A grande e importante obra de Platão deveria alcançar seus melhores patamares com A República, uma investigação sobre a Justiça.
Desde o início o senso comum a respeito do tema é questionado por Sócrates, que exige a superação da opinião geral:

Se a Justiça é a realização de um bem, então o dar a cada um o que lhe é devido não pode ser a vingança contra os inimigos, pois isso não irá melhorá-los. Não estamos tão longe da sabedoria evangélica do amor aos inimigos. Mas como isso é possível? É porque o Sumo-Bem é a forma do Ser, e assim Sócrates (ou Platão), se for um buscador da Sabedoria e alcançar algo dessa forma substancial do Ser, estará diante de evidências que apontarão para a mesma direção da Revelação divina, ainda que essa filosofia sofra com várias restrições e descaminhos.
Trasímaco, o primeiro debatedor de Sócrates, proporá que a Justiça é a vantagem do mais forte, isto é, aquilo que é determinado pela vontade de quem detém o poder, a favor de seus interesses. Mas ele é forçado, pelo diálogo, a reconhecer que o objeto de qualquer arte, inclusive a de governar, está fora de si mesma, e se o objeto do governo das coisas públicas é o benefício dos governados, então a sua definição de Justiça está totalmente invertida: a Justiça é a vantagem do mais fraco. Novamente, aqui, ouvimos o eco do Evangelho: o maior será quem mais servir, e quem se humilhar será exaltado (Jesus).
À concepção puramente idealista de Sócrates, Trasímaco oporá todo um amplo discurso voltado a um realismo brutal. Chamará seu adversário de ingênuo, o que na verdade é um engano com relação ao verdadeiro objeto de um bom idealismo. Claro que o próprio Platão terá que fazer a sua escolha, e sabemos que defenderá um certo idealismo imanentista. Mas e nós, o que fazemos com essas duas definições tão opostas de Justiça? Adotamos o idealismo transcendental onde a Justiça é a vantagem do mais fraco justamente por ser uma qualidade divina e uma prática instaurada pela Providência instaurada pela Providência contra os desígnios humanos que, por serem naturalmente inclinados ao mal, são identificados contra a Justiça pelo dom da Vigilância. Ou seja, não há um conflito entre as duas definições de Justiça de Sócrates e Trasímaco: o que existe é a diferença entre o que é divino e o que é humano, a Justiça de Deus informada pelo dom da Presença, e a “justiça” dos homens, informada pelo dom da Vigilância. São dois planos diferentes de realidade. Normalmente a Justiça divina tende ao sucesso do Amor divino, Perdão, Misericórdia, Salvação, etc., enquanto a “justiça” humana tem a ver com a manutenção da ordem social, na melhor das hipóteses, ou simplesmente com a vingança, na pior.
Em linha com o que é a sua filosofia idealista, Platão defenderá que o objeto da política é uma Justiça tão boa que num Estado formado por bons cidadãos o governo teria que ser forçado aos melhores, já que estes, se não fossem constrangidos a isso, prefeririam cuidar de seus próprios interesses privados. Vejamos o argumento:

Ao contrário de onde impera a Justiça, onde o bem comum é desprezado o poder político é cobiçado por todos aqueles que buscam vantagens. Isso está alinhado com a visão espiritual que condena toda a ambição política como uma atividade de malfeitores e criminosos, e a denúncia de quem se candidata à uma posição de poder político, afinal, se fosse boa pessoa, por que o faria?
Voltando ao andamento do trabalho de A República, Sócrates forçará Trasímaco a reconhecer o valor ideal da Justiça. Independentemente de como os homens se portam de fato, o seu dever-ser pode ser sempre deduzido de forma inevitável. Na verdade, Trasímaco será humilhado, porque ficará evidente que os injustos são incapazes na proporção de sua injustiça. Assim, um Estado composto de facções injustas será incapaz de tiranizar outros povos, pois experimentará a guerra civil entre essas facções injustas que, por sua qualidade, serão inimigas entre si. Ou seja, para que um Estado seja praticante de injustiça com outras nações, é preciso que antes seja praticante de justiça em si mesmo, ou perderia aquela capacidade. Igualmente se dá nas relações entre famílias, e mesmo entre indivíduos. Enfim, o injusto é inimigo de si mesmo, e também dos deuses. Isso invoca o Sumo-Bem: se a justiça é a busca do que é bom, ela favorece o ser das coisas, pois a forma do Ser é o Bem; por outro lado, se a injustiça é a busca do que é mal, ela prejudicará o ser das coisas. Daí que a injustiça é maldade, e a maldade gera prejuízos, como busca contrária ao interesse de todos os seres. Se a própria natureza das coisas mostra algo diverso, e a prática humana declarada por Trasímaco reflete esse estado natural em que parece que um bem sempre é contrário a outro bem, isso já mostra como o idealismo mais puro só pode ser transcendental, e como o âmbito da imanência está limitado a um certo grau de Mistura entre o ideal do Bem e a sua restrição.
Estas considerações encerram o Livro Primeiro de A República. O Livro Segundo começa pela continuidade da investigação por estímulo de Gláucon, que proporá que a Justiça é a convenção humana que reconhece que para a maioria das pessoas é conveniente abrir mão das vantagens da prática da injustiça em troca da proteção contra a desvantagem comparativamente maior de sofrer injustiças da parte de terceiros. É uma idéia mais fraca porque tende a um propósito ligado aos resultados e consequências das ações, e não ao seu sentido essencial. Apesar disso, é uma noção poderosa no contexto da prática política, considerada tanto pelos que a defendem como princípio de ordem social, quanto pelos que a atacam como princípio de corrupção. Neste último sentido, uma expressão de Gláucon já prenuncia muitas futuras ideologias políticas: “a natureza é induzida compulsoriamente pela lei à perversão de tratar a igualdade com respeito“.
Em certa parte Gláucon faz uma declaração que identifica facilmente a maior maldade com a mentira: “o auge da injustiça é fazer-se passar por justiça sem o ser“. Esse testemunho colabora com o entendimento de que a maior vilania é a maior mentira de todas, e se a maior verdade é a de que Deus é Amor, a maior mentira é a de que não o seja, e que seja o Usurpador, o Acusador, a Grande Serpente.
Do mesmo modo, Gláucon dá outra importante contribuição, pela via negativa, ou seja, tentando montar o argumento mais perfeito à favor da injustiça, de modo que Sócrates possa então obter a vitória mais completa em favor da Justiça, ao citar as práticas religiosas que servem para a proteção dos injustos:


Perceba-se como toda uma cultura de legitimação da injustiça é produzida à partir da Religião, através de rituais e iniciações que servem, como forma de corrupção, para comprar os favores e as absolvições, de modo que o mal possa ter a aparência do bem. Gláucon denuncia essa prática como inimiga da verdadeira Justiça (dois mil anos antes de Lutero). Ou seja, o círculo socrático já está diante do claro desafio de contestar a autoridade da Tradição, porque esta serve claramente para a perpetuação da injustiça. Quem busca a verdade cedo ou tarde se verá na difícil posição de reconhecer que o costume transmitido de geração em geração não reflete uma sabedoria, mas uma prática corrupta, mentirosa e inimiga de tudo o que é bom e verdadeiro. Claro que o centro da dificuldade está na situação da Mistura, de modo que o Mal como que tomou o Bem como se fosse seu refém, e nós tememos que com a denúncia daquele nós perderemos a este. Isso é uma grande mentira, mas os socráticos e platônicos ainda não tinham a arma mais formidável para obter a libertação desse engodo: o Evangelho. Por mais que o homem, por si, buscasse a salvação da grande mentira, era preciso que Deus viesse pessoalmente nos salvar revelando toda a verdade de modo incontestável e de uma vez por todas. Deus foi, como é e sempre será, fiel ao seu Amor.
Respondendo ao desafio de tentar produzir a melhor defesa da Justiça diante de tudo o que Gláucon afirmou, Sócrates tentará descobrir a essência do que é justo através de um experimento investigativo em que a observação naquilo que é maior (o Estado) facilitará a compreensão daquilo que é menor e mais sutil (o indivíduo). Neste seu experimento ele descreve as várias partes dessa organização social e se detém com mais atenção ao problema da educação, especialmente dos guardiões do Estado. Afirma que o ensino de muitas poesias clássicas é prejudicial, pois mostra os deuses de forma desfavorável. Sobretudo deseja que haja uma lei que proíba a afirmação de que qualquer mal seja proveniente dos deuses. Assim, todas as desgraças humanas devem ser justificadas como resultado de uma boa administração divina, seja corretiva, purgativa, punitiva, etc. O que o filósofo está afastando é a hipótese da crença num Caos. Ainda que o seu entendimento sobre a origem dos males possa ser deficiente, ele sabe que se qualquer mal for atribuído à divindade, toda a metafísica na qual se baseia a Justiça será destruída. Afinal, se nem a divindade pode ser justa, quanto menos os pobres e fracos mortais? Platão defende a integridade da sua visão de mundo.
Outra lei estipulada ainda no Livro Segundo de A República afirma que a divindade é isenta de qualquer falsidade, e integralmente simples e sincera. Isso é dito em contraste com a mitologia que apresenta o divino como mágico (góeta), ou seja, capaz de assumir formas diferentes, e capaz de mentir. Aqui encontramos Platão com Moisés: se o divino é totalmente íntegro e verdadeiro, ele não pode possuir uma imagem, ou aparência, pois isso seria uma redução da sua substância. Platão não está afirmando isso, mas poderia dizê-lo se quisesse. Mais além, o conhecimento de tudo o que é divino terá, assim, que proceder sempre por analogia, de forma indireta. Conhecer a Deus frente à frente é o mesmo que morrer, ou seja, perder a forma de ser limitado que só pode perceber desde o seu limite. Daí, na minha filosofia, a ênfase na vontade que aceita a absoluta transcendência de Deus e a forma do relacionamento com o divino como uma contemplação amorosa sem fim, que é a essência da vida eterna.
No Livro Terceiro, Sócrates continuará censurando o ensino da poesia clássica, pois esta costumeiramente apresenta deuses e heróis sob uma luz desfavorável do ponto de vista cívico. Mas, lembremos nós, não do ponto de vista humano. Platão, no seu idealismo imanentista, já começa a introduzir a hipocrisia e a falsidade no seu Estado ideal, porque acha que a virtude pode ser ensinada e o homem, assim, pode ser afastado de sua miséria. Este é o Platão mais antisocrático, ou mais presunçoso. Isso para não falarmos do bloqueio da Vigilância, já que os relatos detratores dos falsos deuses e heróis são convenientes para alertar a humanidade à respeito da realidade da sua condição, e sobretudo sobre a sua origem, ou ao menos servem para dar uma boa pista disso.
O restante do Livro Terceiro não é tão relevante para nós, só sendo digno de nota que onde a virtude é grande entre o povo, há menor necessidade de médicos e advogados, e contrariamente, onde essas atividades são muito valorizadas, a sociedade é mais doente e menos virtuosa. Mas se há bastante justiça entre o povo, o mesmo não poderia ser dito à respeito dos juízes e dos próprios governantes? O pior, porém, vem com a idéia da “nobre mentira” (gennaîón ti nèn pseydoménoys), uma falsa História ou mito de origem, que servisse ao convencimento mais pleno da sociedade em torno da boa governança. Aqui temos o Platão mais distante possível de Sócrates, ou ao menos de uma verdadeira busca da Sabedoria. O desejo pela posse e manutenção do Poder gera corrupção todas as vezes, mesmo em teorias sem prática alguma.
No Livro Quarto o diálogo se distancia mais ainda do que tem relevância espiritual, a não ser pela observação de que num bom Estado, com boas Leis, não é preciso legislar continuamente sobre todas as coisas, porque a boa educação, priorizada pelos governantes, dispensa a contínua labuta social contra as fraudes, a corrupção, etc. O mesmo vale para tudo o que é sagrado: as pessoas que possuem Discernimento precisam pouco ou nada de regulamentos morais ou práticas rituais, etc. O excesso de regras e controles, tanto na Política quanto na Religião, sinalizam uma sociedade com pouca virtude, com pouca cultura e educação com relação ao Bem, a Justiça, o Belo, etc.
Ao chegar nas quatro virtudes do Estado ideal, Platão faz o elogio da Sabedoria, da Coragem, da Moderação, e da Justiça, e tenta finalmente alcançar uma boa definição desta. Ele propõe que a Justiça consiste em que cada uma das partes do Estado dedique-se a cumprir o que lhe cabe, sem interferir no desempenho das outras partes. E então, seguindo o seu plano original, buscará reconhecer no ser humano as partes correspondentes àquelas do Estado, de modo a compreender, assim, o que é a Justiça para o homem.
Antes, porém, de dar sequência a esta investigação, convém mencionar algo que foi dito antes pelo filósofo, a respeito do papel da música na educação dos cidadãos. É dito que esta arte composta por letra, melodia e ritmo, possui um tremendo poder de influenciar os rumos da educação cívica, a tal ponto que é dito que um dos modos mais eficazes para se destruir um Estado é o de se corromper a sua música. Este poderia ser um excelente testemunho de Vigilância, especialmente para os nossos tempos repletos de tanta ignorância e falhas na educação da juventude, porém Platão anula o efeito espiritual disso ao propor uma legislação onde os guardiões do Estado teriam o poder da censura. Isso vai contra qualquer princípio monadofílico: a educação deve ser liberal. Se a liberdade humana não se realizar na busca do Bem, o que é que os guardiões estão guardando? Um bando de animais? Ademais, a Vigilância nos obriga a desconfiar desses governantes: não passam de ídolos no idealismo imanentista de Platão. Vê-se, assim, como é difícil extrair contribuições espiritualmente positivas de A República. Seu autor foi muito fundo em seus enganos.
Voltando ao ponto em que paramos no Livro Quarto, às três partes do Estado, isto é, aos guardiões (legisladores, governantes e juízes), auxiliares (guerreiros) e ganhadores de dinheiro (trabalhadores) equivalerão as três partes, ou elementos, da alma: a racional, a irascível, e a apetitiva. A Justiça na alma determina que a parte racional seja auxiliada pela irascível, e que as duas juntas governem sobre a parte apetitiva. Ora, o próprio Platão já estabeleceu antes que o governo se dá à serviço da parte mais fraca, a governada, onde se encontra a finalidade da sua atuação. Isto quer dizer que, na alma, o racional e o irascível têm sua causa final no apetitivo. E isto é necessário apenas porque abandonada à si mesma, essa parte apetitiva da alma tende a se prejudicar. Se não fosse assim, a hierarquia das partes seria questionável. Monadofilicamente, a própria separação em partes já nos parece um erro: a unidade total da Substância Simples não admite essa divisão. Falando das propriedades da Mônada, reconhecemos que sua única operação é a da Percepção, e que esta é sempre julgada pelo que mais apetece. Não é por ser mais racional que a alma julga ser necessário frear os seus apetites, mas pela condição imperfeita e limitada da Mistura que torna conveniente essa racionalidade, de modo condicionado. A filosofia platônica é imanentista e naturalista, e busca apenas a legitimação e normalização da Mistura. De uma condição particular gerada por um uso bem determinado do livre-arbítrio humano passa-se a considerar essa natureza uma condição universal produzida por um ordenamento divino. O estudo platônico da alma nunca superará esse engano.
No Livro Quinto encontramos um Platão totalmente de acordo com a Tradição Primordial. Sua recomendação à respeito dos casamentos e da procriação tem em vista a sociedade como um “rebanho”, como gado. Quer controlar os relacionamentos com fins eugenistas, e ainda afirma que esse expediente deve ser oculto da sociedade através de um sistema engenhoso de loteria, de modo que a escolha dos governantes possa ser disfarçada. Ainda é favorável ao compartilhamento não só dos vínculos familiares, mas também das propriedades. Essa guinada em direção à coletivização foi súbita, e revela um traço constrangedor de Ingenuidade, para não falar de uma mudança no seu próprio programa.
Mas maior mudança não há do que a discussão daquele modelo político criado apenas com a função da descoberta da essência da Justiça, mas agora em termos de exequibilidade. Gláucon poderia ter esse desejo equivocado corrigido por Sócrates, mas Platão precisa anunciar toda a sua Pretensão de uma vez por todas:

O que temos nesta famosa passagem é a subscrição total de Platão ao seu sistema como um idealismo imanentista do futuro, podendo ele ser considerado o primeiro grande proponente filosófico desse tipo de idolatria humanista na história da humanidade. Em outros diálogos ainda percebíamos a saudável interferência da moral socrática. Em A República, Platão assume temerariamente toda a sua ousadia.
Apesar dessa decepção, o Livro Quinto termina com uma boa observação no sentido do testemunho do dom da Presença, quando Platão exibe a precariedade dos “amantes de espetáculos”, ou de aparências, os filodoxos, em comparação com os filósofos que amam a verdade por trás da aparência. Isto, porém, de nada vale se esse amor filosófico deixar de ser contemplativo. O que significa que o filósofo não possui um conhecimento melhor, mas uma crença melhor, ou mais verdadeira.
No Livro Sexto, Adimanto questiona Sócrates à respeito da idéia do Rei-Filósofo, propondo a opinião comum de que os filósofos são geralmente tidos como inúteis, isso quando não são considerados prejudiciais. A resposta merece ser citada:

Essa é uma questão inescapável. Quem possui alguma nobreza de caráter repudia o convencimento alheio à respeito de seu próprio valor. Como consequência, não participa na disputa por qualquer posição de autoridade, ainda que seja talvez a pessoa que mais o merecesse entre todas as demais. Para que a qualidade do que é nobre seja reconhecida, é preciso que algo externo ao nobre possua já algum grau de nobreza para realizar esse reconhecimento desde fora. É por isso que se pede a Deus que honre os esforços humanos dirigidos à glorificá-Lo, e também porque o agente que ergue a luminária à posição mais alta deve ser também divino, ao contrário do que geralmente se supõe. Também é por isso que uma comunidade imersa no vício e na corrupção tende a preservar o seu estado, ao mesmo tempo em que a comunidade que costuma cultivar a virtude e elogiar a nobreza também tende a preservar ou até a melhorar a sua situação.
Adiante, Platão defenderá que é impossível à multidão que pratique a Filosofia. E mais, não só a maioria é incapaz de filosofar, como é incapaz de reconhecer o verdadeiro filósofo. E uma má educação, voltada aos interesses dessa maioria, como num sistema democrático cuja cultura é de uma demagogia populista, é capaz de corromper até a pessoa mais bem destinada, seja por dons ou circunstâncias, à Filosofia:

Como evitar a lembrança de Alexandre Magno? Ao príncipe macedônio não bastou ser discípulo do maior discípulo de Platão (i.e. Aristóteles), pois sua educação o encaminhou para a ambição do Poder e não da Verdade. Mas aqui nos cabe um questionamento sobre a liberdade de Alexandre. Não teria ele, imitando seu suposto ancestral Aquiles, também buscado acima de tudo a glória humana? E não teria essa busca definido seu destino muito mais que qualquer outra influência? O ideal da Paidéia não deveria aí ter produzido seu melhor resultado? E não está nisso de certo modo vingado Sócrates, que não acreditava mesmo que a virtude pudesse ser ensinada?
Ainda no âmbito do Sexto Livro Platão finalmente se referirá à idéia suprema do Sumo-Bem, e fará comparações com a analogia com o “filho do Bem”, isto é, com o Sol. Assim como este dá a luz que permite à visão enxergar, o Bem é a forma que permite ao intelecto conhecer a verdade. Isto bastaria para uma epistemologia monadofílica. Mas o filósofo precisa fazer muitas outras distinções, provavelmente porque confunde o mal produzido pela idolatria com outro, produto das opiniões. Entendimento (nous), intelecção (dianoia), crença (pistis), e conjetura (eikasia) serão assim hierarquizados para exibir os graus de proximidade do intelecto com o Sumo-Bem. De minha parte, estou muito mais interessado, inclusive nas consequências intelectuais, nos efeitos do dom da Presença como efeito de uma vontade livre que confia na forma do Sumo-Bem. A maioria dos filósofos, inclusive Aristóteles, fará outro tipo de busca, no sentido do domínio intelectual do Ser.
No Livro Sétimo de A República encontramos a famosa alegoria da caverna cujo elemento mais útil espiritualmente é o da falta de nitidez na transposição entre a visão no ambiente de trevas e de luz, reciprocamente. Isso nos lembra a futura linguagem plotiniana à respeito da dificuldade de transição entre a consideração do Múltiplo e a contemplação do Uno. E também nos remete à diferença entre pneumáticos e psíquicos na teologia paulina. Sobretudo quem busca o que é divino deve ter facilidade na operação dessa transição.
Mais adiante, algumas expressões adotadas por Platão são interessantes. Quando fala da conveniência do estudo dos números, certamente se refere a um conhecimento arquetípico, do tipo pitagórico, no qual esta expressão ganha contornos mais profundos: “o estudo no tocante à unidade estará entre os que conduzem a alma e fazem a sua conversão para a contemplação do verdadeiro ser“. Não se poderia dizer nada melhor na Monadofilia. Logo adiante outra expressão parece ser muito feliz: “precisam aprender ascender da região da geração e apreender o ser, se esperamos que algum dia se tornem racionais“. Ou ainda: “facilitar a conversão da própria alma, do mundo da geração rumo à verdade e ao ser“. Essas fórmulas opõem genéseos, o vir-a-ser, à oysía, o próprio ser, como tantas vezes já vimos na obra platônica, mas agora com maior ênfase do que nunca. Monadofilicamente não enxergamos uma oposição, mas uma relação entre o Intelecto e a sua Percepção, entre a Substância Simples e o seu reflexo, ou entre o Uno e o Múltiplo. A pacificação, ou solução, do conflito que Platão apresenta é o entendimento de que a Percepção, o Reflexo e o Múltiplo são servos do Intelecto, da Substância Simples e do Uno. E se assim não se parecem, isso se dá pela influência da Mistura, não de corpo e alma, mas de Luz e Trevas. Enquanto o ser humano quiser e, principalmente, precisar do conhecimento da Mistura para conhecer o produto do seu próprio arbítrio, isso terá que ser permitido até certo limite.
Daqui em diante Platão desenvolverá muitos argumentos de forma repetitiva, satisfazendo apenas quem compre a forma particular do seu idealismo. Encontraremos só bem mais avançados algo de valor para nós, já em pleno Livro Nono, a descrição acertada do tirano como a pessoa mais miserável de todas, a mais escravizada das almas. Isso está de acordo com o dom de Vigilância: quem mais busca o Poder mais tem que se escravizar por ele. E a isso se soma também outro paradoxo, que também não escapa à Platão, o de que aquele que ambiciona o poder fora de si mal tem o poder de ser senhor de si mesmo. Alberich, ao trair o Amor, tornou-se traidor de si mesmo, de seu próprio bem. Traiu o seu bem que principiaria com o seu domínio sobre si mesmo.
No Livro Décimo Platão retomará a necessidade de censurar a poesia, para o que aprofundará a noção do que é a imitação. No desenvolvimento de seu argumento Platão afirmará que “a imitação é algo inferior que manteve relações com uma outra coisa inferior para gerar um descendente inferior“. O próprio tradutor nos diz, a respeito dessa passagem (em 603b), que é possível pensar em xyggignoméne nos seguintes termos: “embora a idéia genérica de associar-se ou mesmo conviver seja aqui também cabível, parece-nos que a analogia com as relações sexuais visando à procriação é incisiva“. Por isso se fala que Adão criou Set à sua imagem e semelhança, e não à de Deus, ou depois se afirma que o filho do homem é uma abominação (prevendo como último fruto da traição o próprio Anticristo), etc.
Mais adiante Platão dará provas fracas à respeito da imortalidade da alma, um tema que já pudemos entender com mais profundidade no estudo do Fédon. Ele terminará A República com o mito de Er, dando testemunho das idéias de reencarnação, da contabilidade cármica, etc., ou seja, do esoterismo no qual ele mesmo foi iniciado, e que obviamente tem alguma conexão com a Tradição Primordial.
Este importante trabalho platônico é decepcionante. Para responder à questão inicial do que é a Justiça o filósofo deu uma volta tremenda e parou num Estado ideal governado por um Rei-Filósofo que ninguém pediu. E a própria Justiça por fim não foi tão bem servida como o seria se o Sumo-Bem fosse identificado como a causa final absoluta de todos os seres, não sendo necessário ir além dessa premissa e muito menos ensinar a calcular a conveniência do justo, um procedimento que sempre atrai a contradição e a discórdia, o que fica provado já que não há consenso sobre a melhor forma de governo ainda vinte e cinco séculos depois da redação de A República.
Para nossa vantagem, Platão se revelou mais completamente nesta obra, embora não se possa dizer que isso se deu também para a vantagem dele mesmo.
Nota espiritual: 3,3 (Moriquendi)
| Humildade/Presunção | 2 |
| Presença/Idolatria | 3 |
| Louvor/Sedução-Pacto com a Morte | 5 |
| Paixão/Terror-Pacto com o Inferno | 4 |
| Soberania/Gnosticismo | 3 |
| Vigilância/Ingenuidade | 2 |
| Discernimento/Psiquismo | 4 |
| Nota final | 3,3 |