§ 1. O padre jesuíta Copleston inicia sua obra com um prefácio no qual não quer admitir que a dificuldade inerente ao destaque dos méritos da filosofia medieval vem do problema da sua inegável mistura com a religião cristã. A filosofia medieval em geral é excelente. Mas sua mistura com essa porcaria chamada Religião sujou a sua reputação. Copleston não pode nos dizer isso, é claro. Ele diz que os estudiosos que “não acreditam no cristianismo” terão dificuldades em entender o período. Essa é uma expressão curiosa. Já nos mostra um problema: que diabos significa não acreditar no cristianismo? O que é o cristianismo? Não crer nessa coisa, que é uma religião, é o mesmo que não crer no Evangelho, ou o mesmo que não crer em Jesus Cristo? Um religioso pensa exatamente assim. Lhe convém deixar tudo isso misturado, de modo que quem quiser se considerar cristão, isso significando apenas ser um seguidor de Cristo, é melhor que se considere também um crente no tal do Cristianismo, ou seja, como participante num grupo criado e governado por seres humanos, legitimando com seu assentimento essa autoridade temporal sobre os homens, etc. É desse modo que os cristãos aprenderam a imitar os judeus. Quem quiser crer no Deus revelado por Moisés na Torá deverá crer nos seus legítimos intérpretes, os rabinos, como se esses tivessem o poder de sequestrar o testemunho e pegar emprestado para si o prestígio da autoridade divina. Já falei dessa perversidade que foi iniciada com o próprio Lúcifer, que quis ser o “revelador” ao homem, como um Prometeu, de uma Glória que nunca foi sua. Cristianismo, afinal, é um termo que designa uma criação cultural humana. Digamos que seja o conjunto das religiões que pretendem ser as legítimas anunciadoras da Revelação do Evangelho. Mas eu não posso crer em Jesus e no Evangelho sem crer nessa criação humana particular? É claro que posso. E se eu não pudesse, essas diferentes religiões cristãs também não poderiam diferenciar-se entre si. Talvez Copleston não possa jamais reconhecer isso, mas isso já é problema dele. Para a mentalidade de um católico, por exemplo, não possuir a garantia da veracidade de uma determinada interpretação da Revelação por uma Religião verdadeira é o fim do mundo, o caos na Terra, etc. Para mim a dúvida sobre a posse da verdade é apenas um reflexo da realidade da ignorância humana, da dependência da Graça, e do dom de Humildade (o verdadeiro sacrifício de comunhão que Deus nos pede).
§ 2. Na explicação da evolução da filosofia na época, ele nos mostra bem o drama da passagem do Império Romano para o período medieval. O conhecimento filosófico é preservado principalmente nos mosteiros, que têm essa função de cofres culturais, quase cápsulas do tempo. Quando a Europa já estiver um pouco mais reorganizada politicamente e vier um novo Império com Carlos Magno, aos poucos a cultura guardada pelos monges pode reaparecer no ensino por todo o território. Essa realidade nos mostra como a alta cultura depende de paz e estabilidade social para florescer. A barbárie só mantém a ignorância e a escravidão do homem à Maldição e ao Poder. O que não significa que a Civilização não produza suas tentações particulares, entenda-se bem.
§ 3. Copleston nos apresenta Agostinho e Boécio como figuras de transição entre o período da filosofia antiga e o da filosofia medieval. Identifica Anselmo da Cantuária como uma primeira figura medieval de destaque. O argumento ontológico de Anselmo no Proslogion é até hoje mencionado, mas de forma errada. Não existe o convencimento racional sobre a suposta “existência” de Deus. Para começar, cá entre nós, como já expliquei, Deus não existe, Ele É. Em segundo lugar, a vida na Presença de Deus, ou seja, a vida da Fé, é uma realidade gerada pela Graça divina, e não pela razão natural. É o Espírito Santo quem dá o testemunho do Ser divino. Anselmo, portanto, não pregava para descrentes. Ele filosofava para cristãos que já tinham a Fé. Daí afirma-se a máxima tão importante para a Filosofia Cristã, do crede ut intelligas, intellige ut credas. O maior vem antes do menor, isto é, a Fé como dom sobrenatural vem antes da razão natural. É para estes cristãos que já possuem a Fé que até hoje é poderosa a verificação de que o conceito de um ente perfeito requer a existência do mesmo, que é a essência do argumento ontológico.
§ 4. O famoso problema dos universais ganha relevância com a filosofia de Pedro Abelardo, e a partir dessa discussão conhecemos as possibilidades de respostas desde o ultra-realismo, o realismo moderado, e o nominalismo. Junto com a filosofia de Abelardo existe toda uma preparação para o rigor lógico que servirá de base para as construções das grandes sínteses no Século XIII e além. Seu famoso livro de Sentenças se torna uma literatura obrigatória para toda a filosofia futura. Todo mundo usa essa base para fazer comentários e criar algo em cima. Antecipando muitas discussões, o nominalismo vence. Se Deus salva a alma já havia a previsão de uma Criação de individualidades e para indivíduos e não de universalidades para uma coletividade, o que é monadologicamente adequado. Possivelmente a Igreja lutava teologicamente dentro de si contra a posição coletivista herdada do Israel bíblico, um vício que precisou ser depurado e finalmente extirpado com uma filosofia adequada á Revelação final, isto é, do Evangelho. O que não impediu algumas figuras poderosas de rejeitarem a Filosofia como um todo, inclusive já na época de Abelardo, como foi o caso de Bernardo de Claraval.
§ 5. Em seguida a grande luta da filosofia medieval ocorreu pela missão autoimposta por grandes intelectuais de absorver a filosofia aristotélica e fazê-la estar de acordo com a teologia. Aristóteles foi muito confiado como autoridade, frequentemente sendo chamado de “O Filósofo”, inclusive por Tomás de Aquino. No lado islâmico, Avicena tem mais facilidade em recusar teses do estagirita. Já Averróis sucumbe ao naturalismo aristotélico e empesteia a Europa com suas idéias. Do lado cristão, Aristóteles é inicialmente proibido em Paris etc., e depois é saudavelmente glosado pelos franciscanos que tinham um platonismo e neoplatonismo robustos, aprendidos com Agostinho, para bloquear os excessos naturalistas; porém, o aristotelismo termina perigosamente influente dentro da filosofia tomista, um projeto iniciado por Alberto Magno, mestre do aquinate.
§ 6. Com Boaventura, o Doutor Seráfico, Cristo mantém sua excelência filosoficamente intraduzível. Já com Alberto Magno e Tomás de Aquino, Aristóteles se torna quase que um profeta. A gratuidade de Deus depende da liberdade contra o naturalismo aristotélico. Os franciscanos são superiores do lado teleológico. Com Boaventura temos uma antecipação da TMSB, porque ele era intelectualmente agostiniano, portanto um tipo de agatista. Também são superiores os franciscanos medievais, epistemologicamente, com a iluminação divina que põe o intelecto humano no seu devido lugar, dependente da Graça até para suas operações mais elementares. Isso não muda o mérito do abstracionismo como descrição científica do processo cognitivo. Uma coisa é a causalidade intermediária e eficiente, outra é a causalidade primeira e finalística.
§ 7. Os germes das futuras ciências seculares foram desenvolvidos por alguns experimentalistas e especuladores medievais, como Grosseteste e Roger Bacon. A idéia da ciência iluminista, ou mesmo da filosofia moderna, em atitude de rompimento com o pensamento medieval é uma idéia caricatural que infelizmente impregnou a divulgação enciclopédica sobre o período, um vício derivado da propaganda gerada pela ideologia iluminista. Qualquer estudioso sério do período percebe muito rapidamente o quanto isso é falso.
§ 8. Das glórias de Tomás de Aquino, o Doutor Angélico, podemos citar facilmente a criação por analogia, e o conhecimento de Deus também por analogia (uma certa agnosia), de modo que conhecer a Deus é ver o infinito no finito, ou o Uno no Múltiplo. Somente Deus é o Ato Puro. Tomás distingue o esse simpliciter do esse secundum quid, e abre a possibilidade das futuras ontologia e epistemologia monádicas (mas não sem intervenções importantes de personagens como Duns Scot ou Ockham). Por outro lado ele não teme rejeitar Aristóteles ou Averróis para defender a continuidade da alma depois da morte do corpo, o que também é meritório e esperado de um filósofo cristão. A fraqueza de Tomás é a epistemologia da abstração e a derivação hierárquica da lei divina pela lei natural desconsiderando a Queda, algo pelo que não se pode culpar Aristóteles que não recebeu a Revelação de Gen 3, mas pelo que se pode culpar um teólogo cristão, ou mesmo um filósofo cristão. É importante lembrar que o Doutor Angélico só se tornou o filósofo católico por excelência pela decisão papal de 1879 na Aeterni Patris de Leão XIII, ou seja, muitos séculos depois do contexto da obra tomista. Em sua própria época, Tomás de Aquino foi largamente contestado ou mesmo rejeitado.
§ 9. Há como reintegrar as teses mais incompatíveis do Filósofo e do seu Comentador, isto é, de Aristóteles e de Averróis, à visão cristã? Ora, a eternidade do mundo pode se referir à indeterminação da quantidade da Criação, algo alheio à Física aristotélica, mas viável de algum modo no contexto da visão daquilo que realmente é Eterno. Considerando-se o Logos como o Eterno, criador de mundos, não teríamos problema nenhum. Por outro lado, o monopsiquismo do intelecto agente pode refletir a mutualidade da representação dos intelectos passivos, isto é, das mônadas criadas, algo que é produzido pela Providência divina (a Harmonia Pré-estabelecida em Leibniz). Da mortalidade da alma se pode dizer que esta se refere ao estado imanente da mesma, a situção da mônada criada por si, desconsiderado o efeito da Graça. Já da eudaimonia nesta vida contra a bem-aventurança eterna se pode falar da ética ideal no caminho em direção à consumação da causa final, a boa corrida, o bom combate, etc. E finalmente, do princípio material de individuação, essa distinção não se torna irrelevante, antes que impropria, com a reflexividade holográfica? O que quero dizer com essas especulações é que para alguém bem intencionado tudo pode ter solução, em tese.
§ 10. Com Duns Scot, o Doutor Sutil, temos as minúcias medievais que mais tarde irritariam e sobrecarregariam os modernos. Com a Haecceitas temos o Principium Individuationis formal, uma “distinção formal objetiva” entre as individualidades. Copleston sofre para nos explicar a ideia, e isso no Século XX! Imaginem como sofreram os estudantes do Século XVI. Para mim a contribuição scotiana é fundamental: se toda manifestação material é o reflexo de uma objetividade formal, o único modo de manter a analogia sem cair num monismo panteísta é a Haecceitas. As almas humanas são mônadas criadas, singularidades, Unidades geradas por analogia com o Uno divino. É uma antecipação da metafísica monadológica. O gênio de Scot não para por aí. Ele sabe que a univocidade conceitual da analogia requer que algo do Ser divino seja compreensível a partir da característica do ser criado e vice-versa. Essa ponte é necessária para não se cair num agnosticismo, como o tomismo arriscava com uma analogia total que lembrava o tom islâmico do averroísmo. Imagem e semelhança, enfim, designam carácteres objetivos sobre o Ser divino em analogia com o humano. E de outro modo não se poderia, aliás, compreender a possibilidade da Encarnação de Cristo. Copleston acerta na defesa da reputação de Duns Scot, especialmente na importância da Soberania da Vontade contra o Gnosticismo das visões intelectualistas. E para sermos justos, este filósofo em particular nada inventou neste sentido, porque esse já era o entendimento de agostinianos e franciscanos na valorização do Amor sobre a Gnose. De todos os cavalos de batalha da filosofia medieval, este talvez fosse o mais importante, e Duns Scot estava do lado certo da história.
§ 11. Com Guilherme de Ockham, o Doutor Invencível, temos a valorização do conhecimento por intuição acima da abstração, o princípio da economia (a famosa “Navalha de Ockham”), e a simplificação do problema dos universais no que Copleston chama de “conceptualismo”, mais do que nominalismo. A questão, porém, já era antiga. Já Aristóteles se preocupava com a multiplicação dos seres no sistema platônico. Ockham identifica a universalidade com uma necessidade mais lógica, a partir do modus raciocinandi, do que ontológica, como distinção de realidades fora da mente. Em defesa do filósofo, Copleston explica que Ockham “tinha uma ideia rigorosa do que era uma demonstração”. O rigor lógico, dialético e silogístico de Ockham o obrigava a defender a pureza da teologia cristã contra as pretensões da metafísica pagã importada dos gregos. Se lembrarmos daquele princípio de que a tentação do conhecimento divino, isto é, a Gnose, foi o primeiro dos pecados (o original do original, de Lúcifer antes de Adão), podemos enxergar a superioridade dessa doutrina de Ockham como uma necessidade até para o lema da minha filosofia (Coram Uno Amor Tantum). Já na questão do voluntarismo de Ockham, de que Deus ordena o que é o bem porque quer e não porque é obrigado a isso, parece escapar a Copleston a razão desse procedimento: a abolição do paganismo na forma de uma dedução moral da Lei Natural. Especialmente se tivermos em vista a natureza decaída que já não representa a vontade originária, mas um ordenamento secundum quid, derivado do arbítrio humano especificamente desobediente, o voluntarismo de Ockham é inquestionável. Mas Copleston acerta ao valorizar a preocupação teológica do filósofo. “Nada no mundo é necessário”, como bem lembrou. Abolindo o necessitarismo causal de dentro da metafísica cristã, Ockham libertou o Evangelho do paganismo naturalista. Novamente vejo a semelhança com as premissas da minha Monadofilia, quando proponho as realidades de escassez, causalidade e irreversibilidade como contingências. Copleston na verdade não faz plena justiça à filosofia de Ockham. O filósofo testemunha diretamente que Deus pode produzir qualquer Percepção ao intelecto criado sem uso de causas intermediárias. Já é quase uma epistemologia monadológica e uma antecipação da holografia. Um tremendo testemunho da Presença e do Discernimento. Também afirma a possibilidade de um número indeterminado de universos ou realidades paralelas sustentadas pela Onipotência. Enfim, realmente Ockham libertou a Filosofia Cristã da estreiteza e pequenez da antiga filosofia pagã naturalista. Quando, por exemplo, afirma que qualquer proposição que pretenda ser verdadeira deve ser dubitabilis, “duvidável”, ele não só abre o caminho da investigação científica séria, mas também de uma Teologia séria e de uma Filosofia Cristã séria, desde que o primeiro dos predicados sobre a substância divina, aquele mais eminente de que Deus é Amor, deve ser duvidável, caso contrário não só a traição de Adão não seria possível, mas nem mesmo a de Lúcifer. As proposições se pretendem verdadeiras na sua própria dimensão, que é nominal, mas a sua realidade depende de um juízo que requer o assentimento de uma vontade livre, de modo que o que não pode ser negado também não pode ser afirmado, porque não pode sequer ser pensado. Neste sentido, Ockham também dá um testemunho formidável do dom de Soberania, alinhado com uma inclinação que já vinha tendo progressos com a filosofia dos franciscanos. Copleston não nos dá nada disso, talvez simplesmente porque isso não convém à sua Igreja? Há um medo, talvez, de que o ateísmo se torna intelectualmente viável com Ockham? Ora, quem fundou essa realidade da liberdade humana foi Deus, e se um homem não pode duvidar de Deus, igualmente outro homem não pode confiar em Deus realmente. O custo da liberdade, ou o seu risco, é alto porque a sua recompensa é igualmente valiosa, unicamente preciosa. Mas para sermos justos, esta obra não é uma análise em detalhe da obra de Ockham, e é um trabalho breve e introdutório apenas. Por fim, Copleston também não pode tomar partido no alinhamento de Ockham com Luís IV da Baviera, Imperador do Sacro Império, contra o Papa João XXII na discussão a respeito das propriedades da Igreja. Os franciscanos atacavam a concentração de riquezas pela Igreja romana, e enquanto os papistas defendiam que o uso dos bens implicavam no seu direito de propriedade, Ockham contribuiu com a distinção entre usus juris e usus fructis, etc. Excomungado e perseguido, teve que buscar refúgio no reino de Luís IV e morreu em Munique.
§ 12. O movimento ockhamista no Século XIV dá seguimento aos progressos escolásticos e antecipa as teses dos futuros modernos: nenhum juízo sintético é auto-evidente exceto a da existência do eu que pensa que nega a si mesmo (antecipando Descartes), ou então a proposição da existência de Deus não é analítica (antecipando Kant), etc. Estamos na encruzilhada do pensamento moderno, mas ainda em voz medieval.
§ 13. Nas margens do fim da Idade Média, Copleston identifica contribuições notáveis da mística de autores como Mestre Eckhart em antecipação ao idealismo alemão, e de Nicolau de Cusa como inspirador de Leibniz com sua coincidentia oppositorum, que é uma maneira de ver o desdobramento do Uno na manifestação do Múltiplo como relação, na sua linguagem, entre o Infinito e o finito.
§ 14. O autor termina fazendo uma breve referência às teorias políticas medievais, sem grandes consequências, exceto pelo seu constante ponto cego que o impede de ver a Igreja Católica como um poder humano em disputa com outros poderes seculares, o que simplificaria bastante o entendimento das disputas políticas entre Igreja e Estado. Copleston não conclui, mas podemos concluir nós mesmos, que a Filosofia Política de Tomás de Aquino pode ter sido o pivô da iniciativa papal do seu ensinamento como parte permanente do magistério da Igreja, muito mais do que outras partes da obra filosófica do aquinate.
Nota espiritual: 5,0 (Calaquendi)
| Humildade/Presunção | 6 |
| Presença/Idolatria | 5 |
| Louvor/Sedução-Pacto com a Morte | 5 |
| Paixão/Terror-Pacto com o Inferno | 5 |
| Soberania/Gnosticismo | 5 |
| Vigilância/Ingenuidade | 4 |
| Discernimento/Psiquismo | 5 |
| Nota final | 5,0 |