Fedro, livro por PLATÃO

Antes mesmo de entrar no tema do diálogo, Sócrates, perguntado a respeito de sua opinião sobre o questionamento da validade de certos mitos, já nos dá um excelente testemunho de Humildade, realmente de grande valor:

Ele diz que as mitologias são “coisas sem relevância”, em comparação com o autoconhecimento, e que não faz sentido se dar ao trabalho de investigar esses temas diante da muito mais urgente tarefa de saber quem se é. Esse testemunho não só constitui elogio da Humildade, mas é uma certa disciplina monadológica, e um certo testemunho indireto também do dom da Presença, desde que tudo o que experimentamos parte do sujeito da experiência, esse Eu com que lidamos desde que nascemos e que, não obstante, permanece misterioso, de modo que partimos para a investigação das coisas do mundo –para não falar de planos de conquistas e domínios– sem nem ao menos realmente compreender a nossa própria natureza, dando-a por subentendida como se não fosse misteriosa. Ora, de certo modo Sócrates está na pista da Mônada, porque a conclusão da busca do autoconhecimento é a descoberta da singularidade indeterminada da Substância Simples, e mais ainda, a descoberta também da imagem e semelhança de Deus. Por outro lado, a dispersão pelos elementos do mundo, e especialmente o foco nos caracteres simbólicos que simulam o conhecimento (produzem a imagem da verdade), costuma levar para a Idolatria.

Eventualmente começa a discussão do tema do diálogo, a partir da leitura de um esboço do discurso de Lísias que o interlocutor de Sócrates, Fedro, vai fazer.

Em resumo, o discurso de Lísias elogiava o amor da amizade, philia, sobre o amor da paixão, eros, afirmando que os amigos fazem maior bem a si mesmos e aos outros do que os apaixonados, por diversas razões, mas principalmente por fidelidade aos seus reais interesses, e pela perenidade da amizade em face da leviandade da paixão, de tal modo que alguém interessado em escolher um amante deveria priorizar o não-apaixonado, movido tanto pelo desejo erótico quanto pela amizade, do que o apaixonado que se move apenas pelo desejo erótico.

Dando continuidade ao raciocínio de Lísias expresso por Fedro, Sócrates evidencia como a paixão tende a resultar em desejo de controle e poder, ao contrário da amizade que busca o melhor do outro. Vejamos a passagem que ilustra isto com clareza:

Isso se qualifica como um testemunho atenuado do Discernimento, contrário aos racionalismos psíquicos que apenas tendem a reforçar a busca do poder. Reconhecer o interesse do outro contra o nosso próprio só pode ser fruto de um dom espiritual de Discernimento.

Continuando a exibição da inferioridade da paixão, é afirmado que para além do intelecto, o amante apaixonado também prejudica o desenvolvimento do seu alvo, nas suas relações familiares, de amizade, etc., por causa de sua obsessão possessiva. Porém, passada a febre da paixão, todas as promessas serão quebradas pelo novo desinteresse, e aquele que poderia se achar amado se verá na verdade traído e abandonado por um mentiroso. A paixão leva à essa mentira, porque é um desejo de poder, e a busca do poder é um empreendimento como que o da conquista militar, isto é, requer a astúcia, o engano, a arte da guerra. Esta citação da fala de Sócrates resume tudo: “tal como o lobo acolhe com amizade o cordeiro, assim age como amigo o amante com seu amado“.

Pude experimentar todas as variáveis dessa exposição na minha própria vida, como costuma ser o privilégio de quem já tem alguma experiência: já desejei, apaixonado, e prometi o que não devia, me tornando depois um tanto traidor; já desejei e me censurei na minha ambição, praticando o autocontrole e me distanciando do objeto de desejo por ter mais medo de fazer o mal do que de fruir um prazer; e já desejei com a liberdade do amigo que considera o bem do amado tão valioso quanto o meu, sendo essa, sempre, a mais abençoada de todas as relações. Até mesmo os velhos casais que ainda se amam afirmarão isso todas as vezes: que a sua amizade é mil vezes superior à sua paixão no que determinou o sucesso da sua relação, embora a paixão às vezes cumpra o papel das aproximações e da vitória sobre a timidez, etc., o que pode ser muito importante ou até decisivo no início de um relacionamento. Assim, o desejo erótico, regulado pelo autodomínio que impede a cegueira da paixão, pode produzir bons resultados, como estímulo para a aproximação e geração de intimidade, embora isso requer que pelo menos uma das partes, geralmente a mais experiente, tenha mais apreço pela amizade do que pela satisfação sexual. Infelizmente essa arte parece perdida num mundo soterrado pela cultura da gratificação instantânea, do prazer superficial, etc. Sobram quase que apenas dois horrores: a escravidão das obrigações dos contratos de casamento, e a escravidão do impulso pelo desejo sexual que vê no outro apenas um objeto de prazer. Os maiores prazeres, possíveis apenas através do autodomínio e do amor verdadeiro, já são a exceção nesse mundo de escravos. Mas a minha digressão já foi muito longe.

Voltando ao Fedro, Sócrates, como de costume, depois de nos dar um discurso que parece suficiente e final, resolve nos desmoralizar defendendo o oposto de tudo o que afirmou. Apela para a mitologia de Eros, afirmando que o deus não poderia ser maligno, e até para o elogio da loucura como fonte divinatória de certa sabedoria. Mas não é tão difícil quanto possa parecer fazer o ajuste disto ao que se observava antes, bastando que se entenda o valor positivo da paixão no contexto de um bem maior que será possibilitado pela mesma, nos termos em que eu mesmo já disse. O ser humano muito centrado na sua racionalidade, totalmente baseado no autocontrole, pode tender a uma apatia que impede o desenvolvimento de realidades desejadas pela providência divina. E um modo apropriado pelo qual Deus pode quebrar a frieza, a timidez, ou simplesmente o medo, é através de um desejo incontrolável, desde que este seja tão logo quanto possível temperado por virtudes superiores, assim que isso se tornar mais conveniente, ou seja, assim que a resistência inicial ao desenvolvimento tenha sido vencida. Do contrário estamos presos na petrificação exemplificada na censura apocalíptica contra a Igreja de Éfeso.

Em seguida, para dar razão a sua idéia numa perspectiva mais aprofundada, Sócrates anunciará a imortalidade da alma, no que para mim parece ser mais uma doutrina platônica do que socrática. Essa idéia não deixa de ter seus méritos laterais, embora nos leve a certos enganos gnósticos. De fato, a origem do movimento deve ser a permanência, e a origem do que foi gerado deve ser aquilo que não foi gerado e que, portanto, também não possa ser destruído, porque sempre foi o que é. Então deve haver algo de imortal para que outras coisas não o sejam, e algo de não gerado e automovente, para que haja o que é gerado e movido. Esta, é claro, é a Unidade, a forma do ser, que chamamos de Mônada ou Substância Simples, e que dá origem ao Múltiplo. O problema é que a própria multiplicação dessas unidades implicam na sua relatividade ao Princípio Absoluto, ou seja, à Unidade perfeita, fora que o não início de uma pré-existência não pode ser atribuído à individualidade humana senão por crença. Aqui é onde Platão provavelmente interfere na doutrina de Sócrates, atribuindo veracidade a certas crenças gnósticas, inclusive e principalmente de participação na divindade.

Logo Platão se referirá a uma alma presa a um corpo numa forma animal, e às respectivas viagens de ascensão e decadência, conforme o Intelecto busca a verdade das coisas, que é a origem remota da alma, ou conforme busque a aparência das mesmas (opinião), distanciando-se dessa origem. De qualquer modo o empreendimento é árduo. Nenhuma alma volta ao ponto de origem, isto é, obtém a ciência das coisas reais e se liberta das ilusões da opinião, sem antes passar por dez mil anos de experiências em diversas reencarnações, com a exceção dos filósofos sinceros. Fica um tanto difícil unir essa concepção com a cristã, exceto por analogia com as diferenças entre a Primeira e a Segunda Ressurreição, onde talvez encontremos uma aplicação mais aproximada, sendo nesse particular o filósofo aquele que busca a verdade por trás da mentira, e que dá o testemunho dessa busca. É afirmado que todo aquele que é encarnado como ser humano já viu alguma vez a verdade, porque só isso explicaria a sua capacidade de reconhecimento das idéias (ou formas) por trás dos fenômenos. Platão justifica, assim, a sua ontologia pela sua epistemologia, não encontrando outra solução para o milagre da inteligência humana. Quem utiliza adequadamente as memórias dessa experiência divina são aqueles “iniciados nos perfeitos mistérios“, que obviamente serão desprezados e censurados pelas pessoas ordinárias, que não fazem o mesmo uso de sua potência intelectual. Podemos ouvir Jesus nos dizendo que sua escolha “nos separou do mundo, e por isso o mundo nos odeia”, mas é somente uma adaptação.

Retomando a explicação da justificação da loucura da paixão, Platão conecta essa idéia com a noção de que aqueles que contemplam uma beleza que lhes lembra o que é divino tendem a ser dominados por essa contemplação, e é por isso que com justiça ficam obcecados, isto é, perdem aquilo que achamos que é a sanidade apenas porque normalmente não temos a mesma memória feliz daquilo que é excelente.

A partir daí Platão se dedica mais detidamente ao problema particular do relacionamento do tipo que gerou a discussão, ou seja, como aquele entre Lísias e um jovem a quem este convenceria a ser seu amante através do discurso que Fedro memorizou e agora reproduz para Sócrates. Vai justificar essa paixão particular como muito vantajosa para o filósofo, motivo pelo qual a reclama para si, como se fosse um artista reclamando o seu direito de se inspirar numa musa. Mas tem dificuldades para mostrar porque Sócrates é melhor do que Lísias, na disputa pela atenção de qualquer amante, apenas acusando o sofista de fingir continência e autocontrole, mas sem poder provar realmente isso, senão pela distinção de que um é Filósofo e o outro é Sofista. O ideal do amor platônico deve transcender a queda aos usos mais baixos da paixão, e é assim que se realiza o “παιδεραστήσαντος μετὰ φιλοσοφίας” (“paiderastésantos metà philosophías“, “amante filosófico de rapazes”), que consegue usar a paixão para uma elevação da alma, enquanto os incapazes de tal ascese se vêem presos ao uso baixo da paixão. Eu estaria disposto a indicar que isso é um elogio do Louvor, se tão somente Platão reconhecesse que o mal não está na fruição de um prazer, mas na busca deste através da injustiça, seja contra si próprio ou contra o outro. Como ele não faz isso e, ao contrário, faz questão de afirmar que a satisfação com prazeres é o que ancora a alma na falsidade das aparências, sou obrigado a recusar a dação dessa nota positiva. Podemos até reconhecer que ele não dá o testemunho da Sedução, ou Pacto com a Morte, mas também não anuncia a verdadeira liberdade do dom de Louvor, pois precisa fugir do prazer como se ele fosse mal. Ao mencionar as tais asas que podem crescer ou diminuir, e permitir vôos mais altos ou causar quedas mais bruscas, Platão está literalmente identificando a condição da Mistura com um decaimento espiritual, e recomendando a solução numa certa forma de transhumanismo. E, o que é o pior de tudo, e a marca realmente gnóstica dessa doutrina, a salvação da alma depende de um esforço humano, e não de uma pura Graça divina que pode ser aceita ou rejeitada. Detalhe: como podemos saber que Sócrates, senão o filósofo real ao menos o personagem platônico de Fedro, não mente, para si e para outros, tanto quanto acusa a virtude de Lísias de ser falsa? Tenho que confiar nele, porque se diz Filósofo?

Depois de tudo isso, o diálogo passa a versar sobre a arte do discurso, um tema muito comum para Platão, e da questão sobre se essa arte pode ser usada para a expressão da verdade, ou apenas para a produção da imagem da verdade.

Afirma-se que a arte retórica, usada pelos Sofistas, tende à mentira, ou no mínimo à indiferença com relação ao que é verdade, pois convence-se mais facilmente um juiz, ou audiência, a respeito do que é mais provável, do que a respeito do que é mais verdadeiro. Mais especialmente nós verificamos o dano desse procedimento humano, da arte do convencimento, nos âmbitos públicos da Política e da Justiça, quando justamente a verdade mais conveniente é a mais difícil de ser apreciada, por se tratar, com frequência, de uma excepcionalidade que fere o senso comum no sentido da probabilidade. Assim, é mais fácil convencer uma platéia do mérito da continuidade do Pecado Original do que do seu rompimento, e da conveniência do enriquecimento e do armamento da sociedade, do que do cultivo do espírito, etc. As coisas mais nobres e belas são as mais difíceis de se defender em termos populares, no convencimento através da razoabilidade das probabilidades. O bom, que per se é a regra do Ser, por ser sua forma, no âmbito da experiência da Mistura se torna excepcional. É assim que se despreza, publicamente e coletivamente, os méritos do perdão, da contrição, da humildade, etc., e se exalta os seus opostos, como a vingança, a vaidade, o orgulho, etc.

Em uma passagem muito notável que merece ser relida e meditada, Platão defende a propriedade humana, interior, da Sabedoria, como qualidade viva de um ser vivo, contra a pretensão da produção de uma verdade fora da consciência, especialmente na forma de um discurso escrito. Esta parte do Fedro, sozinha, seria capaz de destruir a idolatria de textos sagrados, como aquela que se pratica no âmbito das religiões bíblicas, etc. Vejamos:

Entenda-se corretamente que a palavra escrita pode ser muito útil, sim, para aquele que a tem originalmente registrada interiormente, isto é, para quem a tem como conteúdo de consciência através da qual a leitura serve como mero instrumento que facilita a memória.

Isso pode parecer estranho desde que aprendemos que através de leitura nos educamos a respeito de coisas novas, mas se o estudo do que quer que seja não reproduz algum conhecimento já possuído anteriormente na alma do estudante, como ele poderá reconhecer a veracidade daquilo que supostamente aprende? No que se difere uma pura ficção, de um aprendizado real, senão essa qualidade da semelhança com o que já é posse da alma do aprendiz?

Por outro lado, a idéia de que a Sabedoria se encontra nos livros, essa grande tolice, faz o ser humano ser escravizado, e com razão, pelos doutores das letras, seja no âmbito político do entendimento das Leis, seja no religioso no âmbito das Escrituras etc.

Entende-se assim, também, como é precioso o autoconhecimento, porque uma alma cuja visão está embaçada pela confusão interior não pode fazer nada além da coleção de imagens exteriores e a repetição do sentido das mesmas, de acordo com o valor de face destas atribuído por terceiros, sem nunca se apropriar realmente do que lhe interessa. Muitas pessoas podem viver assim, e isso é lamentável. O que as move a essa vida de imitação? Provavelmente o medo da responsabilidade por sua vida interior.

Em nossa última citação, e num excelente elogio do dom da Humildade, encontramos Sócrates recomendando o domínio interior da busca da verdade, contra os registros externos, as repetições, as memorizações, etc.:

Mas este indivíduo capaz de responder por si, essa pessoa inteligente e realmente interessada na verdade, por maior que seja, não é ainda um sábio, porque só Deus o pode ser; mas é filósofo, o amante da Sabedoria.

Nota espiritual: 5,6 (Calaquendi)

Humildade/Presunção7
Presença/Idolatria8
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo3
Vigilância/Ingenuidade5
Discernimento/Psiquismo6
Nota final5,6

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