Inocência, Ingenuidade e o Puer Aeternus

Uma sombra paira sobre a hipótese da Monadofilia: seu autor a teria produzido para racionalizar sua síndrome da eterna juventude. Sua filosofia não passaria de uma justificação da sua patologia.

Essa ameaça não vem de hoje. Certo dia alguém escreveu, em algum lugar desse grande terreno baldio que é a internet, sobre o prejuízo que o amor materno causa na maturidade psíquica dos filhos. Não resisti. Respondi bravamente na defesa do amor. Devo ter sido visto como ingênuo e fraco, é claro. Suportai a escravidão, vós que são tão sensatos…

Mas há teorias supostamente profundíssimas que ampliam o fantasma da ilusão e de sua sombra projetada. A mais ameaçadora é a da síndrome que vem do arquétipo junguiano do Puer Aeternus.

Legitimadores da Mistura e, sendo assim, servos do Ouroboros, os teóricos e crentes da Psicologia possuem a missão fundamental de normalizar a experiência humana após a Queda. Participam, portanto, do braço direito da Dialética do Ouroboros, e são produtores de uma cultura alternativa de reafirmação da Tradição Primordial, para manter o domínio do segmento da população que já não acredita mais na Religião.

A sombra, em suma, é uma mentira. Apesar de apresentar uma vantagem parcial para alguns casos patológicos realmente graves, essa teoria não consegue abranger a complexidade de uma realidade social e cultural que muda, e muito menos ainda consegue dar conta da estrutura metafísica da realidade.

Para entendermos melhor o problema, convém recontar o trajeto da experiência humana sob a condição da Queda (Sindar).

A experiência do bem contingente provoca as intuições essenciais desde a primeira idade: da própria unidade, da percepção e da apetição do bem, e da amabilidade do eu.

Em seguida há uma dupla iniciação na Gnose da Mistura: a phronesis da moderação e da prudência, e o culto da própria Mistura como forma do Ser. Junto com o aprendizado da realidade prática de como lidar com a contingência da Mistura, há o aprendizado de que não há bem sem mal, nem luz sem trevas. Isso mostra bem o objeto do Pacto Ouroboros: nossos primeiros pais pediram a Gnose do domínio da natureza decaída para viver emancipados do Amor divino, e em troca ofereceram o culto ao Ouroboros, o deus da Mistura e da Dualidade, no lugar do Deus verdadeiro, da Separação e da Unidade.

Junto com a astúcia da sabedoria prática para se lidar com a contingência aprendemos a malícia da crença da Mistura, da interdependência do Bem com o Mal, a Dualidade.

As alternativas oferecidas pelo Ouroboros para o problema do Mal seguem a sua essência dualista: ou se crê que a Mistura é a forma do Ser (hipótese da divindade do Ouroboros), e portanto alguma medida de Mal deve ser sempre aceita como parte estrutural da realidade, ou se crê que a libertação do Mal consiste na negação da bondade do Ser (a hipótese de um Demiurgo mau). Ou seja, o próprio Ouroboros é sempre vitorioso como dominador da síntese do processo da sua Dialética: os obedientes legitimarão a Mistura e o cultuarão como se fosse Deus, e os rebeldes se alinharão com ele na revolta contra o Deus verdadeiro, supondo que o Ouroboros é o seu libertador contra as mentiras de quem nos aprisionou na corporeidade material.

Perceba-se que as duas mentiras, totalmente opostas entre si na sua relação dialética, favorecem igualmente o domínio do Mal sobre o mundo. De um lado a Mistura é legitimada, e do outro ela é falsamente condenada, pois o Ouroboros não propõe a separação moral entre Luz e Trevas, mas uma separação ontológica. A afirmação da bondade da Mistura leva os crentes do gnosticismo exotérico a adorarem o Ouroboros no lugar de Deus. E a afirmação de que a maldade está na materialidade leva os crentes do gnosticismo esotérico a se rebelarem contra o Deus verdadeiro, ao lado do Ouroboros, e a desejarem a morte.

É necessário distinguir com clareza as duas mentiras.

A mentira do exoterismo da Dialética do Ouroboros, da Tradição Primordial, afirma a bondade da Mistura, que o Bem só subsiste ao lado do Mal.

A mentira do esoterismo da Dialética do Ouroboros, da Revolução Primordial, condena a Mistura, porém o faz não moralmente, e sim ontologicamente, como se o problema fosse a mistura do espiritual com o corporal, gerando portanto a negação da bondade da vida e do Ser.

A origem da Mistura, que é a restrição do bem contingente, é a vontade humana de desobedecer a Deus e de conhecer o Bem e o Mal, ou seja, o desejo de obter a Gnose da Mistura. E isso é permitido para que a escolha do Bem seja verdadeira (Eleuteriodiceia).

Se a Dialética do Ouroboros apenas nos aprisiona na mentira, qual é a solução?

A salvação é a Ressurreição: primeiro é necessário que se cumpra o decreto de Gênesis 3, e que as Obras da Carne morram. Então pode se realizar a Obra do Espírito, que é a Ressurreição não como transformação da forma substancial humana, mas a sua Redenção.

Quem nos mostrou isso foi Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, morto e ressuscitado como Filho do Homem.

Jesus triunfou contra o Ouroboros e destruiu as suas mentiras.

Jesus ensina que quem não possuir a inocência das crianças não herdará o Reino dos Céus. Este é o Caminho ensinado por ele.

Precisamos renunciar ao Gnosticismo no qual fomos iniciados pelos costumes dos nossos pais.

Por isso Jesus afirma que veio trazer a espada e não a paz. Não pode haver acordo entre a verdade e a mentira. Há uma guerra e uma vitória devastadora da Luz contra as Trevas. Essa guerra não é contra o Próximo, mas contra a mentira da Mistura que faz da Luz refém das Trevas.

O Puer Aeternus pode causar males de fato, quando as responsabilidades determinadas pela Providência não são assumidas, isto é, dos deveres de estado atribuídos pela RSMM. Porém, esse mesmo impulso do Puer pode libertar do AEM.

Será que o psicologismo pode fazer essa distinção?

Parece-me que não.

Legitimadora da Mistura, a doutrina do psiquismo não separa a ingenuidade que prejudica o adulto infantilizado da inocência que liberta do excesso de mistura.

Esse psiquismo quer que todos os adultos sejam plenamente funcionais dentro de um certo idealismo imanentista que escraviza, pois não é capaz de superar a Gnose da Mistura.

Só o Evangelho nos liberta de fato, rejeitando a mentira da Gnose, e reafirmando a bondade do Ser que qualquer criança ainda inocente e não-iniciada é capaz de reconhecer.

Não posso buscar as razões dessa liberdade cristã com a minha filosofia sem prestar contas ao psicologismo do Puer Aeternus? É o contrário, como ensina a teologia paulina: o homem psíquico não consegue discernir as coisas espirituais, mas o homem espiritual julga a respeito de tudo e por nada é julgado.

Vamos deixar as coisas bem claras.

A experiência da Mistura ensina que não existe omelete sem ovos quebrados. Isso é verdade na contingência, mas não pode servir para limitar a Onipotência, o que seria ridículo. As causalidades material e eficiente não ordenam o Logos, mas são ordenadas por ele. A natureza não legisla sobre o divino, mas é dominada pela divindade. Desse modo a realidade da experiência decaída e amaldiçoada é totalmente contingenciada, determinada pelo arbítrio desobediente dos seres humanos. Isso em nada interfere com a supremacia das causas formal e final, nem com a suficiência da simplicidade do bem divino. Em suma: Deus faz omeletes sem ovos quebrados, não porque precise, mas simplesmente porque quer.

Ingênuo não é quem quer omelete sem ovos, mas quem acha que Deus não pode fazê-lo. E de ingênuo passa a ser malicioso: não existe o Bem divino na sua pureza, e muito menos a Graça, só existe a Gnose da Mistura e o domínio da realidade. Como diz a escritura: são escravos da Maldição e do Poder.

A desconfiança do poder ou da bondade divina é sempre malícia.

A confiança é a inocência, e mais, a honestidade: não quero ovos quebrados, apenas omelete. Isso sempre foi verdade.

Quando nossas mães querem nos proteger da crueldade do mundo da Mistura, isso deriva de um conflito inerente à situação do amor na contingência presente da Queda: se o amor é verdadeiro, ele supera a contingência da Mistura. A mãe quer o bem total aos filhos, mas sabe que a Mistura o negará.

Quando os pais sequestram os filhos que entram na puberdade para submetê-los aos ritos de iniciação na vida adulta, isso já significa uma segunda e mais profunda iniciação na Gnose: enterrar a criança viva, para depois retirá-la de lá e expô-la à sobrevivência na vida selvagem equivale a reproduzir concreta e simbolicamente a experiência de Adão em Gênesis 3.

A experiência materna simboliza o Paraíso preternatural que alimenta o idealismo do Puer, a felicidade simples da infância onde a mãe representa Deus no Éden.

A experiência paterna simboliza o Paraíso perdido, a Queda e a iniciação no Pacto Ouroboros: para desafiar o decreto da maldição é preciso adquirir a Gnose e dominar a natureza, bem como para vencer o decreto da morte é preciso produzir uma descendência pelas Obras da Carne.

Aquele que saiu do seio da mãe (o Paraíso) como uma criança inocente e idealista volta como um jovem adulto iniciado no “realismo” da Gnose da Mistura, integrado com a sua tribo, ciente dos seus deveres, etc.

Ora, esse suposto realismo é totalmente produzido por uma contingência determinada pelo arbítrio humano, ou seja, pelo Pecado Original. O verdadeiro realismo requer a admissão do sentido integral da experiência moral do ser humano.

Assim, como costuma ser o caso, a sabedoria dos homens é loucura para Deus, e vice-versa: o psicologismo do Puer Aeternus costuma condenar o idealismo transcendental como uma ingenuidade e recusa das responsabilidades da vida adulta, quando na verdade essa doutrina é que resulta da falta de responsabilidade pelo arbítrio humano que legitima e perpetua a condição da Mistura. Esses desinformados devem responder ao terrível desafio da Antropodiceia, para não falar da mais terrível ainda vingança do Amor divino que está chegando.

Do mesmo modo que as mulheres podem e devem se libertar da escravidão dos seus papéis de esposa e mãe, os filhos também devem se libertar da iniciação gnóstica e ouvir o chamado de Jesus para a liberdade. Eis aí o teu filho, e eis aí a tua mãe: libertem-se da tirania dos Filhos de Adão.

Afinal, ainda que o amor materno possa prejudicar o desenvolvimento da astúcia dos filhos na sua experiência da vida nesta contingência, esse amor, na sua pureza do desejo do bem irrestrito, nunca traiu a essência da amabilidade dos seres inspirada por Deus.

Muito pior é o “amor” paterno que trai, usurpa e despreza o Amor verdadeiro, escravizando as mulheres e os filhos para a realização da sua ambição de poder.

A primeira afirmação da vontade de poder veio da inseminação. A segunda, através da continuidade da submissão da mulher e da iniciação dos filhos na malícia da Gnose da Mistura.

Somente a Misericórdia de Deus pode salvar pais e filhos desse pesadelo, através do Amor verdadeiro, com amizade verdadeira (sois todos irmãos uns dos outros), com liberdade e libertação, com reconciliação e perdão.

Não se pode tolerar que o psiquismo psicologista acuse o idealismo transcendental de ser irresponsável: onde está, antes, a responsabilidade pelo arbítrio de reprodução da condição da Queda e da Mistura? Não serão esses cegos que nos ensinarão a ver. Antes, Deus que tenha misericórdia deles, pois deita fundo a sua escravidão. Nesse estado em que se encontram, como conhecerão a Deus?

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