Com esta obra nós enxergamos melhor o escopo da ambição filosófica de Platão. Dando continuidade ao seu estudo a respeito do ideal político com a República, o filósofo agora pretende inserir aquele trabalho numa cosmovisão metafísica mais ampla. Por esta mesma razão, no Timeu teremos um platonismo mais arriscado do que aquela filosofia moral mais simples de Sócrates.
Minha impressão é a de que o mais valioso aqui é o fundamento metafísico do Cosmos, de modo que o detalhamento da função do demiurgo, ou da sua obra em particular, não é tão importante quanto a relação entre o Uno e o Múltiplo. Ao contrário de Pitágoras, e depois também de Plotino, Platão tem mais desejo de dominar o Múltiplo com sua filosofia do que de contemplar o Uno, do contrário sua obra não teria a forma que tem, ressalvada a hipótese das doutrinas não escritas (G. Reale). Mas Platão tem que lidar com o problema. Vejamos:

O problema de como o que não é por si vem a ser sem jamais possuir o ser em si é gigantesco e corresponde, na ontologia, ao problema do conhecimento dos particulares na epistemologia. E o que impede Platão de atingir melhores resultados não é a sua inteligência, por certo, já que ele a tem em excesso, mas o vício da premissa dualista do gnosticismo. Isso fica denunciado pela sua linguagem quando ele diferencia “discurso racional” de “sensação irracional”, quando o mais correto seria diferenciar a Apercepção sob o nosso controle psíquico da Percepção que está fora desse controle. E ele precisaria prestar atenção somente em Sócrates para seguir a pista da moral e da psicologia, no lugar da geometria e afins. Bem entendida, monadofilicamente, a diferença entre o que é e o que vem a ser é a da posição no processo da Percepção pelo Intelecto: aquilo que é percebe a si mesmo sob o aspecto do particular que vem a ser para si como objeto percebido. Como uma pessoa que para se enxergar tira fotos de si mesma por vários ângulos, e essas fotos constituem o vem-a-ser da sua Percepção que não pode apreender sua própria unidade integralmente. Por qual razão isso escapa a tantos filósofos? Novamente, não é por falta de capacidade, mas por falta de interesse, justamente porque existe essa obsessão com a atribuição de substância ao mundo, à natureza, ao Cosmos, etc. Ou seja, também intelectualmente, ou filosoficamente, a idolatria é a origem do mal, todas as vezes.
O antídoto espiritual contra a Idolatria é o dom da Presença.
E o antídoto intelectual contra a Idolatria é a doutrina da Mônada.
Basta que o ser humano apreenda a inviolabilidade da integridade da Unidade do Ser para que ele chegue em conclusões bem melhores e mais fáceis do que foi produzido por padrão historicamente, com exceções como as de Plotino, Leibniz, etc. Se o objeto da Percepção é apenas uma função dela, não é necessário afundar-se na impossível justificação ontológica desse objeto, porque ele não pode ser reconhecido senão como reflexo do Ser real, que tem sempre e somente a forma da Unidade.
Antes de passarmos ao próximo tópico filosoficamente relevante, convém mencionar que é no Timeu que Platão faz o relato, que teria provindo originariamente do Egito, de que os ancestrais dos gregos haviam guerreado contra a Atlântida, e que esta nação continental depois passou por um terrível cataclisma. É um dos registros mais antigos sobre o tema, e um dos mais citados. Lembremos sempre que a história humana é convenientemente apagada de tempos em tempos, para que não se tire do estudo dela quaisquer conclusões espiritualmente danosas para a Tradição Primordial e para o Pacto Ouroboros, e é por isso que vemos relatos à respeito da destruição de registros, como já vimos, por exemplo, no relato de Agostinho sobre a documentação da fundação de Roma por Numa Pompílio, ou o famoso incêndio da Grande Biblioteca de Alexandria, razão pela qual esse relato a respeito da Atlântida nos veio pelo testemunho indireto de um grego, e não do próprio Egito que foi, supostamente, o local da fonte primária dessas informações.
Veremos em seguida um testemunho claro do dom da Humildade, quando Platão trata da dificuldade probabilística do vir-a-ser em face da certeza do Ser, o que abre a possibilidade de contemplar até os outros dons de Soberania e Presença:

O ser humano incapaz de superar a probabilidade e que aceita esse fato, recebe de Deus o dom da Humildade. Quem aceita que a verdade é melhor que a crença, mas que quase nunca nos pertence, de modo que a opinião é necessária para a vida humana, recebe o dom de Soberania. Já quem nota a insubstancialidade daquilo que é subordinado ao princípio de geração e corrupção (o vir-a-ser platônico), em face da Substância divina, recebe o dom de Presença.
Uma das passagens mais notórias do Timeu, em termos do puro esforço filosófico de Platão, é esta em que ele trabalha a comunicação ontológica entre o ser e o vir-a-ser:

Isso é mais complicado do que deveria, e na verdade leva a aporias insolúveis. A solução é monádica, e satisfaria tanto a Parmênides quanto a Heráclito: só a Substância Simples possui o Ser em sua Unidade, mas ela tem a Percepção de si mesma pelo reflexo da Multiplidade de seus aspectos. Ora, o reflexo não possui Ser, mas é real enquanto objeto da Percepção do Intelecto. Assim, a comunicação entre o Uno e o Múltiplo não é ontológica, mas intelectual. Como o Intelecto criado não é infinito, sua Percepção da Unidade nunca pode ser total e, portanto, dá-se pelo movimento que, por seu turno, gera a dimensão do tempo que é percebido como função da Percepção do Múltiplo, por causa da necessidade da sucessão entre os objetos.
Que o tempo seja uma função da Percepção não é algo que podemos esperar aprender com Platão, já que, como vimos, ele está em outra pista. Mas sua definição do tempo não desaponta a nossa investigação, e podemos encontrá-la neste mesmo Timeu:

A “imagem móvel da eternidade” é uma definição explicitamente atribuída como implicação do limite do ser gerado em face da infinitude do Ser Eterno. Platão está muito próximo de um testemunho direto da Presença. Se avançarmos na História da Filosofia apenas uma geração, com Aristóteles temos o tempo definido como a medida do movimento de acordo com o antes e o depois, uma idéia que, combinada com a noção do próprio movimento como atualização de potências, justifica plenamente a dimensão temporal como função da Percepção para um Intelecto potencial, ou seja, criado. O tempo, assim, só “existe”, ou é percebido, por criaturas limitadas que carecem da experiência da sucessão para obter o conhecimento do Ser.
O caminho platônico, porém, é outro. De fato, por não seguir uma linha monadológica, Platão vai se enrolar, embora se esforce para resolver todos os problemas. Ele começa a narrar uma certa cosmogonia contraditória, onde um demiurgo bom produz um resultado onde existe algum conflito e desordem. Esse problema o faz apelar para o conceito de Necessidade (anánkes) em competição com a Razão, mas ele não consegue sustentar essa linha de pensamento sem justificar a própria Necessidade. Isso complica muito o seu idealismo. Um filósofo não deveria tirar entidades mitológicas do bolso por conveniência. Parece que a mente de Platão não quer, ou não consegue, conceber qualquer cosmovisão em que o Caos não seja considerado um elemento primordial e inquestionável. Mas qual é a origem do Caos? Se ele é de fato primordial e sem origem, então esse será o deus maior de todos os gregos? É difícil aceitar isso, e já desde antes de Platão: já Anaxágoras, Pitágoras ou Parmênides não poderiam aceitar tal fórmula, porque o Logos, o Número e o Ser repelem o Caos. Como teriam a força de fazê-lo, se ele fosse Absoluto?
A solução platônica será uma mistura de um gnosticismo anterior, aprendido, com uma invenção criativa do filósofo, quando ele vem com a sua teoria das idéias. Esse idealismo parece resolver o problema do conhecimento do Múltiplo ao declarar que por trás da sensação do transitório se pode distinguir as idéias eternas que são tantas quanto são os exemplares que se lhes assemelham. O que Platão faz, porém, é ampliar o problema, já que o entendimento do que é verdadeiro se torna agora um expediente difícil, possível apenas para uma casta seletíssima de filósofos. Para que fique claro: não há defeito no projeto idealista, que por si poderia ser ajustado e corrigido tanto quanto fosse necessário; o defeito vem do vício gnóstico que transporta o valor da experiência humana do campo moral, da Liberdade, para o campo intelectual, da Razão. Com Sócrates ainda se poderia concluir que a Verdade deve ser acreditada, por ser tão sublime e transcendente que somente a Vontade poderia alcançá-la como objeto de desejo, como uma contemplação amorosa. Já com Platão pode-se cair na tentação de considerar a Verdade um objeto de posse do Intelecto humano, ainda que só da parte de uns poucos ilustrados, os filósofos, como ele mesmo, é claro.
A obsessão de Platão com o domínio humano da Verdade é ilustrado abundantemente no Timeu pelo uso extenso que o autor faz de demonstrações geométricas na sua explicação a respeito da constituição da realidade. Bem entendido, esse expediente é apenas uma arbitrariedade. Mas tem o poderoso efeito psicológico de nos impressionar com conhecimentos inegáveis, apodíticos, querendo nos fazer crer que esse nível superior de credibilidade empresta imediatamente sua legitimidade aos outros componentes que por si mesmos são menos críveis. Mas isso só ocorrerá para aqueles que desejam exatamente isso, provavelmente tentados pela vontade de fazer parte dessa elite ilustrada. Assim, esse tipo de filosofia não é um discurso de uma espécie tão diferente da Sofística, mas apenas camufla o seu mecanismo persuasivo fazendo crer que a sua Retórica é na verdade uma Dialética. Ora, quem tinha a verdadeira Dialética era Sócrates, que podia a qualquer momento afirmar aquela sentença tão libertadora: não sei. Platão até iniciou esta obra nesse espírito, mas aos poucos vai se distanciando dele.
O resto do Timeu de Platão é dedicado às explicações que o filósofo conseguiu dar sobre a origem das coisas, e principalmente do ser humano, partindo de figuras geométricas, passando pelos quatro elementos primordiais, e chegando até a fisiologia do corpo humano. O que este tour-de-force nos mostra, à luz dos conhecimentos atuais, é como a Razão está a serviço da Vontade, provavelmente o contrário do que Platão gostaria que pensássemos a respeito de seu trabalho.
O filósofo só caiu nisso por ter se distraído demais com a riqueza da Multiplicidade, o que para um idealista como ele é surpreendente.
É difícil julgar espiritualmente esta obra, porque parece ser feita de duas partes, uma mais socrática e outra mais platônica, a primeira mais louvável, e a segunda mais lamentável. Infelizmente a média não será muito valiosa. O que é uma pena, numa obra desse calibre filosófico.
Nota espiritual: 4,6 (Moriquendi)
| Humildade/Presunção | 6 |
| Presença/Idolatria | 6 |
| Louvor/Sedução-Pacto com a Morte | 5 |
| Paixão/Terror-Pacto com o Inferno | 5 |
| Soberania/Gnosticismo | 3 |
| Vigilância/Ingenuidade | 3 |
| Discernimento/Psiquismo | 4 |
| Nota final | 4,6 |