder escapar disso mais tarde, quando apelar para a Reminiscência, já que o problema existe: como algo pode vir a ser conhecido, isto é, reconhecido na sua idéia ou forma, se antes não fosse conhecido de algum modo antes de maneira que permitisse o seu reconhecimento depois? Pois bem, esse antes e depois que separam, no tempo, as diversas Percepções da mônada criada nada mais são do que funções da realização do Intelecto limitado: não existe, de fato, separação na Unidade da própria Substância Simples. De modo que o Intelecto apenas reconhece na sua intuição aquilo que é sucessivamente percebido de forma distinta e múltipla, mas que possui substância unificada e singular. Dito de outro modo: apenas em Deus o Intelecto apreende a Unidade, porque é infinito. Nas criaturas, o Intelecto finito só pode apreender representações parciais do seu ser. O ser da mônada criada continua sendo a Unidade da Substância Simples, mas a Percepção é a da representação da sua Multiplicidade. É deste modo, então, que o conhecimento de uma coisa pode ser o conhecimento de todas, na possibilidade virtual do Intelecto, já que a Unidade do Ser contém, de maneira simultânea, todas as potências intuitivas. Se, obviamente, tanto a Apercepção humana quanto a linguagem do seu testemunho não podem produzir essa Unidade, isso não se dá por um defeito, mas por um limite. É claro que estes sofistas não quiseram dizer nada disso. Mas, brincando com as palavras, nos forçaram a reconhecer esses limites da linguagem humana não como defeitos, mas como realidades constitutivas, assim como os Céticos o farão no futuro. Porque o impulso na direção contrária, da Pretensão de um discurso terminativo com todas as distinções de todas as predicações possíveis, mostrar-se-á tão ou mais absurdo ainda quanto esta lógica erística. É nisso que vai dar o Gnosticismo filosófico: na crítica e finalmente na desistência da filosofia moderna contra a sabedoria medieval dos “contadores de fios de cabelo”, e dos “lenhadores da lógica”. Mesmo quando os sofistas afirmam, no Eutidemo, mais absurdamente ainda, que a paternidade de um significaria a paternidade de todos, todo o erro dessa proposição está contido na Pretensão da atribuição de veracidade a uma relação historicamente condicionada por uma causalidade particular. Sendo a paternidade contingente tão restrita e condicionada, com que direito o ser humano pode chamar isso de paternidade no sentido de uma verdade plena? Com nenhum direito. E se o pudesse, então as proposições dos sofistas teriam que ser admitidas, o que resultaria numa redução ao absurdo. Uma verdade parcial, temporalmente condicionada, causalmente contingenciada, não deixa de ser uma verdade, mas o é tanto quanto qualquer outra na vasta manifestação da Multiplicidade, isto é, não tem a força unificante da verdade apodíctica. Isso não é um detalhe filosófico. Na verdade é essencial e repercute a sabedoria do dom da Presença. Quando Jesus mesmo, pessoalmente, nos ensina a não chamar a ninguém de “pai”, mas apenas a Deus, ele está dizendo a mesma coisa: a paternidade no sentido verdadeiro e transcendente, só pode ser uma qualidade divina. E aí entendemos como a verdadeira paternidade é exatamente como a que estes sofistas do Eutidemo apregoam: o verdadeiro Pai é de tudo e de todos. É claro que eles não produziram essa consciência, e nem sequer uma Filosofia digna desse nome, e ficam restritos ao trabalho mais negativo, destruidor. Mas isso tem a sua função na história das idéias.
Por fim, mas não por último, encontramos um curioso testemunho do interlocutor original de Sócrates em Eutidemo, Críton, que pode ser bastante significativo para nós:

Críton percebe que a forma convencional que o seu desejo pelo bem dos filhos costuma tomar perde o sentido diante da atividade socrática, já que todo o bem que é mundanamente considerado se torna no mínimo relativo, ou mesmo fútil, diante da busca filosófica. Uma prova disso pode ser obtida com facilidade no próprio conteúdo do Eutidemo, quando Sócrates afirma que a Sabedoria é o maior dos bens, já que sem ela todos os outros se tornam inúteis. Críton entende, assim, que na busca do bem de seus filhos negligenciou a parte mais importante, que é a educação deles. Porém, quando se dirige àqueles seres humanos que se propõe a realizar a educação, principalmente no sentido do ensino da virtude, verifica que eles não são capazes de fazer o que prometem. Críton, enfim, não sabe como persuadir seu filho a ser filósofo.
A resposta de Sócrates é bem convencional: faça o melhor que pode, e fique alerta, mesmo contra os filósofos.
Mas podemos e devemos explorar o testemunho de Críton. Ele está perto de admitir que o maior bem para seus filhos seria que os estimulasse a buscarem a Sabedoria, ou seja, a serem filósofos. Porém, a verdadeira Filosofia não é uma atividade que confirmará as pretensões iniciais do próprio Críton: não servirá para validar a razão das instituições do casamento, da paternidade, do comércio, da guerra, ou da educação cívica (política). Isso é o que o transtorna. Para amar verdadeiramente seus filhos, Críton teria que os ver completamente livres e desimpedidos para perseguir a Sabedoria que transcende todas essas instituições e costumes que parecem concentrar os bens humanos, mas que no fim são parciais ou até mesmo falsos. Ora, para fazer isso, Críton teria que ser capaz de um ato extremamente liberal e altruísta, bem difícil: o de estimular seu filho a buscar um bem que transcende os falsos bens nos quais ele mesmo acreditou até a véspera.
Amar o próximo, inclusive um filho, é desejar, afinal, a liberdade deste inclusive contra o próprio interesse paterno, quando for descabido. Amar é desejar a liberdade do amado.
Nota espiritual: 5,7 (Calaquendi)
| Humildade/Presunção | 7 |
| Presença/Idolatria | 6 |
| Louvor/Sedução-Pacto com a Morte | 5 |
| Paixão/Terror-Pacto com o Inferno | 5 |
| Soberania/Gnosticismo | 6 |
| Vigilância/Ingenuidade | 6 |
| Discernimento/Psiquismo | 5 |
| Nota final | 5,7 |