Nascido em 1646 e morto em 1716, Leibniz foi grande, mas consumiu-se em projetos talvez grandiosos e otimimistas demais. A combinação de extraordinárias diligência, tenacidade, inteligência e positividade o levaram talvez mais longe do que o que seria prudente se ele fosse um pouco mais realista. Ele não quis sacrificar e comprometer duas coisas muito tentadoras para um intelecto do seu porte: a exploração das muitas possibilidades ramificadas de entendimento, e a qualidade do trabalho intelectual. Entre fazer pouco bem feito e fazer muito mal feito, ele quis fazer muito e bem feito, e por isso era comum que começasse mais coisas do que podia terminar.
Felizmente, para nós, ele não nasceu na nobreza alemã. Isso permitiu que ele fosse forçado a provar seu valor por mérito. Por temperamento, é fácil vê-lo perder-se com uma vida mais fácil: como mero diplomata e cortesão, fazendo as duas coisas que ele mais amava, acima até do trabalho intelectual, ou seja, viajar e visitar os amigos.
O contexto político e religioso de sua vida foi o das terríveis guerras de religião que assolaram a Europa até que o secularismo finalmente vencesse, isto é, até que o messianismo milenarista da Igreja Católica fosse forçado a enclausurar-se dentro dos muros do Vaticano. Leibniz trabalhou muito para que a Europa vivesse em paz, como advogado, jurista, inventor, cientista, diplomata informal, ministro sem pasta e finalmente como filósofo de primeiro calibre.
A respeito do poder intelectual de Leibniz, até hoje posso afirmar: não encontrei uma inteligência superior a dele ou à de Aristóteles na forma do testemunho de suas obras.
A biografia desse filósofo mostra como intelectos de uma certa potência não cabem direito dentro das estruturas sociais. Provavelmente a maior vantagem de Leibniz foi a de explorar o seu autodidatismo desde cedo, principalmente com a descoberta da biblioteca do pai aos 8 anos de idade, ainda em Leipzig, por influência do incentivo de um desconhecido que recomendou a abertura do acesso à criança, que tinha então seus 8 ou 9 anos de idade. Uma inteligência superior ganha muito com a possibilidade de ensinar-se a si mesma os assuntos que lhe interessam, pois não precisa passar pelo gargalo de aprender com mentes mais lentas ou menos capazes: pode logo dirigir-se aos melhores testemunhos que seria capaz de absorver, e no limite da velocidade de sua capacidade. Até hoje a maneira correta de incentivar esses intelectos superiores parece ser dificultosa, e esses raros indivíduos acabam por ter que descobrir por si mesmos como lidar da melhor forma com seus dons. os sistemas coletivos são feitos para a média, isto é, para o medíocre, e por isso mesmo essa realidade social se torna opressiva e torturante para as inteligências mais capazes. A Providência, porém, não deixou de guiar Leibniz desde cedo, começando pela intervenção desse misterioso desconhecido.
Para além das particularidades mais imediatas da vida intelectual do jovem Leibniz, há a força maior da influência dos esquemas políticos e sociais do seu ambiente que acabaram por contribuir na formação de seu pensamento. O ideal da Unidade da Verdade foi um dos frutos dessa força: é o princípio por trás da idéia do Sacro Império Romano, a unidade do Cristianismo (entre Católicos e Protestantes), e também o da unidade da Filosofia (Antigos e Modernos), para não falar da unidade entre Ciência e Teologia. Leibniz estava, como disse Olavo em sua História Essencial da Filosofia, “no olho do furacão”. Ele aprende com os antigos e escolásticos medievais tanto quanto com todos os modernos filósofos e cientistas do Iluminismo. Ele se recusa a acreditar numa verdade como posse de qualquer grupo filosófico, ou como parte de uma época da História, assim como crê que o Cristianismo universal transcende todas as igrejas, inclusive a romana. Este ponto de vista sempre foi uma grande vantagem intelectual para Leibniz, porque ele se permitia aprender com todo mundo. Diante da perda de tempo dos sectarismos, ele largava sempre na frente.
O objetivo de Leibniz em sua vida ficou claro desde cedo: glorificar a Deus e melhorar a condição da vida humana, dois propósitos que para ele significavam sempre a mesma coisa. Este seu progressismo fazia e faz sentido até hoje, pelo menos na teoria, no sentido de que quanto melhor viverem os seres humanos, mais estariam livres e dispostos para reconhecer as coisas divinas. Na realidade, porém, ocorre uma dispersão muito maior da atenção humana com suas vantagens técnicas e econômicas, o que parece ter escapado de Leibniz, que não era muito ligado ao sentido mais místico e contemplativo da vida espiritual. Era um homem de ação, e ambicioso. E não nos enganemos, com isso ele também desejava obter a sua própria glória científica, num espírito até certo ponto benéfico de uma boa ambição temporal. No aspecto mais decadente de sua alma, Leibniz podia se perder indefinidamente com a rotina de um diletante, cortesão e viajante. Observamos essa luta na sua alma, entre a produtividade intelectual e o dolce far niente.
Vamos agora ler algumas passagens interessantes da obra:


Tradução livre:
“Em sua obra Formação das Reflexões para o estabelecimento de uma Academia ou Sociedade na Alemanha para a Promoção das Artes e Ciências Leibniz revelou o mais profundo fundamento desse projeto de teologia, metafísica e ética. Em suma, o avanço da ciência seria feito para a glória de Deus, o que coincidia com o bem comum. O avanço do nosso conhecimento da natureza aumentava nossa consciência da harmonia universal em operação na natureza e celebrava o reflexo na natureza da perfeita harmonia do poder, sabedoria, e amor na própria natureza divina. Nossa consciência da perfeita harmonia da natureza divina por sua vez sustentaria nosso amor a Deus; e o amor a Deus constituiria nosso maior bem. Por essa razão, ‘amar a Deus sobre todas as coisas’ é ‘nada mais que amar o bem comum [amare bonum publicum] e a harmonia universal’. Esse amor deve assumir a forma de uma atividade prática: deve ser um ‘amor eficaz’ (caritas efficax) que é encontrado na realização de ‘boas obras’ (bona opera). Realizado neste espírito, o avanço da ciência celebrava o poder de Deus, sua sabedoria e seu amor, não apenas através de uma contemplação teorética da beleza da Sua criação, mas também através da aplicação prática do conhecimento para promover o bem comum. Até o fim de sua vida, escrevendo em 16 de Janeiro de 1712 para o chanceler russo, Gavriil Ivanovic Golovkin, Leibniz resumiu esses compromissos de vida, declarando que desde sua juventude ele quis contribuir para a glória de Deus através do avanço das ciências.“
Vejamos parte a parte.
Primeiramente, a glorificação de Deus coincide com a promoção do bem comum? Apenas acidentalmente. Aqui Leibniz confundiu a Cidade de Deus com a Cidade dos Homens, algo ainda bem possível no bojo de uma vasta influência remanescente da ideologia católica, milenar, messiânica e totalitária, herdada por sua vez do judaísmo. A Salvação não é a instauração do Reino de Deus na Terra, mas é a Ressurreição. A visão espiritual de Leibniz é religiosa. Mas isto não quer dizer que acidentalmente não possamos enxergar no progresso humano a habilitação prática de uma humanidade com a potência do desenvolvimento espiritual. Mas isto é indireto. O avanço técnico, prático, econômico e social leva a uma maior liberdade individual, e isto sim pode, em tese, melhorar a condição para o exercício mais pleno da vida espiritual.
Em segundo lugar, a ampliação do nosso conhecimento da natureza amplia o conhecimento da harmonia divina da realidade? De novo, apenas acidentalmente. Parece que o nosso filósofo está medindo a humanidade com sua régua. Claramente, como já vemos na Bíblia em diversas partes, e mesmo na denúncia específica do Apóstolo Paulo, há aqueles condenáveis por possuírem a ciência da obra e mesmo assim ignorarem o seu Criador. Para a inteligência de Leibniz a necessidade de honrar a Deus mediante a observação do ordenamento divino da realidade é um processo natural e inegável. Mas isto é ingenuidade, aquela mesma ingenuidade das Filhas do Rio que não acreditavam que alguém seria estúpido o suficiente a ponto de amaldiçoar o Amor para roubar o Ouro do Reno. É um otimismo exagerado, que não quer enxergar a profundidade da traição humana contra Deus, e o costume derivado dessa traição no seio da cultura, inclusive e principalmente a cultura religiosa. Isso me faz simpatizar muito com ele.
Já sobre a questão do valor do valor prático dos conhecimentos em contraste com uma atividade mais contemplativa, isso refletia o temperamento de Leibniz, mais ativo e sanguíneo, o que o dispensava de compreender com profundidade o valor de uma vida interior menos envolvida com o progresso da civilização. Isto não quer dizer que Leibniz não estivesse enganado em seu otimismo ingênuo com relação à idéia da Humanidade como um todo. Era um dos piores defeitos de sua weltanschauung.
Outro trecho:

Tradução livre:
“Essa exortação da nação alemã não estava dirigida a promover um nacionalismo estreito. Evidência de um desígnio muito mais abrangente está contida num texto memorável escrito por volta de 1669 em que Leibniz concebeu na Societas Philadelphica o objetivo proposto que era o de ‘promover a utilidade para a humanidade (acima de tudo através da medicina)’. Perseguindo este objetivo, o trabalho colaborativo de uma sociedade traria infinitamente mais frutos do que os esforços de indivíduos ou até mesmo de nações individuais, que Leibniz comparava a ‘arena sine calce’ (‘areia sem cal’). Essa sociedade deveria abarcar divisões religiosas e políticas, abarcando o Imperador e o Papa, o Rei da França, os grandes e pequenos principados alemães, a inglesa Royal Society, a Companhia Holandesa das Índias Orientais, e as ordens religiosas de estudos. A Sociedade de Jesus em particular provia um modelo para uma sociedade internacional, com a diferença crucial de que a nova fundação proposta por Leibniz não teria natureza confessional. Ao contrário, era modelada para preparar a reconciliação das Igrejas cristãs de acordo com uma idéia mais desenvolvida num texto do mesmo período que descrevia a Societas Confessionum Conciliatrix.”
Essa é uma espécie de síntese da ingenuidade leibniziana, na total ignorância do sentido e da repercussão histórica de Gen 3, do sentido do humanismo da Torre de Babel, bem como do sentido do Apocalipse, e de Deus que fará novas “todas as coisas”.
Esta biografia de Leibniz coteja os pensamentos do filósofo com as circunstâncias de seu trabalho intelectual, como é sempre devido para mostrar a realidade de qualquer pensador. A importância das conexões de Leibniz com seus patronos nunca pode ser diminuída.
Por exemplo, numa dada época, com as mortes do Barão von Schönberg (diplomata da Saxônia, morto em 1669) e depois Boineburg (conselheiro do Eleitor de Mainz, morto em 1672), Leibniz subitamente perde seus principais apoiadores.
Leibniz não consegue estar onde quer, e nem fazer o que quer. Nem Paris, nem Londres: a corte de Hanover é o destino de um alemão sem origem nobre. Por outro lado, a mistura das ambições puramente teoréticas, especialmente as filosóficas, com as mais mundanas, políticas e econômicas, certamente diminuíram a contribuição leibniziana para a Humanidade, o que é irônico porque gerou o resultado exatamente oposto ao desejado pelo filósofo. A escala do gênio de Leibniz possivelmente escapou a ele próprio. Querendo ser grande em seu tempo, não percebeu como poderia e que seria grande para todos os tempos. Mas entendemos o ser humano na sua circunstância: Leibniz sempre precisava trabalhar no desenvolvimento de meios de sustentação de seus projetos intelectuais, e esses meios eram essas ocupações intelectuais secundárias. Mas até que ponto o dinheiro servia apenas às causas puramente intelectuais, e a partir de que ponto servia também aos interesses particulares do próprio Leibniz? Em seu auge, sua renda alcançava o que hoje equivaleria a uns R$ 2,5 milhões por ano, e ao morrer ele teria deixado ao menos o dobro disso para seu único herdeiro, um sobrinho. E que fique claro: o problema não é a renda ou a propriedade de qualquer montante, mas o custo existencial para a formação dessas rendas e propriedades.
A forma mais concreta do seu comprometimento foi a ambição de financiar um projeto coletivo de progresso científico e cultural, o que o fez dedicar muito tempo para o problema do aumento das rendas do principado de Hanover, especialmente com os projetos ligados à mineração de prata em Harz, e depois finalmente da ambiciosa pesquisa histórica da dinastia da Casa Braunschweig-Lüneburg (Guelfos). Muito tempo e energia foram dedicados a essa ambição de ganhos financeiros como meios para alimentar a outra ambição, a de institucionalizar um organismo estatal de pesquisa e desenvolvimento. Qual teria sido o resultado, por exemplo, para a Metafísica, se Leibniz tivesse dedicado toda a sua capacidade para esse âmbito específico do conhecimento?
Mas Leibniz não é Descartes, nem Kant, e nem Espinosa: ele não queria apenas explorar sua própria alma e as verdades transcendentes, mas queria explorar todo o mundo concreto, viajar, travar conhecimentos com os poderes estabelecidos, interferir no curso da história, etc. Não queria aumentar seu entendimento individual. Queria que todos o acompanhassem, como um projeto coletivo, social, nacional e até internacional para toda a Cristandade (para não dizer o mundo, como mostra o seu entusiasmo com a China). Isso certamente diminuiu a eficiência de seus projetos. Leibniz colecionou muitas frustrações, mas curiosamente nada parecia desanimá-lo. Era muito enérgico e disposto, com uma capacidade aparentemente inesgotável de se dedicar ao trabalho.
Vejamos outro trecho:

Tradução livre: “Durante todo este período, debaixo do nível visível e impressionante das várias atividades públicas de Leibniz, um nível mais privado provia as motivações profundas de seus projetos orientados para a prática, e de sua busca por um patronato esclarecido. Essa dimensão mais profunda consistia de seu plano enciclopédico de máxima abrangência de reforma e avanço das ciências para a promoção do bem comum –o plano que ele considerava ser a celebração da glória de Deus como expressa na harmonia universal que governa a Sua criação. Como ele escreveu em 1678, ‘todas essas coisas estão conectadas e devem ser dirigidas ao mesmo objetivo, que é a glória de Deus e o avanço do bem comum através de criações úteis e belas descobertas’. E de novo em 1699: ‘Contribuir para o bem comum e para a glória de Deus é a mesma coisa. Parece que o objetivo de toda a humanidade deveria ser acima de tudo nada além do conhecimento e desenvolvimento das maravilhas de Deus, e foi por isso que Deus deu à humanidade o domínio sobre este globo.”
Leibniz claramente ignora o sentido espiritual da última tentação de Cristo, bem como a declaração de Jesus de que ele “venceu o mundo”, para não falar de muitas outras verdades evangélicas óbvias. Isso não diminui o valor parcial de seu entendimento, de que o bem comum serve a Deus de algum modo, mas esse tipo de progresso não altera a condição da liberdade espiritual humana, e nem modifica a predisposição das almas para suas escolhas particulares.
Não devemos nos enganar sobre a visão de Leibniz sobre o Evangelho: ela é religiosa. Não há a menor chance de este filósofo considerar o sentido mais profundo da Queda em Gen 3, nem a possibilidade do Sistema da Besta. Infelizmente o seu otimismo não tinha apenas aplicações metafísicas, que incentivariam o idealismo transcendental, mas também repercussões históricas em vastos planos para a Cidade dos Homens, que incentivam o idealismo imanentista, o que converte esse seu otimismo filosófico em ingenuidade espiritual. Ainda que mantivesse sua confissão luterana, seu coração era ideologicamente católico, no sentido da universalidade da Civitas Dei na sua forma temporal (a própria Igreja institucionalmente estabelecida ao lado do Sacro Império Romano), e na verdade na idéia da fusão das suas cidades. Ele só não se converteu à religião de Roma porque fazê-lo implicaria em renunciar à esperança do ecumenismo, e porque no fim sabia de algum modo, como veremos, que a igreja romana era totalitária e contrária a liberdade do homem. Do ponto de vista prático, por que ele se preocuparia em modificar sua confissão, se essa particularidade fosse espiritualmente indiferente diante de Deus? E motivos práticos para sua conversão não faltavam, por certo. No seio do Sacro Império Romano, servia a tantos católicos proeminentes, que só poderia ter vantagens: Schönberg, Boineburg, Johann Friedrich, etc., para não falar de seu interesse em fazer boa imagem na poderosa França católica de Luís XIV, bem como na grande Viena de Leopoldo I. Realmente podemos constatar a fidelidade de Leibniz ao ideal se suas Demonstrationes Catholicae. Um homem menos honrado teria abandonado o luteranismo.
Mais um trecho:

Tradução livre:
“Essa concepção da verdade e do conhecimento como envolvendo uma redução analítica de proposições e conceitos complexos à proposições idênticas e conceitos primitivos explica porque Leibniz perseguiu tão energicamente a identificação dos conceitos primitivos das quais todas as verdades são formadas em última análise. Daí a sua incansável compilação de listas de tais conceitos e de cadeias de definições que eram dedicadas para formar o ‘alfabeto do pensamento humano’ defendido desde pelo menos 1668 na Dissertatio de Arte Combinatoria.
A identificação desses conceitos era também um passo na direção do desenvolvimento da characteristica universalis. Tão logo esses conceitos (ou pelo menos o máximo possível deles) fossem encontrados, as tarefas subsequentes seriam a identificação dos ‘caracteres’, ‘signos’ ou ‘símbolos’ apropriados para representá-los e a formulação das regras para a sua correta ‘combinação’. O desenvolvimento da characteristica universalis tinha portanto tanto um aspecto analítico (levando à identificação dos conceitos primitivos) quanto um aspecto sintético e ‘combinatorial’.”
A apreciação desta intenção filosófica de Leibniz é clara para quem quer que tenha trabalhado com a descrição de uma visão universal da realidade, ou seja, com uma Filosofia no sentido mais estrito. A combinação da clareza com a simplificação até o limite é uma obsessão natural e inescapável de quem deseja contemplar o Ser com a máxima fidelidade, bem como a produção de uma linguagem cada vez mais apropriada a essa visão é uma busca igualmente incontornável.
O que deve parecer óbvio a quem quer que seja é que a ambição intelectual de Leibniz só poderia ser realizada através de um imenso aparato coletivo, o que justifica a sua busca incessante por um patronato rico e poderoso, um grande principado esclarecido. Mas Leibniz possivelmente ignorava que a qualidade de tal trabalho exigiria algo ainda mais difícil que um patrocinador poderoso: intelectos abrangentes como o dele próprio. Afinal, a Europa de então tinha fortes candidatos a essa função de patronato, seja o Rei da França, o Rei da Inglaterra, o Rei da Prússia, ou mesmo o Czar. Mas quantos Leibniz existiam nessa mesma Europa?
Outro trecho:


Tradução livre:
“Apenas Deus –que (como ensina a tradição) não precisa da razão discursiva ou demonstrativa típica de seres limitados, mas que sabe tudo por um conhecimento intuitivo adequado– vê imediatamente a contenção do predicado no sujeito em todos os tipos de proposições, inclusive as contingentes:
‘E aqui se descobre a diferença escondida entre verdades necessárias e contingentes, o que não é fácil de entender para quem não entende ao menos os rudimentos da matemática. Em proposições necessárias, é claro, qualquer um alcança uma equação idêntica pelo meio da análise continuada até certo ponto; e isso é precisamente o que significa demonstrar a verdade com rigor geométrico. Nas proposições contingentes, porém, a análise procede infinitamente [in infinitum], através de razões de razões [per rationes rationum], de maneira que nunca há uma demonstração total; ainda assim, a razão [ratio] da verdade sempre subsiste, ainda que só possa ser conhecida perfeitamente apenas por Deus, que sozinho pode percorrer a série infinita numa intuição singular.’
Essa doutrina da análise infinita marcou um desenvolvimento chave no pensamento de Leibniz. Embora, por um lado, ela foi introduzida para dar conta da distinção entre verdades necessárias e contingentes, por outro lado, ela apontava para a sua identidade estrutural. No caso de ambas as verdades, necessárias e contingentes, o predicado está contido no sujeito, mas enquanto a demonstração dessa contenção está disponível para nós apenas no caso das verdades necessárias, tal demonstração não é possível no caso das verdades contingentes desde que elas envolvem o infinito. Este é o motivo pelo qual seres humanos nunca poderão conceber o conceito completo correspondente a uma substância individual, e porque o adequado conhecimento de substâncias individuais está disponível apenas para a mente infinita de Deus.”
A contenção do predicado no sujeito corresponde à operação intelectual, na Mônada, da Percepção do reflexo de si mesma. Leibniz já estava na pista de uma metafísica muito mais avançada do que a sua época podia conceber, ou mesmo que até hoje se possa. Mas o componente moral dessa inteligência continua oculto: o da premissa de que o Intelecto infinito possuidor da intuição da Unidade é bom e, portanto, confiável. Essa não era a investigação de Leibniz, porque a teologia revelada da sua época deveria pressupor tal virtude como premissa, mas é nossa obrigação observar como uma coisa não funciona sem a outra, ou ainda, como pensaria Sócrates: sem virtude não existe conhecimento.
A seguir, vejamos mais um trecho relevante:


Não poderei traduzir este trecho completo, mas o deixo à disposição para consulta. A linguagem diádica, ou binária, que Leibniz desenvolveu nada mais significou do que a recuperação daquela antiga investigação iniciada no Ocidente por Pitágoras, e então continuada por Parmênides, Platão e Plotino, da relação entre o Uno e o Múltiplo. Segue a tradução livre das partes mais importantes do trecho acima, palavras do próprio Leibniz:
“Pode bem ser que uma única coisa é concebida através de si mesma, nomeadamente o próprio Deus, ao lado da qual não há nada, ou a privação. Isto é esclarecido por um admirável símile. Quanto contamos, nós geralmente usamos o sistema decimal, de modo que quando chegamos a dez, nós reiniciamos à partir da unidade. Que isso é conveniente, eu não disputo agora; enquanto isso, eu vou mostrar que é possível usar em seu lugar um sistema binário… Não tocarei agora nas imensas vantagens desse sistema; é o suficiente notar de que modo maravilhoso todos os números são expressos assim através da unidade e do nada.”
“Desde que todos os espíritos são unidades, poder-se-ia dizer que Deus é a unidade primordial expressa por todas as outras de acordo com suas capacidades. Sua bondade o moveu a agir, e há nele três primícias, o poder, o conhecimento, e a vontade; disso resulta a operação ou a criatura, que é variada de acordo com diferentes combinações da unidade com o zero, isto é, do positivo com o privativo, desde que o privativo não é nada além de um limite, e há limites por toda a parte na criatura tanto quanto há pontos por toda a linha.”
A privação de Ser não o possui, mas o limita na forma substancial da operação da Mônada criada que intelige e apetece parcialmente a totalidade da Unidade. Toda operação intelectual e volitiva fora do ser divino se dá pelo limite em face do Ser divino, tanto quanto o Múltiplo deriva do Uno, etc. Isso não é exatamente uma novidade, e Leibniz sabia disso, mas a novidade vem da intuição de uma nova metafísica mais radical que continue a depuração iniciada desde os primeiros antigos, até as últimas consequências. Em suma, além de contribuir com pesquisas científicas e tecnológicas com a sua intuição da linguagem binária, Leibniz faz a ponte da pesquisa da relação entre o Uno e o Múltiplo de modo que essa intuição filosófica atravesse as mutações da histórias e possa alcançar o tempo moderno.
Vejamos mais um trecho:

Aqui o que importa é a expressão de Leibniz em resposta ao trabalho de John Locke: “não há nada no intelecto que não estivesse antes nos sentidos, exceto pelo próprio intelecto“. É uma correção educada da estupidez de uma filosofia materialista, assim como depois ele corrigiria Berkeley ao afirmar que o corpo pode não existir como substancial por si mesmo, mas não deixa de existir como objeto da nossa percepção, o que é suficiente para que exista de algum modo, algo óbvio. Percebe-se assim como Leibniz estava filosoficamente posicionado como um adulto no meio de crianças, tentando ensinar a ler, escrever, pensar, etc. Mas talvez o seu primeiro aluno realmente capaz viria só com Kant.
Vejamos mais um trecho:

Aqui o que interessa é a sua idéia de “propagação da fé através da ciência”, um eco moderno da idéia medieval da philosophia ancilla theologiae. Nesse contexto, traduzindo o trecho final, para este plano “o diádico em particular oferece seu simbolismo da criação ex nihilo e sua poderosa conexão com a metafísica das mônadas ou ‘unidades reais‘”. Estou convencidíssimo disso, especialmente do potencial que a hipótese monádica oferece para destruir racionalmente todo tipo de idolatria. Nesse sentido, essa metafísica da Mônada é como a tradução filosófica do conteúdo espiritual do Primeiro Mandamento.
E vejam que todo o desenvolvimento desse potencial da linguagem binária se dava no contexto de uma abrangente reflexão matemática diante da qual a chamada “guerra do cálculo” com Newton não era mais do que uma nota de rodapé irritante.
Para além do que pude observar num livro anterior sobre o tema da disputa sobre a invenção do Cálculo, parece que a polêmica foi mais alimentada pela ação dos do lado de Dover do que do lado de Calais. Leibniz simplesmente tinha mais o que fazer. Esta pode ser a diferença decisiva: Newton parece se ocupar trabalhando para a glória de Newton, enquanto Leibniz parece se ocupar no trabalho para a glória de Deus. É verdade que o alemão já repousava na fama de ter inventado o Cálculo, mas ele aceitava a autoria paralela de Newton. Este último é que não podia aceitar não ter a precedência. Se há vaidades dos dois lados, convém compreender quem foi vaidoso primeiro. E, se da parte de Newton seria tão importante a prioridade temporal, por que raios ele não publicou seu estudo completo antes do alemão?
Vejamos, por fim, mais um trecho do livro:
Tradução livre:
“Leibniz escreveu uma longa carta para Bouvet na qual ele incluiu uma exposição detalhada da sua aritmética binária, apresentada como uma ‘admirável representação da Criação’ porque ‘seguindo este método todos os números são expressos pela mistura da unidade com o zero, mais ou menos como todas as criaturas provém apenas de Deus e do nada.’ Bouvet respondeu de Pequim em 4 de Novembro de 1701, anunciando para Leibniz a descoberta de uma fantástica analogia entre o diádico e os hexagramas do I Ching, onde o zero era representado pela linha dividida e o um pela linha contínua. Na carta Bouvet incluiu uma representação da assim chamada ordem Fuxi dos hexagramas mostrando a correspondência entre o I Ching, a notação binária de Leibniz, e a notação decimal de zero a sessenta e três.”
Essa passagem mostra o alcance da visão leibniziana que fazia uma antecipação simbólica do potencial filosófico da interpretação do I Ching, algo que significa apenas que ele estava de fato buscando a universalidade da verdade. Ele não se importava de conversar com católicos (jesuítas) para descobrir sabedorias chinesas, e nem de colaborar com eles dando testemunho de suas próprias intuições. Imagine-se o maravilhamento de Leibniz ao descobrir que na China havia um simbolismo que antecipava o seu antigo ideal filosófico-linguístico da characteristica universalis?
Seguindo para o fim, convém declarar a importância das duas Sofias na vida de Leibniz, a Sofia Princesa Eleitora de Hanôver, e a Sofia Charlote, Rainha da Prússia. É no mínimo curioso um filósofo ser tão amado por duas Sofias importantes em sua vida, mas mais do que isso, a importância delas mostra a dependência de qualquer filósofo, mesmo um Leibniz, de circunstâncias favoráveis. Isso nos mostra o valor das mulheres como realizadoras: ele inventava, elas incentivavam, apoiavam etc. É bem possível que não veríamos a obra de Leibniz ter sucesso sem a presença dessas duas mulheres, que o instigavam, que se correspondiam tanto com ele, etc.
É notável a preocupação de Leibniz, em paralelo com o projeto ecumênico de reconciliação entre as igrejas europeias, com a garantia do futuro de uma Europa protestante. Especialmente no que toca à manutenção da liberdade de pensamento. Ele viu muitos refugiados, pensadores e cientistas, escapando das católicas Espanha e França para as protestantes Inglaterra, Holanda e Alemanha, pessoas que sem essa possibilidade de asilo estariam fadadas à censura, ou a coisa ainda pior. Sua atitude conciliatória com a Igreja Católica vinha de seu temperamento apaziguador, de sua mentalidade pacifista, e de seu talento diplomático, e não de uma admiração pelo sistema de Roma. É difícil, nos nossos tempos, entender o que era o poder tirânico da opressão religiosa ainda naquela época. Já somos usufrutuários por séculos de uma liberdade que nunca foi (e continua não sendo) garantida. Sobretudo os católicos de hoje parecem ser muito ingênuos ou simplesmente ignorantes do histórico da sua mater et magistra.
Por fim, mesmo com alguma noção prática dos problemas religiosos, Leibniz ainda falhou na sua ingenuidade de não reconhecer a realidade da religião como pura fonte de poder: não há interesse de conciliação entre os que ambicionam não a paz e a verdade, mas o domínio dos seres humanos. Se uma religião pode ser tão boa quanto a outra, os seguidores podem mudar de religião, e isso é um enorme risco econômico e político para aqueles que lucram com o status quo. À uma fragilidade humana que é a decadência moral natural e a carência por um poder estruturante corresponde esse sistema religioso que lucra com a maldade.
Leibniz não foi um servidor voluntário, mas foi um servidor ingênuo do Sistema da Besta, o que torna sua parte aproveitável muito benéfica para o propósito da glorificação de Deus e benefício da condição humana, que foi o objetivo declarado de seu trabalho. Neste sentido, foi mais bem-sucedido do que talvez imaginasse, e de modos misteriosos, o que nos faz agradecer a Deus por sua vida.
Nota espiritual: 5,0 (Calaquendi)
| Humildade/Presunção | 5 |
| Presença/Idolatria | 5 |
| Louvor/Sedução-Pacto com a Morte | 5 |
| Paixão/Terror-Pacto com o Inferno | 5 |
| Soberania/Gnosticismo | 5 |
| Vigilância/Ingenuidade | 5 |
| Discernimento/Psiquismo | 5 |
| Nota Final | 5,0 |

