É conveniente esclarecer a diferença que existe entre o Gnosticismo como um conjunto histórico particular de crenças que pode (e deve) ser rejeitado, da Gnose já qualificada como uma dupla possibilidade de rejeição do Amor divino de acordo com a Monadofilia, e do Gnosticismo como o espírito contrário à liberdade da vontade (Soberania). Digo isso porque no meu trabalho às vezes esses termos não são tão claros no seu uso específico, principalmente para uma pessoa pouco estudada.
O Gnosticismo como conjunto histórico identificável de crenças costuma ser reconhecido por três princípios: 1) a idéia de um criador mau, geralmente chamado de “Demiurgo”, que prende almas ou espíritos numa dimensão inferior; 2) a idéia de que a maldade está na decadência da substância espiritual na substância material, ou corpórea; 3) a idéia de que a salvação da condição da prisão da matéria se dá pela obtenção da Gnose.
Já o Gnosticismo qualificado pelo entendimento filosófico da Monadofilia, especialmente sintetizado nos cinco conceitos sinóticos, é um sistema duplo de rejeição do Amor divino que abarca um esquema muito mais amplo de crenças. Nesta perspectiva o primeiro tipo de Gnosticismo é apenas uma das suas formulações possíveis, o caminho da Mão Esquerda, da Revolução Gnóstica, o Caminho da Caim, o Esoterismo Gnóstico. Do outro lado se posiciona o Gnosticismo da Mão Direita, da Tradição Gnóstica, o Caminho de Abel, o Exoterismo Gnóstico. No que essas duas formulações gnósticas se diferenciam, e no que elas se identificam? Elas se diferenciam porque propõe uma crença diferente diante do status quo da condição humana: por um lado, esquerdo, há a rejeição do Limite, e por outro lado, direito, há a legitimação da Mistura, em ambos os casos ocorrendo a sucumbência da Vontade diante de uma suposta Gnose revelada que obscurece o ato de assentimento a essas crenças. E se identificam porque são ambas formas de rejeição do Amor divino que só pode ser integralmente louvado pelas atitudes inversas tanto ao Esoterismo quanto ao Exoterismo gnósticos: através da aceitação do Limite e da rejeição da Mistura, atos de VONTADE LIVRE e não consequências de um conhecimento (Gnose) obtido para rejeição do Limite ou legitimação da Mistura.
Até aqui só estamos falando de crenças intelectualmente reconhecíveis nos seus componentes e no seu funcionamento lógico interno, porém não mandatórias pois não fundadas em premissas auto-evidentes e inquestionáveis. Ao contrário, essas duas crenças gnósticas, já mais qualificadas pela Monadofilia, são ambas formas de idolatria: o caso esotérico, a idolatria do Homem na forma da Presunção, como se o homem pudesse se tornar como Deus, e no caso exotérico, a idolatria da Natureza, como se a Natureza fosse divina ou pudesse conter o Ser divino de algum modo. A verdade é que o homem possui sua forma substancial definida pelo seu Limite, e que esta natureza é condicionada secundum quid por uma Mistura que é espiritualmente conveniente para a situação do ser humano presente, mas que não a determina essencialmente, pois não faz parte do Limite que constitui a sua forma substancial.
Entendemos, assim, como essas duas crenças gnósticas propõem um tipo de conhecimento, ou Gnose, que funciona como um dispositivo reativo diante da pressão da condição humana, por um lado oferecendo um grau impossível de Liberdade pela dissolução do Limite, que na verdade equivale a um desejo de morte, e por outro lado oferecendo uma aceitação abjeta e abominável da condição de Mistura de Luz e Trevas como se esta fosse necessária a qualquer ser possível. Quem não entender isso com clareza jamais entenderá o duplo golpe dialético do Gnosticismo. Existe uma condição real, inescapável, incontornável, de Mistura de Luz e Trevas. Todo ser humano sabe instintivamente desde o seu nascimento que isto não convém à sua própria Apetição. Há algo de errado com esta realidade. O que há de errado é a traição contra o Amor divino, perpetrada pelos praticantes do Pecado Original (o Pacto Ouroboros). A solução é a aceitação dos termos da vida presente como meio espiritual de assentimento livre na escolha do Amor divino, ou seja, o uso do mundo e das coisas do mundo como meio de negar o Pacto Ouroboros e confiar em Deus, aceitando o Limite como essência da nossa forma substancial e como meio da nossa realização com Deus, e rejeitando a Mistura como parte constituinte desse Limite interno à nossa forma, o que permite o aceite da Obra divina de Separação, ou Santificação, que é a única forma de solução, ou salvação, para a condição humana. Essa é a luta espiritual. O outro lado, porém, diante do mesmo quadro de experiência da Mistura, oferece uma dessas duas mentiras: ou a de que o Limite é mau, ou a de que a Mistura é boa. O ser humano que por natureza e temperamento é mais inclinado à rebeldia é levado ao esoterismo gnóstico da negação do Limite como se este fosse mau, e o ser humano mais inclinado à obediência é levado ao exoterismo da legitimação da Mistura, como se esta fosse boa. Em ambos os casos a Gnose, ou iniciação, de qualquer uma dessas mentiras leva o ser humano a rejeitar a Obra divina de Separação, ou Santificação: o esotérico não aceita Separação porque rejeita a Luz junto com as Trevas, e o exotérico não aceita a Separação porque só aceita a Luz se esta estiver eternamente misturada com as Trevas.
Existem duas Gnoses, enquanto crenças e caminhos iniciáticos, que afastam o homem de Deus: a Esotérica que nega a vida e deseja a morte porque rejeita o Limite como forma substancial de ser criatura, e a Exotérica que nega a Separação e deseja a perpetuação da Mistura da Luz com as Trevas. Contra essas duas mentiras gnósticas existe o Caminho de Jesus Cristo, o próprio Verbo de Deus Encarnado, que nos ensina a salvação como Filho de Deus: a aceitação do Limite, como um filho que aceita a sua dependência do amor paterno, e a rejeição da Mistura, aceitando a condição presente como Cruz e levando esta condição desgraçada até o seu fim, com a consumação da morte das Obras da Carne e a realização da Separação entre Luz e Trevas na forma da Ressurreição, na posse do Corpo de Glória.
Na mitologia do Éden nós temos a Queda de Adão e Eva pela traição contra o Amor divino em troca da Gnose da Serpente, o que foi consumado pelo Pecado Original, ou Pacto Ouroboros. Isso é admitido pela Tradição, até certo ponto. Que o Pecado Original sempre tenha sido a multiplicação das Obras da Carne me parece óbvio. O decreto de Gênesis 3 não afirma que Adão e Eva devam multiplicar o seu estado decaído e amaldiçoado, gerado pelo seu pacto demoníaco, ad aeternum, com efeito sobre toda a descendência. Ao contrário, o decreto propõe a libertação desse estado através da misericórdia da morte, que é a Justiça aplicada ao pecado da rejeição do Amor divino (“o salário do pecado é a morte“). A melhor coisa que pode ocorrer a quem rejeita o Amor de Deus é morrer. Mas o primeiro casal desobedece a Deus e lida com a Serpente como o seu novo deus “libertador” pelo dom da Gnose. Isso se realiza na escravidão da descendência do primeiro casal, para que o estado decadente seja perpetuado e o Ouroboros seja a única divindade sobre o homem, em troca de conhecimento oculto. Essa Gnose é a Tradição Primordial que deu origem a todas as religiões: a legitimação da Mistura, a adoração da Serpente por toda a descendência gerada pelas Obras da Carne em troca do conhecimento do domínio sobre a natureza decaída. Essa é a iniciação tradicional, do aceite da Mistura junto com o Limite. Para capturar todas as oposições contra essa crença uma outra Gnose é oferecida como iniciação revolucionária com o intuito de rejeitar o Limite junto com a Mistura, esta outra iniciação sendo aquilo que se conhece culturamente como a heresia gnóstica.
A única solução veio por Jesus Cristo, o Segundo Adão, que sendo inocente e puro por não ter nascido das Obras da Carne, aceitou sobre si o juízo que Adão rejeitou e, carregando a Cruz e recebendo a morte que Adão negou, mostrou o Caminho da Salvação: aceitar o decreto de Gênesis 3 que nossos ancestrais recusaram e participar das Obras do Espírito com a Separação de Luz e Trevas e a Ressurreição.
O Diabo só possui domínio através da perpetuação da Mistura, que depende da continuidade do Pacto Ouroboros, o Pecado Original. Esse domínio já teve um fim decretado, mas a participação na vitória de Cristo depende da vontade de cada alma de libertar-se das mentiras das duas Gnoses, porque só obtém essa vitória quem acredita nela, ou seja, na bondade do Limite e no fim da Mistura. Lembrem-se disso sempre: o mal deseja que se ignore a obra de Separação, ou Santificação, e se creia em uma dessas duas mentiras, a de que a Mistura é tão boa quanto o Limite, e a de que o Limite é tão mal quanto a Mistura.
O Ouroboros, esse mentiroso, ladrão, usurpador, farsante, fundou a ficção gnóstica que constitui o sequestro do Bem pelo Mal: ou se aceita a parasitagem da Mistura (exoterismo gnóstico), ou todo o Bem está perdido (esoterismo gnóstico). Seu objetivo é se colocar no lugar do Deus verdadeiro, ou então negar toda possibilidade de vida. Jesus destruiu toda essa mentira, e para seus seguidores o Bem não é mais refém do Mal: a Ressurreição separa e exalta o Bem para sempre.
Enfatizo o fenômeno imediato, exaustivamente repetido, desde a nossa infância, pela mera repetição do costume, das iniciações gnósticas exotéricas, na forma da apresentação de qualquer bem como condicionado à Mistura. Nossos pais, professores, chefes, sacerdotes e reis, enquanto atores desse teatro pretensioso e mesquinho, se colocam como representantes e co-criadores ou co-provedores de um bem que só é possível como sequestrado pelo esquema da Mistura, e viável pela mediação desses subdeuses. São usurpadores e ladrões querendo roubar o louvor e a glória que só pertencem a Deus. São representantes da Idolatria e imitadores do diabo, aquele ladrão, usurpador, farsante e mentiroso que quer se colocar como produtor do Bem, como se fosse Deus ou como se a bondade de Deus dele dependesse em qualquer grau. E são cúmplices desse sequestro quando negam toda a Graça direta, divina, provida pela bondade do Deus verdadeiro que de nada depende, mas que de tudo pode fazer uso para decretar a sua Vontade, o mesmo Deus que, por sinal, liberou seus verdadeiros adoradores, os cristãos, para de tudo fazer uso sem se deixar escravizar por nada, em tudo dando Graças à Ele.
Ao fim só resta a escolha da crença pura de Deus como doador do Ser e do Bem, ou das crenças gnósticas deturpadas e corrompidas que mediam a bondade de Deus e a misturam com as Trevas, na forma da idolatria da Natureza ou do Homem como causas intermediárias incondicionais da experiência do Bem divino.
Quando falamos de crenças, falamos de possibilidades de verdades que podem ser acreditadas, mas que jamais podem ser determinadas pela razão humana, portanto falamos de objetos primários da Vontade, só secundariamente objetos do Intelecto.
Finalmente, o Gnosticismo como um espírito é aquele contrário ao próprio dom da Soberania que permite o reconhecimento da liberdade da Vontade de escolha da crença que convém ao arbítrio humano. Existe, portanto, uma crença particular que dá o entendimento de que a nossa Vontade não possui a liberdade suficiente para fazer uma escolha diante das opções mencionadas. Essa crença é animada por um espírito maligno, que é o que chamamos também de Gnosticismo, no sentido da falsa negação da liberdade da Soberania humana sob a suposta exigência da posse de uma Gnose suficiente para que a Vontade seja obrigada à uma submissão terminal. Esse espírito é especialmente perigoso quando impede o ser humano de reconhecer a sua liberdade de aceitar ou rejeitar o Limite, e de aceitar ou rejeitar a Mistura.
Podemos, e devemos, a partir de agora, buscar o uso mais qualificado possível da terminologia da maneira que segue:
Vamos chamar de Gnosticismo Histórico aquela formulação clássica da heresia caracterizada pelos três princípios já identificados (Demiurgo Mau, decadência na matéria-corpo, e salvação pela Gnose), de Gnosticismo Dialético as formulações da Dialética do Ouroboros, do duplo erro dos gnosticismos esotérico e exotérico, e de Gnosticismo Espiritual a formulação específica da rejeição do dom de Soberania.
O Gnosticismo Espiritual é a forma mais fundamental e mais sutil do erro, porque implica na rejeição in limine da liberdade de escolha e, portanto, na rejeição da responsabilidade pelas crenças. Isto é o que mais interessa para Deus, porque nada é mais sagrado do que a liberdade de aceitar ou rejeitar o Amor divino, de modo que a recusa da situação de liberdade implica numa falsificação da condição humana, como se alguém pudesse se omitir da decisão de confiar ou não no Amor divino.
O Gnosticismo Dialético é o conjunto mais amplo das possibilidades de crença na rejeição do Amor divino nas duas formas espiritualmente reconhecíveis, a esotérica da rejeição do Limite, e a exotérica da legitimação da Mistura. Não é muito difícil que pessoas estudadas percebam o componente esotérico do Gnosticismo Dialético, porque este já é abundantemente identificado na literatura que trabalhou e condenou o Gnosticismo Histórico como heresia. Muito mais difícil é admitir a perversidade da idolatria do componente exotérico que nega igualmente a bondade de Deus, porque identifica a condição da Mistura com a vontade do Amor divino e pratica a idolatria da Natureza.
O Gnosticismo Histórico é a formulação clássica que todos já conhecemos e que é tão fácil condenar com base na bondade de Deus e de sua Criação, na bondade da matéria e do corpo através da Encarnação e Ressurreição de Cristo, e na dependência da Graça para a verdadeira salvação que só Deus nos pode dar.
A identificação de todo o Gnosticismo apenas com o Gnosticismo Histórico é uma redução absurda e inviável, que nos deixa cegos ao processo da Dialética do Ouroboros, e do próprio espírito do Gnosticismo contrário à Soberania. Isso não tira o mérito da condenação dessa forma clássica de Gnosticismo, mas esta é a defesa contra apenas um erro de três possíveis.
Coerentemente contrários à rejeição do Limite, somos lançados àquela outra negação da bondade divina, que é a legitimação da Mistura, e assim nos tornamos vítimas do Gnosticismo Dialético.
E, por fim, amedrontados pela nossa própria liberdade de aceitação ou rejeição do Amor divino, procuramos refúgio no falso conforto oferecido pelo Gnosticismo Espiritual.
Em suma, se precisássemos reunir de volta todos os conceitos a um único conceito unificador, diríamos que: o Gnosticismo é um espírito maligno contrário ao dom de Soberania que aliena a liberdade humana de confiança do Amor divino nas formas da aceitação do Limite e de rejeição da Mistura.
GNOSE, afinal, é o conhecimento oferecido em troca do Amor divino que só pode ser confiado com um ato livre da Vontade humana, sem garantias e sem demonstrações além da evidência da Teleologia Metaracional do Sumo-Bem, como já explicado anteriormente. Gnosticismo, assim, é a tendência maligna de alienação da liberdade de escolha do Amor em troca da posse de um conhecimento que signifique a posse do Bem sem a dependência da ação divina, seja na forma da mentira da negação do Limite, seja na forma da mentira da legitimação da Mistura. Nos dois casos supostamente nos bastaria algum bem independente da ação divina direta como causa eficiente da nossa Salvação: nossa transformação em deuses independentes de Deus no primeiro caso (negação do Limite), ou a nossa posse da bondade divina através da relação de domínio com a Natureza, que seria um deus-aí sempre disponível de forma terminativa e completa (legitimação da Mistura).
Identificamos, assim, cinco tipos de possibilidade de atitude espiritual diante do fait accompli da experiência da Mistura:
- Escravo do Costume (desejo mimético)
- Legitimador da Mistura (seguidor de religião, filosofia, ideologia política, etc.)
- Negador do Limite (seguidor de culto da morte)
- Realista Responsável (cumpridor de Deveres de Estado, abstinente de Votos voluntários)
- Seguidor de Cristo (filho adotivo, vive na Presença e dá o Testemunho)