As Leis, livro por PLATÃO

Se pelos frutos conhecereis a árvore e o livro As Leis, de Platão, é uma obra da maturidade do filósofo, então aqui encontramos o resultado mais refinado do pensamento do grego, e com isso podemos tirar várias conclusões.

A primeira evidência que me saltou aos olhos foi a grande distância do espírito da filosofia socrática, e mesmo da liberdade especulativa do primeiro platonismo. Com As Leis o compromisso de Platão com a Tradição Primordial se cristalizou completamente. Em diversas ocasiões a mera antiguidade de uma idéia ou costume é tido literalmente como evidência da sua validade, como se a malícia e a idiotice humanas não tivesse os seus antepassados. Tudo o que havia de ruim com A República se confirmou e adquiriu uma face ainda piorada nesta obra. Mal se percebe o grande filósofo que produziu aquelas poderosas intuições a respeito do Sumo Bem, e as profundas reflexões sobre as relações entre o Uno e o Múltiplo que tanto inspiraram o futuro neoplatonismo, Agostinho, etc.

O objetivo de Platão com esta obra foi a produção da legislação de um Estado ideal (a Magnésia), uma tarefa que se desdobra na criação de preâmbulos e de regras. O desenvolvimento desse tipo de nomos presume a distância da maioria dos seres humanos das atividades de contemplação e reflexão a respeito do Bem, de modo que o povo deva ser conduzido pelos guardiões do Estado como se fosse gado. Esse ser humano não é a imagem e semelhança de Deus: é uma entidade indiferenciada, que pode ter até um potencial a ser desenvolvido, mas cujo destino individual não pode ser colocado nem ao lado, e muito menos acima, do destino coletivo da polis. Ou seja, a soteriologia platônica, gnóstica, presume a necessidade de uma governança política que mantenha uma certa máquina em funcionamento constante, cíclico e por tempo indeterminado, de modo que as almas possam nascer e renascer com uma dada oportunidade para o desenvolvimento de suas almas. Nessa visão é mais importante manter as tradições e costumes do Estado que permitam a ascendência das sempre poucas almas dispostas à adquirir a Gnose, do que o questionamento da origem dessas mesmas tradições e costumes. É uma visão ingênua, de um idealismo imanentista que não tem nada a ver com o melhor potencial do platonismo.

Na mais segura e garantida confirmação da minha hipótese do Culto do Ouroboros, que entende que o costume humano da perpetuação do Pecado Original é a verdadeira Religião do Homem, Platão estabelece logo no princípio das leis mais importantes do seu Estado ideal o seguinte:

Nada é mais estúpido e distante da verdadeira divindade do que o desejo dessa falsa imortalidade, e dessas glórias humanas. Que uma alma como a de Platão tenha encontrado nisso a forma mais prática do seu ideal só nos mostra como é difícil ter liberdade contra o Culto do Ouroboros. A liberdade que eu tenho hoje, e da qual usufruo dando glória a Deus, Platão não só a condenaria, mas recomendaria como punição a minha morte, assim como o seu mestre Sócrates foi morto por abusar da sua liberdade de pensamento. É disso que se trata o Culto do Ouroboros: uma guerra contra a liberdade humana de buscar o Deus verdadeiro. Uma guerra de julgamento, condenação e extermínio, sem misericórdia.

Para aqueles que acham que a presente discussão sobre o problema da queda da taxa de natalidade é uma questão moderna, temos uma citação que mostra a preocupação que o estadista deveria ter, na visão de Platão, sobre a manutenção da população de escravos à disposição do poder político:

Eis aí a evidência da verdadeira natureza da arte política: o domínio de uma massa de escravos à disposição dos ideais dos governantes. E mais ainda, fica evidente a total manipulação da idéia do que é sagrado e divino, ou seja, do sentimento de piedade e religiosidade, para confirmar e consolidar a realização dos desejos dos poderes humanos. Foi o que Adão e Eva começaram a fazer com Caim e Abel, e vai até o Anticristo: eis o nosso “deus”, suas leis, etc.

As provas de como a Religião é uma ferramenta de domínio político são muito abundantes no texto de As Leis:

Não está errado, diante dessa lógica tão evidente, a concepção de que os interesses políticos e econômicos precedem a cultura religiosa de uma população. Se um Marx afirma, diante dessa filosofia platônica, que a Religião é parte de uma superestrutura, ele não tem razão? Claro que tem. Assim como qualquer ateu que repudiasse essa vergonhosa manipulação do sentimento popular. Digo vergonhosa porque a elite pode até reconhecer a conveniência dos costumes, como a Religião e a Família, para a manutenção da ordem social, mas não como um ideal político. Se essas práticas tradicionais são um reflexo da necessidade da arbitragem da Mistura, isso é um mal necessário, mas ainda assim são escolhas que deveriam ser abertamente condenáveis todas as vezes. Ou, no mínimo, deveriam ser inferiorizadas em comparação a outras escolhas de vida. Ou seja, onde Marx ou qualquer ateu erram é no motivo da rejeição da Tradição Primordial: a alternativa não é uma liberdade para a negação da divindade, mas sim a condenação da falsa divindade para a afirmação da verdadeira que foi traída, usurpada, etc.

Subitamente, no meio de As Leis, parece que o próprio Platão de repente lembra disso ele mesmo:

Platão sabe que esta sua filosofia política é praticamente uma outra coisa, muito inferior à melhor filosofia possível que ele já havia desenvolvido antes e que já tinha aprendido com Parmênides, Pitágoras, Sócrates, etc. Mas ele não consegue renunciar à ambição da modelação do poder político de acordo com um certo ideal filosófico, ou seja, não aceita ser governado por espíritos inferiores. E na necessidade da produção de um programa realizável, ele vai se afundando em concessões cada vez maiores e mais graves à Realpolitik, por fim comprometendo-se por completo com idéias que não tem mais nada a ver com aquela sua liberdade filosófica originária que supostamente teria alguma superioridade em relação aos poderes políticos estabelecidos. O grande filósofo grego não sabe que não há acordo entre o espírito de Deus e espírito do mundo: ele não conhece a Obra de Separação, não conhece o sentido da Queda, e portanto desconhece também o sentido a verdadeira Salvação.

Esse Platão que desconhece a verdadeira Redenção humana está preso na lógica da Mistura do Gnosticismo, e numa visão trágica da vida humana. Ele mesmo o assume:

O que havia de libertador (catártico) na tragédia grega que fazia a comunidade superar a visão tradicional cultivada a partir de seus costumes se torna proibido no Estado ideal platônico. É o triunfo total tirania do Culto do Ouroboros: vocês estão presos e continuarão presos para sempre neste esquema. A única salvação está na difícil obtenção de uma Gnose restrita a minoria de uns iniciados…

Instruídos pelo Eclesiastes, sabemos que não há nada de novo sob o sol. Já vimos que a preocupação com a natalidade é antiga e já remonta à idealização do Estado da Magnésia. Mas podemos ir além, e de forma mais extensa, e reconhecer a total compatibilidade entre essa doutrina platônica e aquela das Leis de Noé, especialmente a sexta lei que rege a sexualidade humana:

Qualquer conservador tradicionalista nos diria que o que se repete é o testemunho da verdade da função sagrada da sexualidade humana, evidentemente. E como amostra da validade dessa idéia toda a decadência moral gerada pela liberação sexual seria a qualquer momento referida como a mais evidente prova. Isso tudo é falso, porém: a diferença que existe entre liberdade e libertinagem não pode ser confundida senão pelos tolos, ou por aqueles que lucram com a acusação do natural desejo humano pelo que é aprazível, agradável, etc. Creiam-me: há muito lucro a ser explorado pelo julgamento do desejo pelo bem, ou seja, pela condenação do próprio Amor, no sentido não só da Philia, mas também do Eros. O desejo pelo bem nunca é mau. O mal está na traição ao amor, ou seja, na busca do Poder contra o bem de si próprio ou do outro. A verdadeira liberdade só existe para o Bem, ou seja, para quem se permite agir ou não tendo como regra apenas a autoridade da própria consciência. A libertinagem não tem nada a ver com a liberdade: é apenas a vontade pueril de se rebelar contra regras morais cuja função é a contenção dos seres humanos inconscientes da sua própria amabilidade e da de terceiros, ou seja, de pessoas moralmente mal formadas. Em termos bíblicos: a Lei só existe para o conhecimento do pecado, e não da salvação. O uso da atividade sexual para a construção e manutenção de um Poder político, por outro lado, é claramente a usurpação de uma atividade finalística (que tem um bem em si mesma) para o seu uso com vistas ao domínio da realidade. Isto quer dizer que a doutrina platônica, bem como a da sexta lei das Leis de Noé, é a traição contra o verdadeiro Bem que nos permite enxergar, por trás da obscura vantagem do sexo atual, qualquer ideal transcendente. Se qualquer sexo fosse bom, ele o teria de ser para sempre. Assim como esse uso político restringe a bondade própria (e no fim das contas a nega) do sexo, do mesmo modo o gnosticismo também condena qualquer qualidade inerente a uma função corporal que ultrapasse seu uso na contingência apenas para a sua superação: o gosto do alimento, o cheiro do perfume, o prazer do toque, etc., tudo isso constitui bens falsos que devem ser superados, e portanto só contingencialmente utilizados com a finalidade da sua superação, como meros meios. Em suma: negar a bondade do prazer criado por Deus não pode terminar bem, pois é uma mentira, assim como é mentira que possamos nos entregar ao prazer indiscriminadamente, como as virgens loucas. Essas duas mentiras escravizam. A verdade está na liberdade de admitir todo bem possível, mas viver apenas pelo Amor divino: não negar nenhum bem possível, mas confiar no Noivo como aquele que nos ama e nos dá o bem, como as virgens prudentes. Todo o Cântico dos Cânticos versa sobre essa sabedoria.

Platão não está totalmente alterado, porém. Ele ainda se lembra, como já notamos, do que realmente interessa. E podemos notar novamente:

Esse testemunho poderia frutificar tanto, se o filósofo esquecesse o problema da correção política! Se se dedicasse somente ao divino, Platão já tinha tudo na mão para produzir uma Monadofilia melhor do que a minha, obviamente. Não fico feliz de afirmar que tudo o que é parte do único ser real, que é a Substância Simples, como o Múltiplo que manifesta aspectos do Uno: eu preferiria que Platão o tivesse afirmado, poupando-me de ter que dizê-lo, e talvez até de existir sob esta condição presente. Quem sabe, afinal, como seria um mundo onde o platonismo tivesse caminhado em outra direção? Que ele podia fazer isso se quisesse, esta última citação já o prova.

No Livro X, na formação do preâmbulo introdutório à legislação contra os crimes de impiedade, Platão tem que finalmente voltar a produzir alguma filosofia mais fundamental, embora de forma limitada, sem aquela liberdade dos antigos diálogos. A negação dos deuses é dividida em três categorias: a negação da existência, a alegação de indiferença dos deuses, ou a crença na sua corruptibilidade. Pensando bem, Platão discursa contra o ateísmo, contra o agnosticismo, e contra a religião comercial, no sentido pobre dela (o suborno do divino com rituais). Contra o ateísmo seu argumento é o da primeira causa eficiente que move e não é movida (o futuro Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles). Contra o agnosticismo o argumento é o da inconveniência da indiferença da divindade, e o mesmo é dito contra a religião comercial.

Mas é importante relembrar sempre que Platão se dá o direito, como filósofo, que recusa aos outros: o de fazer uma revisão dos relatos mitológicos e do seu sentido religioso. Então não há nada de sagrado nas tradições em si, mas antes o sagrado é o sentimento piedoso ou religioso do povo, amorfo e indiferenciado, a ser manipulado pelos verdadeiros sábios, que são os filósofos. Essa é a visão platônica. E é óbvio que isso repercute a mentira do Culto do Ouroboros: a Religião do homem é mentir sobre Deus para dominar as massas.

O próprio texto de As Leis termina abruptamente, sem a solução do maior problema de todos, que é o da qualificação dos governantes supremos, o chamado Conselho Noturno de Magnésia. Estas autoridades devem possuir a ciência que dá acesso à sabedoria mais plena, capaz de preparar uma alma para o governo de todas as outras almas cujas ciências são especializadas. Esse problema é tratado num texto apensado, Epinomis, que consta desta mesma edição que estamos trabalhando.

Neste âmbito Platão tem que voltar a uma filosofia mais pujante, aquela das Idéias, dos Números e dos Princípios. E termina assim o seu testemunho:

Querer que a partir do Múltiplo para o Uno se realize o destino da alma humana realmente não é algo errado, bem como a busca da verdade na Unidade. Tudo isso está muito bem, mas o grande problema é o da substancialidade do Múltiplo, que é a constante dificuldade grega com o problema da ousía derivada da falta da noção de uma analogia pura. E além disso, é claro, outro grande problema é o dessa ascese gnóstica que afirma a possibilidade de conquistar e deter dons divinos, a felicidade, etc.

Se Platão não se desviasse dos objetos mais sublimes e metafísicos da sua filosofia para se dedicar aos problemas políticos, como fez aqui com As Leis, talvez tivéssemos conhecido profundidades ainda maiores do que aquelas que eu penso poder alcançar com a minha modesta Monadofilia.

Mas será que os filósofos, quando amadurecem, estão fadados a essa obsessão com o problema da Política? Como intermediária entre o âmbito da phronesis e o da theoria, de fato a Filosofia Política parece ser tentadora, e talvez seja a última tentação de todos os bons filósofos, como a última tentação de Cristo foi a da oferta do governo de todas as nações da Terra.

Nota espiritual: 3,1 (Moriquendi)

Humildade/Presunção3
Presença/Idolatria4
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo2
Vigilância/Ingenuidade1
Discernimento/Psiquismo2
Nota final3,1

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