Barry Lyndon, filme por Stanley KUBRICK

§ 1. Este nosso sétimo filme de Kubrick conta a estória de Redmond Barry, um jovem irlandês que é iniciado nas maldades do mundo e não tem exatamente muitas reservas à esse respeito. Vive numa época onde a humanidade, ou pelo menos a européia, queria se considerar decente e respeitável com costumes como os duelos em nome da honra. O pai de Barry morre num duelo por qualquer disputa estúpida. A vida moral do próprio Barry começa para nós com a sua paixão pela prima Nora, contra a qual não quer fazer questão de resistir, e que lhe leva então a uma frustração quando ela decide se casar com um inglês maduro e rico. Ele deseja vingança e a consome num duelo. Levado a se exilar do país para não ser preso por ter supostamente matado seu adversário, só depois descobre que o mesmo não morreu, que passa bem e inclusive casou com sua prima, como a família já tinha planejado fazia tempo.

§ 2. Mentiras e trapaças levam Barry a aprender sobre o mundo e a decidir tomar parte no esquema das coisas. O jovenzinho idealista logo desfaz suas ilusões. Já na estrada do seu exílio é roubado. Tiram-lhe o dinheiro e o cavalo. Ele decide se alistar no exército inglês, que estava em guerra contra a França, para escapar da Justiça e ao mesmo tempo ganhar a vida. Ele sempre tem habilidade e bravura suficientes para se destacar e vencer na vida, mas quer fazer seu próprio destino. Deserta do exército inglês e começa a viver sua primeira grande farsa como um Oficial em missão no interior da Prússia. Vive assim até certo ponto, mas termina descoberto e tendo que servir forçadamente, para não ser executado, ao exército prussiano, muito mais rigoroso e inclemente do que o inglês do qual quis fugir.

§ 3. Como não é totalmente incapaz de agir com alguma bondade, ele acaba se redimindo perante os alemães depois de salvar seu Capitão numa determinada batalha. Acabada a guerra, é contratado para ser um espião à serviço da polícia. Seus patrões reconhecem sua qualidade de farsante e decidem empregá-la. O que não contavam é que ere se tornaria agente duplo, terminando por servir aquele contra o qual foi enviado para espiar. Seu novo amo e Barry escapam da Prússia e vagueiam pela Europa ganhando dinheiro com truques e trapaças através da organização de jogos de cartas. Ganham a vida, e vivem razoavelmente bem, mas Barry não tem ainda a solidez de uma vida bem estabelecida, esse sonho de todos os desgraçados da Terra que querem encontrar seu Paraíso neste vale de lágrimas.

§ 4. Eventualmente Barry encontra a solução na pessoa da Condessa de Lyndon. Casada com o velho e doente Charles Lyndon, a mulher não tem nenhum pudor de aceitar Barry como seu amante e futuro candidato a marido. E tão logo morre o Conde, dito e feito, Barry consuma sua última grande farsa e se torna Barry Lyndon. Acredita que esta será a mentira final de sua vida, sobre a qual pode repousar como parte da nobreza inglesa. Seu caráter, porém, foi corrompido depois de tantos anos de iniciação na malícia do mundo. Continua sendo um jogador libertino, trai a esposa, castiga o enteado Bullingdon e vive esbanjando. Mas consegue amarrar a esposa fazendo um filho com ela, Bryan. E um filho é como um feitiço para uma mãe, fazendo-a suportar qualquer situação.

§ 5. Barry concentra-se em mimar seu filho e em ambicionar a parte final de seu plano de sucesso na vida: tornar-se um nobre ele próprio. Acontece que todas a propriedades são da Condessa, e mesmo que casado, por não ter origem nobre Barry não pode herdar bens que por direito caberiam a Lorde Bullington, filho do falecido Charles Lyndon. Então aquela velha cobra jararaca, a serpente ancestral e peçonhenta que trouxe Barry a este mundo de desgraças e infortuníos, sua mãezinha, o convence de que tem que ganhar um título de nobreza a qualquer custo, para garantir seu futuro em qualquer caso. Não duvido que a desgraçada imaginasse a morte da nora para que ela se tornasse uma espécie de superfarsante, a nova Condessa de Lyndon ela própria. Dá seu testemunho mais espirituoso ao filho: use o dinheiro da própria família Lyndon para comprar a nobreza.

§ 6. Esse plano levará a família a assumir dívidas enormes. Para piorar a situação, a predileção de Barry por Bryan faz Bullington sofrer nas mãos do padrasto. Não aguentando mais ver a ruína da família nas mãos de um oportunista que ainda ousa lhe castigar como se fosse seu próprio filho, Bullington decide partir, mas não sem antes jogar na cara da Barry e da própria mãe a verdade de tudo o que fizeram e andam fazendo para desgraçar a memória de seu falecido pai. Num ataque de fúria por ter sido tão desmascarado em seus esquemas, Barry parte para a agressão contra Bullington, bem na frente de toda a nobreza que ele queria convencer a aceitá-lo como um dos seus. É o começo do fim.

§ 7. Endividado e sem mais chances de subir à nobreza, Barry se concentra na alegria que lhe sobrou, que é seu filho Bryan. Resolve comprar um cavalo de presente para o garoto, depois da insistência deste. E o garoto, ansioso para aproveitar o seu presente, tenta montar sozinho sem a ajuda do pai, sofre uma queda e morre dois dias depois. A Barry, que nunca teve Deus, só resta agora o consolo da bebida. Vive constantemente embriagado. A Condessa resolve partir para a uma falsa religiosidade, meio que tarde demais, cá entre nós. Quando lhe cabia ser fiel ao falecido marido ela não estava muito interessada em virtude. Eis que a virtude mais barata é a que cobra caro no começo e paga dividendos gordos mais tarde. A virtude tardia é a mais cara, a mais amarga, a mais dura de todas. Ela não escapa do sofrimento. Ninguém escapa.

§ 8. Aquela adorável velhinha, a bruxa conhecida como mãe de Barry, decide tomar conta dos negócios da família, já que a Condessa está desolada e incapaz, e o próprio Barry não faz mais do que beber. Talvez pudesse colocar todas as coisas em ordem, com o tempo. Mas os servidores da família se voltam contra ela, ao perceber que eles serão as vítimas (injustiçadas, cá entre nós) da necessidade de equilíbrio financeiro dos Lyndon. Buscam o autoexilado Bullington que finalmente resolve, apesar de seus medos e fraquezas, enfrentar Barry num duelo pela sua honra. Curiosamente, ele deveria perder o duelo, e Barry, num de seus casuais atos de pequena bondade, resolve não atirar contra o enteado. Mas Bullington insiste no acerto de contas e consegue atirar na perna esquerda de Barry, que terá que ser amputada.

§ 9. Isso dá tempo para que Bullington reoganize as questões da família, volte para viver com a mãe e faça uma proposta para que Redmond Barry (ele sempre fez questão de chamá-lo assim) saia do país e receba uma renda anual para se manter longe dos Lyndon. Acompanhado daquela feiticeira, sua adorável mãe, Barry se retira para uma vida que terminará, de acordo com a narrativa, em solidão e pobreza. Tem a quem agradecer por tudo isso: a si mesmo e à sua última companhia em vida, a própria progenitora.

§ 10. O filme é um retrato minucioso da vida na Mistura e da decadência humana decorrida da participação no Pecado Original. O demônio certamente é representado pela mãe de Barry, embora isso só pareça claro mais para o fim do filme. O próprio Barry não passa de ser um personagem moralmente fraco que infelizmente descobriu seu grande talento para a mentira. Vive de mentiras e farsas porque não quer carregar a Cruz. Mas a Cruz é sagrada e inviolável. Ele não consegue escapar dela. A única coisa que consegue fazer é tornar provavelmente ainda mais miserável a vida das pessoas ao seu redor. Neste sentido, é um retrato muito fiel da realidade da condição humana, mas não se engane quem pensa que isto é uma tragédia. Tivesse já aceitado que sua prima Nora se casasse com outro, tudo poderia ter sido melhor. Certamente Barry não quis contar com nenhuma Providência. Simboliza o homem que quer conquistar o seu Destino e que foge da Cruz como o próprio Diabo. Ganha a vida, mas perde a alma. E não escapa da Cruz. Qual foi a vantagem?

Nota espiritual: 5,0 (Calaquendi)

Humildade/Presunção6
Presença/Idolatria4
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo5
Vigilância/Ingenuidade6
Discernimento/Psiquismo4
Nota final5,0

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