Para uma nova interpretação de Platão, livro por Giovanni REALE

Elementos introdutórios ao estudo do livro:

⁃ Idéia: a filosofia platônica só pode ser compreendida à luz das Doutrinas Não-Escritas, que dizem respeito a essência do Sumo Bem e aos Princípios do Uno e da Díade;

⁃ Premissa: as revoluções científicas e paradigmáticas de Kuhn;

⁃ Histórico: hipótese inicial dos estudiosos platonistas de Tübingen (e depois Milão), principalmente Krämer e Géiser;

⁃ Investigação: evidências principais no Fedro e na Carta VII de Platão;

⁃ Efeito: revisão dos paradigmas anteriores dos neoplatonicos (falta de rigor) e de Schleiermacher (sola scriptura);

Colocados esses elementos introdutórios, vamos seguir ao comentário.

O academicismo é como a crença de que se você decorar mais uma carruagem, tornará os cavalos que a puxam mais fortes e mais bem guiados rumo ao seu destino. A carruagem são os argumentos do acadêmico, e os cavalos são a sua vontade. O Intelecto credibiliza e embeleza a Vontade, mas é esta que puxa aquele, e não o contrário.

Esse especialista em filosofia grega antiga, G. Reale, quer que o Platão histórico seja reconsiderado, revalorizado. E pode ter as suas razões para isso, mas não é o acúmulo de argumentos que vai fazê-lo vencer. Como, aliás, o Demódoco platônico (ou pseudo-platônico) demonstrou. Reale está no seu direito. E na verdade está nos servindo, ao seu modo. Por que então eu não posso ser simplesmente grato? O motivo é a perda de um tempo enorme para o “enfeite da carruagem”, quando uma boa síntese movida por uns “potentes cavalos” seria muito mais assertiva e breve. Mas Reale, entenda-se, não está falando com os pobres mortais como nós que só queremos ir do ponto A ao ponto B. Ele está trabalhando principalmente para outros “decoradores de carruagens”, outros acadêmicos. Está colaborando na construção de algo chamado Civilização, etc.

A tese desta sua obra é simples e bem fundamentada, porém: as doutrinas não-escritas de Platão eram a sua verdadeira filosofia.

O problema é que no fim nós continuamos tendo que acreditar nisso, no fim das contas. Como alguém poderia, afinal, saber? Nossos “cavalos” é que tem que nos levar até esse lugar que Reale nos indica, e é só assim que alcançamos esse objetivo.

Depois de milênios de desenvolvimento filosófico é fácil (ou relativamente fácil) afirmar algo assim:

Pessoalmente, fico maravilhado com essa hipótese de uma quase antecipação da idéia das relações entre a Mônada e o seu reflexo. E, realmente, Platão conciliou Parmênides com Heráclito. Isso é garantido. Mas até que ponto Platão via essa relação entre Uno e Múltiplo como simples causa? E se visse, como poderia ter se iludido tanto com as insanidades do seu idealismo em A República, se soubesse da impossibilidade de capturar a bondade do Uno no Múltiplo, como por exemplo Plotino intuía? Mais ainda, se tivesse realmente a posse de uma solução tão simples, como poderia ter feito seu proselitismo religioso, com a distribuição indiscriminada de crenças gnósticas como se elas fossem frutos de uma boa filosofia, como a dos Princípios? Temos algo de errado aqui. O Platão de Reale não me parece o autor das obras que eu li, mas um personagem idealizado.

Para deixar clara a minha posição, não há nada de errado com as idéias das doutrinas não-escritas, nem da sua prioridade. Os Princípios tidos como essa grande doutrina platônica parecem tão excelentes que talvez tenham antecipado, como já disse, as próprias noções monadológicas mais preciosas para mim. O problema é a defesa disso como a verdadeira ou única doutrina platônica. Se Reale gosta dessas idéias, o que o impediria de simplesmente defendê-las filosoficamente ele mesmo? O fato de não ser tão importante quanto Platão? Mas daí as próprias idéias se tornam reféns das vaidades humanas. O que importa mais? Amar a verdade, ou os amantes dela?

Mais adiante consolida-se a possibilidade de que Reale realmente esteja inventando o seu Platão:

As idéias são o contraposto ao sensível como verdades se contrapõem às aparências da verdade, ou à mentira. Quem ensina isso é o Platão gnóstico que vive querendo nos libertar do cárcere desse nosso corpo e nos fazer atingir a pura contemplação das idéias puras. Foi esse grande mestre gnóstico que ensinou tanto sobre essas coisas para a humanidade, e que continua sendo citado até hoje como autoridade nesse assunto. O dualismo platônico é inquestionável. Reale constrói o seu personagem.

Para que não digam que estou fazendo pouco caso de grandes coisas, posso reconhecer perfeitamente a genialidade platônica, bem como o mérito da pesquisa e da exposição com clareza e maestria dessa genialidade pelo excelente trabalho de Reale, ou ao menos excelente nesse sentido de sintetizar e expôr pedagogicamente. Sou devedor de Reale quanto aos seus comentários ao neoplatonismo. E se quiserem um bom exemplo nesta própria obra, ei-lo:

Tanto a noção de mediação que faz necessário um Princípio que o opere (a Díade para o gnosticismo, ou o Logos para mim), quanto as noções das categorias metafísicas citadas, principalmente as de limite e de mistura, são geniais. Assim como a apresentação de Reale a esse respeito é impecável. Apenas é preciso ir até o fim: gnosticamente, o limite constitui a origem do mal, e a mistura é a confusão entre as substâncias duais que não deveriam jamais ter se encontrado. Para Reale não basta que Platão seja genial (o que ele é), ele precisa ser bonzinho ou, talvez, até necessário. Mas para quem é cristão ele não é nada disso, apesar da sua verdadeira genialidade: maldito é o homem que confia no homem, e a ninguém devemos chamar de “mestre”. O melhor que esse Platão das doutrinas não-escritas poderia ter feito, ele não quis fazer: unir a sua pujante metafísica com a filosofia moral de Sócrates, em suma, render a Sabedoria à Humildade. A chave para se detectar o ponto cego de Reale, pelo menos até aqui, está na ausência da perspectiva deontológica. Onde está o mal neste belíssimo sistema platônico? Se está no limite, ou na mistura das substâncias, então o Demiurgo é mal, etc. E se não está em parte alguma, então a Mistura é boa, a Natureza é um espelho de Deus, etc. De todo modo, Gnosticismo, uma soteriologia sem Redenção: basta salvar-se a si próprio com a Gnose da mentira do mundo das aparências, ou com a Gnose da divindade do mundo da Mistura. Sinceramente, nem sei dizer qual seria a opção platônica. Às vezes parece ser de um lado da Dialética do Ouroboros, e às vezes do outro. Existe um Platão exotérico, o de A República, etc., e existe um esotérico, do Timeu, etc. O que não podemos fazer é avaliar a grandeza da metafísica platônica como se ela fosse solta do resto das idéias do filósofo, e como se não implicasse em uma deontologia com enormes repercussões históricas para inúmeras doutrinas influenciadas por essa força titânica na História da Filosofia.

Bem longe de idealizar coisas não-divinas, seja o próprio Platão, ou a sua filosofia, precisamos ter em mente os desafios e as limitações que constituíram prováveis dificuldades para o desenvolvimento do filósofo e de sua obra. Por que Platão teria insistido tanto em não escrever a parte principal de seu pensamento? Aristóxeno, citado pelo próprio Reale, talvez nos ajude a entender:

Ora, desprezo e lástima não agradam a ninguém. Muito menos a alguém que tenha a si mesmo por sábio, ou por mestre. Sócrates jamais teria problemas com isso. Ele ironizava e zombava de si próprio. Mas e o nosso Platão, que em suas cartas afirma, por exemplo, que Dionísio, o tirano de Siracusa, só poderia aprender as verdades mais decisivas com ele próprio? Para o orgulhoso, a humildade é humilhação. Mas não julguemos: eu também preferiria, se pudesse, falar apenas aos meus amigos, ou pelo menos para um público que me fosse amistoso. Apesar disso, a busca de Platão pela influência direta sobre detentores do poder político, ou sobre os futuros candidatos à posse desse tipo de poder, não pode ser esquecida. Talvez ele quisesse garantir o respeito ao seu mérito? Ou estaríamos medindo as intenções de Platão com uma régua moral muito ruim?

Provavelmente essas discussões terminarão apenas fúteis e infrutíferas. Vale mais a pena nos concentrarmos nas próprias idéias.

A essência das doutrinas não-escritas de Platão é o Princípio do Uno e da Díade, entendido como a relação unificada entre esses árchai. Infelizmente, parece-nos que a escolha de Platão é a de produzir mais mundos ainda do que já tínhamos com o dualismo do Mundo das Idéias e do Mundo das Sensações. Isso só torna o seu esoterismo mais exótico e arcano, o que parece contrariar a simplicidade de uma filosofia ideal que partiria da simplicidade do Uno como paradigma indicativo do caminho para a verdade das coisas. Vejamos uma passagem relevante:

Ao invés da filosofia resolver problemas, ela tende a os multiplicar. Como vamos sair dessa confusão? Melhor não entrar nela em primeiro lugar. A pior afirmação de Reale (será que Platão a subscreveria?) foi a de que “o Uno não teria eficácia produtiva sem a Díade”. O Uno que não é em si Absoluto e Simples não pode ser o verdadeiro Uno. E ele nem poderia ser Absoluto se dependesse de outro, como nem poderia ser Simples se fosse composto por outro. Esse tal do “dois” arquetípico ou prototípico nada mais é do que a Dualidade, esse velho conceito gnóstico e até mesmo satânico-luciferino, a idéia de que Deus precisou de um “sócio” para criar as coisas, base da crença de que esse sócio teria sido traído, exilado, etc. É claro que platônicos e neoplatônicos poderão defender a Díade como idéia pré-trinitária que mais tarde integraria a metafísica cristã. Isso não é problema meu: aqui, Reale afirma que o Uno depende da Díade, sem afirmar a unidade entre os dois, ao contrário, enfatizando a duplicidade arquetípica, etc.

O caminho da solução vai na direção oposta. Só existe a Mônada e o seu reflexo. O Múltiplo é um refletor do Uno, mas subsiste como propriedade da própria Mônada, porque só existe para ela, gerado pelo seu Intelecto para a Percepção de si mesma.

Ainda sobre a Dualidade, essa é a noção que alimenta a ilusão da subsistência do 11 no esoterismo. Mas seria injusto atribuir essa noção a Platão que, como já veremos, limitava o conjunto dos números arquetípicos pela Dezena, que é o retorno ao Princípio do Uno.

Grande proponente do valor da protologia platônica das doutrinas não-escritas, Reale não realiza o quanto o platonismo chegou perto de uma formulação mais simples e direta da forma do ser da Mônada. Se Platão não chegou lá, foi só porque ainda se distraiu demais com a complexidade da criação, algo para o que parece que somente Plotino teria um antídoto, no seu neoplatonismo, séculos mais tarde. A categoria do Ser (ousia) é o centro do limite da doutrina platônica e, depois, também da aristotélica: a última concessão do idealismo a um certo empirismo materialista. Mas, novamente, como Platão estava perto de uma verdade mais simples! Talvez até mais do que Reale seria capaz, ou disposto, de admitir. Seria até mesmo conveniente considerar que Reale, querendo exaltar a sabedoria platônica, fez um desserviço com uma possível interpretação inferior das doutrinas não-escritas. Afinal, ao depender de seu grande conhecimento da Metafísica de Aristóteles como testemunho a respeito do pensamento platônico, não é tão difícil crer que Reale tenha contaminado a visão de uma doutrina obscura com projeções de um pensamento bem mais empirista, como é o do estagirita. Na minha própria leitura de Platão, vejo-o mais livre da restrição da ousia aristotélica do que muitos estudiosos. Afinal, sendo Aristóteles um filósofo tão influente e poderoso, como podemos ler Platão sem a contaminação dos conceitos de seu grande e ilustre discípulo? Essa tarefa pode ser mais difícil do que parece.

Para entendermos o problema da ousia no entendimento da relação entre Uno e Múltiplo, convém analisarmos a interpretação de Reale (baseada na de Krämer) no trecho abaixo:

Esse tal “núcleo da protologia” me parece indicar Aristóteles, e não Platão. Se Platão intuiu que a Unidade é a forma do Ser, este não poderia ser um “produto”, uma “síntese”, ou um “misto”. O Ser não é “unidade na multiplicidade”, porque isso esvazia o Uno de sua integridade ontológica: o Ser é a Unidade que produz toda Multiplicidade como seu reflexo.

O mundo que Reale descreve, um mundo aristotélico, possui coisas que existem independentemente do Uno, gerados pela união dessa Dualidade de Uno-e-Díade. É um empirismo que tende à idolatria. Mas o mundo platônico me parece diferente, possuindo a integridade da Unidade dos Princípios e das Idéias que é traída ou usurpada pela sua aparência na dimensão da Multiplicidade. Neste caso a Díade não colaboraria com o Uno, mas competiria com ele, e seria até mesmo a origem do mal. Reale não quer admitir o dualismo platônico e prefere imprimir o tal bipolarismo, que não é outra coisa senão o aristotelismo, para atribuir colaboração entre o Uno e o Múltiplo, algo essencial para escapar do risco gnóstico da doutrina platônica.

Qual é a solução?

É a simplicidade da Mônada. Só há a substância simples que possui Intelecto que gera a Percepção de si mesma de forma total na Mônada Incriada, por ser infinita, e de forma parcial na mônada criada, finita. A parcialidade da Percepção da mônada criada gera as dimensões funcionais da percepção, tempo, espaço, etc., e a riqueza do objeto da Percepção possui complexidade suficiente, como tudo na Multiplicidade, para permitir à Vontade livre do percebedor a atribuição de Ser ao que é apenas reflexo do verdadeiro Ser. Em termos espirituais: a opção livre da vida na Presença requer a possibilidade da Idolatria.

Assim nos livramos dos problemas tanto de Platão quanto de Aristóteles, e aproveitamos o que eles têm de melhor para nos beneficiar: não somos nem gnósticos contrários à relação entre o Uno e o Múltiplo (como Platão), pelo contrário, apreciamos o processo vital oriundo dessa relação (como Aristóteles), porém também não atribuímos substancialidade ao Múltiplo (como Aristóteles), mas o reconhecemos apenas como reflexo do verdadeiro ser, que é a Unidade, a partir da atividade de Percepção do Intelecto (como Platão).

Em suma: com a Monadofilia escapamos do risco do gnosticismo platônico e do risco da idolatria aristotélica, e ganhamos as valiosas intuições legítimas desses grandes filósofos, da bondade da relação entre Uno e Múltiplo com Aristóteles, e da exclusiva substancialidade da Unidade com Platão.

Reale não poderia enxergar isso? É claro que sim. Como especialista, ele poderia me ensinar tudo isso melhor do que eu mesmo posso entender. Mas é isso o que ele quer? Parece que não. E é só isso o que interessa (lembrem-se dos cavalos e das carruagens). Ele teria que se interessar pela sabedoria (que sempre é divina) mais do que pelas filosofias, e mais do que reabilitar Platão com um reboque aristotélico, estaria preocupado em encontrar um bem e uma verdade que supera os dois infinitamente.

Como evidência de que Reale está buscando algo que não existe, podemos ver outro trecho que mostra como Platão vai em outra direção:

Ora, o limite dos números arquetípicos pela Dezena mostra que para Platão toda a Multiplicidade está contida pela Unidade. Como essa noção platônica poderia ser compatível com a doutrina do ser como gerado da união entre o Uno e a Díade? Não: o dualismo platônico nega a integridade do Múltiplo. Nisto erra, ao perder o valor dessa relação, mas por outro lado também acerta, contra a idéia que Reale quer nos vender, de que existe alguma substância gerada como composto a partir dessa relação.

Mas Reale é honesto em reconhecer os limites do dualismo, ou do “bipolarismo”, quando Platão o força a isso, como no caso da doutrina do Eros platônico:

Até aqui esta foi a defesa mais importante da primazia e supremacia do Bem platônico pela pena de Reale, ao menos nesta obra. Se se livrasse da sua dependência, por um certo vício aristotélico, da justificativa de um ser criado fora da Percepção do Ser como Bem, ou seja, fora do puro Intelecto, Reale poderia se livrar da necessidade de um composto que nega a Substância Simples, e portanto poderia se livrar da dependência da Díade, etc. Que não faça essa escolha é claramente, como se vê, uma decisão que não pode ser justificada por um rigor platônico.

A habilidade de Reale não pode ser negada, no entanto, na sua contínua justificativa da integridade das doutrinas não-escritas explicada a partir das peculiaridades características dos escritos platônicos. De fato, muitas vezes nos deparamos com o que parecem ser defeitos nos diálogos de Platão: finalizações abruptas, mudanças repentinas de assunto, etc. A mim parece o resultado de uma falta de tempo, ou da concorrência de outros interesses. Ou seja, causas banais, comuns, típicas, que geram ruptura e descontinuidade na obra de qualquer autor. Mas para Reale tudo isso se explica pela pedagogia platônica que genialmente usa os limites dos escritos para apontar para a solução na oralidade das doutrinas não-escritas. Parece-me uma aplicação, na História da Filosofia, daquela carteirada típica da Tradição Oral nas religiões. É verdade que Platão mesmo disse que as melhores ideias não poderiam ser escritas. Mas isso não quer dizer imediatamente que seus escritos sempre tenham a intenção de levar à evidência das suas doutrinas não-escritas. Reale pode estar preso na lógica de querer transformar algo acidental em uma metodologia.

Quando atua contra os adversários do idealismo platônico, Reale é exemplar e imbatível. No Capítulo Dezesseis, em que trata do Demiurgo e da origem criativa de todas as Idéias, trabalha como campeão da “segunda navegação”. Lembra muito bem da doutrina de Anaxágoras, mas das limitações naturalistas da Inteligência, ainda um Logos sujeito às amarras da “primeira navegação”. Diante de uma timidez filosófica de alguns intérpretes de Platão, Reale identifica o Demiurgo como a origem de tudo abaixo dos Princípios: das Idéias, dos Números, dos Elementos, e mesmo das idéias das criações dos homens. A Inteligência criadora só se submete ao seu Princípio, o Um, ou Bem, como um filho a um pai.

Ao tratar da Física platônica do Timeu, Reale faz uma leitura aristotélica que atribui maior substancialidade categorial à espacialidade do que seria necessário. De fato, parece-me que Platão é menos taxativo na aplicação do seu Princípio da Díade neste sentido. Não seria tão difícil para o grego assumir a total relatividade do espaço-tempo como função da operação do Intelecto, seja ela considerada como Percepção, ou como representação, etc.

Na sua explicação da Díade, Reale se impede de alcançar a maior simplicidade que talvez o próprio Platão já intuísse profundamente. Um exemplo do pensamento de Reale:

Se a Díade fosse apenas o reflexo do Uno, esta equação poderia relacionar 1:0, e esse Princípio seria reintegrado na completude da Unidade (o que era provavelmente o desejo de Platão, se nos lembrarmos do seu esgotamento dos Números arquetípicos na Dezena). Ou seja, com 1:0 a Díade perde substancialidade e deixaria de produzir por composição o engano da aparência do ser e da verdade, o que teologicamente corresponde à Idolatria. Platão de fato estaria perto da Mônada, como não poderia deixar de estar depois de aprender tanto com Pitágoras, Parmênides, etc. Reale, por sua vez, poderia aprender com um Leibniz (que, aliás, intuiu o poder imenso da linguagem binária da relação lógica 1:0) e enxergar a genialidade ainda oculta de Platão. Mas ele está preso no campo gravitacional desse monstro filosófico chamado Aristóteles, como muitos já estiveram e muitos ainda estarão. A clareza do Estagirita de fato é encantadora, quase hipnótica para intelectos tão sedentos de ordem.

O Princípio material sensível de que Reale fala é a obscuridade da mônada criada que carece do ordenamento trazido pela Luz, isto é, pelo Logos. A complexidade da cosmologia que Reale aponta só existe na mente de quem atribui, ou tenta atribuir, ser ao ininteligível:

Ora, assim como os Elementos não são as letras do ser inteligível, também não o são as várias formas matemáticas, geométricas e estereométricas, como muito bem reconhece Reale: as “letras”, ou partes mais simples do inteligível, são os Princípios. Mas ao colocar a Díade ao lado do Uno, Reale volta a complicar o que estava ficando mais simples. O que organiza o caos da pura possibilidade, ou esclarece a total obscuridade da mônada criada, é a Unidade que opera, como Intelecto, o reconhecimento de si mesma. Assim, do mesmo modo que os Números ideais, ou as formas geométricas, ou os sólidos platônicos, não constituem a integridade do inteligível que só o Uno pode realizar, também não o constitui a Díade. Ou seja, a Díade não é um Princípio que gera o Ser, mas é somente o Princípio que o nega, como o Nada da mônada criada por si mesma e restrita à sua própria obscuridade. O Ser é divino, e é o Uno. Os seres criados por si mesmos são o Nada, o “pó” bíblico, um ser totalmente analógico e dependente: esta é a Díade indeterminada, ou seja, obscura.

Por mais que Reale chegue a resultados metafisicamente insatisfatórios com a afirmação do valor dualista (ou “bipolar”) da protologia platônica, ele não deixa de ter seus méritos ao valorizar a metafísica em geral numa época que já se arrasta por muito tempo em grande miséria filosófica. À luz do pensamento científico de primeira linha desses grandes filósofos da Grécia antiga, a ciência de hoje em dia parece uma brincadeira:

A exceção que confirma a regra é a Física Quântica que já está sempre à beira de virar uma Filosofia Primeira, ou Teologia, e por isso sempre corre o risco de perder credibilidade no decadente mundo das certezas do Iluminismo.

Alcançando finalmente a conclusão da obra de Reale, convém deixá-lo se expressar nos seus próprios termos antes de eu mesmo chegar nas minhas próprias conclusões:

O “deus” abaixo do Uno, e portanto do Bem, não pode ser Deus no sentido mais eminente, ao menos não para os cristãos, e isso coloca o Demiurgo numa posição problemática. Talvez isso não incomode certos crentes num “deus” explicável, como o “deus” de Ratzinger em Ratisbona. Mas esse não é e nunca será o meu Deus: o Bem não lhe é obrigatório como anterior ou externo, mas é a sua essência.

Outro problema obviamente é o do sentido da semelhança com o divino. Jesus Cristo enquanto Filho de Deus encarnado Filho do Homem desvendou isto, e a resposta não consiste em ser sábio (como Salomão), e nem em ser filósofo (como Platão), mas em ser humilde (como Sócrates). Poderíamos investigar detalhadamente os elementos da imagem e semelhança e da realização disto no âmbito da recepção do dom da Presença, ou do Discernimento, ou ainda no contexto da Metareflexividade (o Sacramento do Momento Presente), mas isto sairia do escopo da análise da obra de Reale.

Ora, quem escreve na alma dos homens é o Espírito Santo, que ilumina os seus Intelectos feitos à Sua imagem exatamente para esta finalidade. Quanta pretensão!

Como já falei antes, nos comentários do Fedro e das Cartas, toda essa confusão foi gerada por Platão que, recusando a escrever como se deveria entender as suas próprias ideias escritas, apenas autorizou outros pensadores a escrevem com a suposta autoridade da tradição oral. Caso a interpretação a partir do entendimento dos discípulos tenha se desviado de uma intenção original, isso não é culpa apenas desses seguidores, se o mestre teria podido consignar um entendimento melhor. Se o efeito desejado da oralidade era o de fundar uma mais impressionante fidelidade do discipulado, isso deve prever o possível desvio da linha originária por erro ou malícia, como no caso de Sócrates, ou mesmo no caso de Jesus. De qualquer modo, como o registro escrito também não pode ser protegido do mesmo efeito dos erros e da malícia no decorrer do tempo, com a transcrição e tradução do texto original, na verdade não existe integridade garantida em nenhum objeto de domínio humano, seja o testemunho oral ou escrito.

Essa questão é crucial até para entender a muito importante diferença entre Sócrates e Platão.

Aquilo que não pode ser formalizado pelo Homem é a intuição intelectual gerada pela iluminação divina. Mas nem o filósofo pode fazer isso, supostamente registrando na alma as verdades dialeticamente dominadas. O que o filósofo faz é dar o testemunho do seu próprio amor ao Logos divino, e dos frutos dessa relação amorosa. E isso pode ser feito de qualquer maneira, às vezes, inclusive, somente por escrito. Se a indiferença, desprezo, descaso ou bazófia de leitores ou ouvintes desonra o conteúdo, isso não constitui ofensa maior do que aquela aceita pelos grandes profetas, para não falar de Jesus Cristo, todos acima (o último infinitamente) de Platão.

Reale pode estar certo tanto quanto queira, mas ao fim seria mais fácil, e teria mais efeito universal, anunciar suas crenças como uma legítima e bela corrida dos cavalos da vontade rumo à verdade, do que querer vencer uma batalha entre intelectuais que entesourarão suas conquistas nas masmorras de suas torres de marfim, bem distantes e seguros contra qualquer risco de servir ao próximo com o seu trabalho. Se algo é verdadeiro, ou relativamente mais verdadeiro (provável), não deveria servir para todo e qualquer ser humano?

Nota espiritual: 4,4 (Moriquendi)

Humildade/Presunção4
Presença/Idolatria4
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo4
Vigilância/Ingenuidade4
Discernimento/Psiquismo5
Nota final4,4

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