Nascido para matar, filme por Stanley KUBRICK

§ 1. Este filme –o nosso nono de Kubrick– conta a estória de um grupo de fuzileiros navais americanos desde o seu treinamento de seis semanas na Carolina do Sul até a sua entrada em ação no teatro de guerra do Vietnã. Testemunhamos o problema do treinamento de um exército profissional moderno: por não existir o apelo imediato da defesa da terra e da família que movia as mobilizações militares desde o tribalismo até o fim da Idade Média, é preciso fazer um extenso doutrinamento ideológico para transformar homens comuns em assassinos aptos a matarem desconhecidos do outro lado do mundo. Nosso grupo de soldados sofre nas mãos do rigoroso Sargento Hartman, interpretado pelo excelente Lee Ermey. Especialmente o soldado Leonard Lawrence (o “Gomer Pyle”) é vitimado pela rotina e pelo ambiente do treinamento. O protagonista, que é o soldado Davis (“Joker”), percebe a dificuldade de Lawrence, mas não consegue fazer nada para evitar a situação. Não quer se destacar do grupo em defesa de um. A psicologia da manada tem efeito até sobre sua personalidade supostamente mais diferenciada e esclarecida. Kubrick parece gostar de mostrar a corrupção dos melhores, dos que seriam mais confiáveis.

§ 2. Lawrence à certa altura começará a enlouquecer com a lavagem cerebral do treinamento, e no último dia dos soldados antes de seu envio para a guerra ele tem um surto no qual perde o controle. Davis diz que ele deve se recompor, ou eles estarão “num mundo de merda”. Lawrence, já praticamente possuído por um ódio homicida, responde: “ah, mas eu já estou num mundo de merda.” O Sargento Hartman aparece, Lawrence o mata e se suicida em seguida. É a colheita do incentivo ao tal “espírito assassino” que foi uma doutrina do treinamento. O objetivo do treinamento foi atingido parcialmente. Só falhou o direcionamento do ódio do instinto assassino de Lawrence. Hartman pagou por sua incompetência?

§ 3. Na guerra o soldado Davis vai trabalhar na sessão de jornalismo do USMC, ou seja, com a missão de fabricação de mentiras sobre a guerra. Ele acaba testemunhando a Ofensiva do Tet, quando os vietcongues surpreenderam os americanos no meio do cessar-fogo do feriado do Ano Novo lunar. Do ponto de vista militar podemos dizer que a estratégia global vietcongue foi vencedora porque eles foram mais fiéis à arte da guerra, que é a mentira e a manipulação. Guerra é política, já tinha ensinado não só Sun Tzu, mas também Clausewitz.

§ 4. Davis vai para a frente de batalha em Hué. Testemunha muitas atrocidades, dos dois lados da guerra. Um Coronel questiona Davis, que usa o broche da paz no peito enquanto em seu capacete está escrito “nascido para matar”. Não tem coerência alguma. Davis diz que isso vem da dualidade humana, algo junguiano, mas não se aprofunda. Ele percebe a Mistura, mas não sabe, ou não quer, discernir para além disso. Seu papel é de se aprofundar na aceitação desse status quo como uma realidade inescapável. O filme de Kubrick parece se encaminhar para um quadro fatalista.

§ 5. Ao fim do filme, depois de uma salada emocional com triunfos e frustrações no meio da guerra, Davis parte do Vietnã com sonhos eróticos em mente, imaginando o reencontro com sua namorada. Diz-nos, como narrador do filme: “sim, estou num mundo de merda, mas estou vivo e não tenho medo.” Davis viu as vísceras da condição humana na guerra, mas não entendeu nada. Sua atitude de querer voltar para sua pátria para viver sua história com a namorada, possível futura esposa e mãe de seus filhos, como manda o costume, mostra que ele dá o assentimento para esse estado de coisas. É uma visão trágica e fatalista do mundo. Quando Lawrence tinha lhe dito que “já estava num mundo de merda”, não ocorreu a Davis investigar as razões para que isso fosse assim, bem como de toda a desgraça que ele vai presenciar no Vietnã. Ao fim ele reafirma, sim, estou num mundo de merda de fato, mas vamos em frente…

§ 6. Isso porque não existe transcendência neste filme. Jesus é um personagem religioso usado apenas para o doutrinamento militar dos fuzileiros contra os “pagãos comunistas”. Os símbolos religiosos e espirituais são apenas instrumentos de propaganda. Kubrick nos mostra um mundo brutal de onde não há escapatória, nem redenção, e nem esperança alguma senão a de tentar lucrar algo com a participação na Mistura. Que Hartman, ou qualquer outro soldado pensasse assim, seria esperado e muito verossímil. Mas porque Davis não pode cogitar uma alternativa? Porque ele não quer. Davis não é mais um nascido para matar pelo desígnio de uma vontade exterior, mas pela sua própria vontade, pelo seu próprio assentimento. Sendo inteligente e sensível, Davis é o ponto de identificação de um público inteligente e sensível. E Kubrick está usando Davis para dizer a esse público esclarecido: não há saída, é isso mesmo, vocês estão num mundo de merda e a única coisa que podem fazer é ir em frente e viver como seres nascidos para matar.

Nota espiritual: 3,9 (Moriquendi)

Humildade/Presunção5
Presença/Idolatria3
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte4
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno4
Soberania/Gnosticismo4
Vigilância/Ingenuidade4
Discernimento/Psiquismo3
Nota final3,9

Deixe um comentário