Cartas, livro por PLATÃO

Nesta muito mais realista e crua parte da literatura platônica (ainda que sob o debate da falsa autoria) encontramos razões para desconfiar da sabedoria deste grande filósofo.

Primeiramente por sua defesa da oralidade, não por elogio da disciplina mnemônica, o que só pode ser uma virtude, mas por querer preservar como secretos certos ensinamentos, como que entesourados entre aqueles que compartilham da confiança do grupo. É verdade que Deus escolhe os seus sábios, mas quem é o próprio homem para administrar uma sabedoria que em primeiro lugar nem é sua propriedade? Tudo o que esse procedimento faz é aumentar a desconfiança entre os homens, as teorias de conspiração, e por fim legitimar todo tipo de fraude e estelionato. O segredo do poder é o poder do segredo. Desde que o Homem quis fundar na Terra o seu reinado de usurpação, ele tem que mentir e omitir, para fingir que faz outra coisa. A própria Tradição Primordial do Culto do Ouroboros não poderia ter sido tão camuflada e disfarçada ao longo de milênios se não fosse o recurso da oralidade na transmissão dos pactos entre as gerações.

Em segundo lugar, frustrado com a realidade política tão distante do ideal de sua filosofia, Platão redobra a aposta antropocêntrica e humanista no seu übermensch avant la lettre, o Rei-Filósofo, desprezando assim a maior força do legado de seu mestre Sócrates, o daquela grande filosofia moral da Humildade. Isso só pode ter ocorrido por força do convencimento de outras doutrinas, gnósticas, tais como o orfismo e o pitagorismo, entre as quais Platão fez más escolhas de confiança.

Mais adiante em suas Cartas o filósofo retomará, e com maior intensidade, o argumento contra o registro de uma doutrina mais séria. Sua idéia faz algum sentido: a quem as melhores doutrinas possuem real valor, nenhum registro faz diferença nem se faz necessário, e a quem não possui a virtude para o entendimento, nenhum registro é suficiente o bastante, sendo assim inúteis, ou até contraproducentes, já que passam a falsa impressão de tornar discutíveis coisas que não o são. Eu entendo o que Platão está dizendo. E compartilho de seu temor. De fato, as pessoas tolas, que desprezam o amor pela sabedoria, tomam os sinais dialéticos de uma investigação como recursos erísticos para disputar o mérito da própria busca, o que é no mínimo irritante, e na verdade uma ofensa contra os verdadeiros buscadores. Mas isso deveria desesperar o filósofo? Eu creio que não. Ademais, Platão superestimava a condição de educação e de comunidade na qual vivia, não fazendo caso de um futuro caos, uma barbárie filosófica no qual subitamente a presença de registros escritos poderia ter uma importância totalmente nova, um efeito moderador, etc.

Vejamos o argumento do próprio Platão:

Qual é o dano máximo que a “perplexidade” ou a “maledicência” poderiam causar na reputação da Filosofia e de seus praticantes? Hoje em dia, tanto quanto no tempo de Sócrates, isso tudo continua sendo desprezado. Qual é o dano? Por outro lado, quando Platão fala do que é “sério”, e de que isto sempre escapa ao que é registrável, ele já está falando da própria Sabedoria divina, daquilo que é sempre transcendente e que só pode ser contemplado, nunca dominado por registros. Porém, qual é o perigo do registro de um testemunho a respeito do que foi contemplado, se ele nunca passará disso, e o objeto da contemplação filosófica estará sempre a salvo da confusão com suas imitações?

No seu elemento mais perigoso, Platão rejeita a hipótese que Dionísio, o tirano de Siracusa, tenha aprendido algo de valor da sua filosofia porque esse teria sido indolente e indisciplinado, como se somente o caminho da sua forma de educar pudesse levar alguém a um aprendizado frutuoso. O filósofo dá o critério de identificação de um bom aluno, no que tem por óbvio as suas razões, mas transmite erroneamente a idéia de que a Sabedoria é o resultado de uma atividade humana. Na realidade, todo esforço humano é lateral e acidental como causa do aprendizado na alma, tendo mais efeito na receptividade dos dons divinos do que na influência da dispensação da Graça, onde os elementos determinantes estão mais relacionados com o cálculo da Providência na Obra divina.

Nota espiritual: 3,7 (Moriquendi)

Humildade/Presunção2
Presença/Idolatria6
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo2
Vigilância/Ingenuidade3
Discernimento/Psiquismo3
Nota final3,7

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