Laranja mecânica, filme por Stanley KUBRICK

§ 1. Este filme, o nosso sexto de Kubrick, é o primeiro onde o diretor fez notar o evento do suposto pouso do homem na Lua em 1969. Eu pensava que a primeira referência estava em O Iluminado (numa camiseta usada por Danny), mas aqui já temos essa nota, quando logo na primeira cena do filme um coitado de um mendigo é atacado pelo grupo dos bagunceiros e diz: “Que mundo é esse? Homens na Lua, e homens na Terra girando como mosquitos ao redor da lâmpada, e não há mais nenhuma atenção dada à Lei e a Ordem terrestres.” Isso pode parecer não ter nenhum valor, mas a quem não sabe talvez interesse ficar sabendo que existe uma teoria conspiratória que afirma que Kubrick produziu o falso filme que foi apresentado ao público como feito na Lua pelos astronautas. Tal filme teria sido feito por uma de duas razões: 1) o homem não foi à Lua, mas era preciso “vencer” a corrida espacial contra a URSS no contexto da Guerra Fria, e os russos e toda a humanidade foram então enganados pela arte de Kubrick; 2) o homem foi à Lua, porém lá ele encontrou algo de que a humanidade não poderia tomar conhecimento, e o filme foi encomendado à Kubrick para ser apresentado no lugar as filmagens verdadeiras. À favor desta segunda tese pesa o próprio roteiro de 2001: uma odisséia no espaço, que conta justamente a história do homem descobrindo algo na Lua e tendo que esconder isso da humanidade à todo custo. De qualquer modo Kubrick teria feito referências veladas e simbólicas à farsa do pouso do homem na Lua durante toda a sua carreira filmográfica.

§ 2. Voltando ao nosso filme em pauta, a estória fala do jovem Alex, um garoto perturbado que causa muitas desgraças com seu bando criminoso pelas ruas. Mente, rouba, estupra e mata. Nada parece causar-lhe o menor sentimento de culpa, nem de perto. Eventualmente ele é preso e na sua reclusão aprende a fingir bom-mocismo e até uma conversão religiosa para ter vantagens. Não entendam mal: Alex é inteligente e até capaz de refinamento. Sua música favorita? A Nona Sinfonia de Beethoven. Mas é um psicopata completo, realmente doentio. Depois de dois anos de cumprimento de sua pena, ele é convidado a participar de um programa experimental de “cura” que supostamente poderia levá-lo à liberdade em apenas duas semanas (ele ainda teria uns doze anos de pena à cumprir).

§ 3. O capelão com quem Alex trabalhava na prisão o alertou contra o Método Ludovico. “A bondade é algo a ser escolhido. Quando um homem não consegue escolher, ele deixa de ser homem.” Mas Alex decide ir, ele não tem nenhuma preocupação com a escolha consciente de nada, só quer a sua liberdade. De fato, o tal método nada menos que uma lavagem cerebral que faz a vítima ter a reação inversa quando tiver a vontade de agir violentamente. Um teste é feito depois que Alex conclui o seu tratamento, e confirma-se a sua eficácia. Ele não consegue reagir a um agressor, e ao contrário, quando este lhe ordena, Alex literalmente lambe a sola de seu sapato. Na parte final do teste, uma mulher nua e muito sedutora aparece, mas Alex não consegue avançar sobre ela. Todos comemoram o resultado, exceto o capelão. Ele diz a verdade: “O menino não tem escolha de verdade, tem? O interesse próprio, o medo da dor física, o levaram àquele ato grotesco de autodepreciação. A falta de sinceridade era evidente. Ele deixa de ser um malfeitor. Deixa também de ser uma criatura capaz de escolha moral.” Ninguém o apóia. Estão todos entusiasmados com a solução política para o problema da criminalidade.

§ 4. Alex é solto, mas logo se depara com dificuldades naturais da vida, com a família que não o acolhe, e mesmo nas ruas onde antes dominava, mas agora ele só consegue ser uma vítima. O filme mostra como de certo modo, ainda que de maneira completamente desproporcional e criminosa, Alex era uma criatura do mundo que reagia ao mundo tal como ele era. O que lhe resta é tentar encontrar alguma compaixão, mas acaba no lar de uma de suas antigas vítimas, um sujeito com a dupla motivação de se vingar de Alex e de fazer uso político do caso conforme a agenda sua e de seus aliados (são contra o governo que instituiu o Método Ludovico). A tortura à que Alex é submetido é a mais inusitada que se poderia imaginar: ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven, a música de que mais gostava antes, mas que agora lhe gera pura agonia. Acontece que na sua terapia de “cura”, numa determinada sessão essa música foi tocada, e Alex a associou daí em diante com a violência que era mostrada, e agora a mesma reação física de repulsa que lhe acomete quando pensa em praticar qualquer ato violento é gerada quando ouve a música. Ele acaba se atirando de uma janela, mas não morre.

§ 5. Internado, ele é recuperado com uma terapia de reversão dos efeitos do Método Ludovico. Recebe a visita do líder político que tinha instituído o tratamento como política de Governo, que tem o interesse de mostrar um bom relacionamento com Alex, visando a próxima eleição. Lhe oferecem um cargo bom, um salário, etc., como compensação pelo seu sofrimento. O resultado de tudo isso? O psicopata vai voltar à ativa, e com o bônus de um suporte governamental. Isso é muito simbólico, porque a política, especialmente nas funções de alta liderança, é uma atividade humana muito cobiçada e ocupada por psicopatas. Pense: o que faz um ser humano se achar bom o suficiente para governar a sociedade? Não pode ser nada de bom. Alex está bem encaminhado para se tornar uma grande coisa no mundo, e entre políticos estará certamente entre os seus.

§ 6. Temos testemunhos valiosos à favor da Humildade (indiretamente, com a denúncia dos poderosos), e também da Soberania (através da oposição do capelão ao Método Ludovico). Mas mais ainda, este filme tem uma nota espetacular, e totalmente inesperada, à favor do dom de Vigilância: exatamente no final do filme Alex tem a certeza de que voltou ao seu normal, isto é, à sua psicopatia de sempre, porque consegue imaginar sem nenhuma repulsa o ato sexual com uma mulher, mas não em qualquer circunstância, mas no que parece ser uma cerimônia de casamento. Que achado! Dirão que estou forçando a barra, mas para mim a cena é clara: duas colunas de convidados, celebrantes, bem vestidos, assistem enquanto batem palmas para o ato sexual de Alex com uma parceira muito voluntária. Ela não é uma vítima de estupro. Está mais para uma parceira na consumação das núpcias com Alex. E ele afirma, desde seu transe que é quase uma possessão demoníaca na imaginação daquela cena em sua cabeça: “Ah sim, eu estava curado.”

§ 7. Isso pode ter repercussões espirituais significativas. Não apenas o estupro de forma geral, mas o ato sexual voluntário parece ser uma forma de violência igualmente, talvez por razões que estariam subconscientemente contidas no filme, mas que podemos ilustrar com facilidade à luz do Pecado Original. Só não posso dar uma nota máxima porque esse sentido particular não é inequivocamente estabelecido, nem que sutilmente. Claro que temos indicadores favoráveis nessa direção, mas nada conclusivo. A situação de Alex vitimado e sem poder reagir às várias violências que encontra no mundo o mostram como necessitado dessa capacidade de irar-se para a vida, como já vimos. Ora, de onde saiu este realidade? Não foi do Pecado Original, exatamente o ato que é consumado nas núpcias? Não se pode dizer que psicopatas como Alex saem do nada, de um buraco no chão. A criação ex nihilo de seres humanos terminou com Adão, aquele grande traidor. Deste ponto em diante somos todos filhos do traidor, filhos da Traição, gerados voluntariamente num estado decaído e amaldiçoado. Incluindo Alex, esse garoto perturbado e psicótico. Eis aí a origem do mal. Kubrick nos deu uma pérola discreta, mas com enorme potencial no sentido da Vigilância.

§ 8. O tema inaudito do filme é a sophrosyne, que é a virtude do autocontrole, ou moderação. Melhor: o tema do filme é a falta dessa virtude. Mas de onde ela sai? De um desejo de nobreza? De um medo de penas infernais depois da morte? Nada disso. A pureza dessa virtude sai do verdadeiro amor ao próximo como o amor de um eu para outro eu que é ontologicamente exatamente idêntico, pelo Princípio de Identidade dos Indiscerníveis. Isto é, a moderação e autocontrole saem do amor que uma mônada tem pela outra enquanto tal, ou seja, pela experiência do Segundo Mandamento, ou o que chamo de Monadofilia Menor. Alex pode estar muito distante de entender isso, mas com sua inteligência eu aposto que se quisesse, conseguiria. Mas quem lhe dará o testemunho do Amor? Até o capelão da prisão, que é o personagem mais lúcido de todo o filme, prefere pregar o medo do Inferno do que a promessa do Paraíso…

Nota espiritual: 6,0 (Calaquendi)

Humildade/Presunção6
Presença/Idolatria5
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo7
Vigilância/Ingenuidade9
Discernimento/Psiquismo5
Nota final6,0

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