Retórica, livro por ARISTÓTELES

Neste trabalho o nosso filósofo tratará da arte do discurso persuasivo. Ainda estamos no território da imagem ou aparência da verdade (doxa, ou opinião). A diferença com relação ao que vimos antes, na Poética, é que lá a verdade era imitada sob o aspecto da impressão, como a gerada pelas sensações, enquanto aqui na Retórica a imagem da verdade adquire maior grau de abstração, como o que é gerado pelo discurso.

O Estagirita nos dá logo a sua definição da arte retórica:

Essa explicação está em linha com a prévia investigação socrática-platônica a respeito do objeto indeterminado da sofística. Que habilidade é essa que permite falar de tudo com maior poder de convencimento do que aqueles que conhecem melhor cada tema em particular? Isso gerava perplexidade e até antipatia da parte dos filósofos. Já Aristóteles, com um espírito mais frio e científico, não se preocupa tanto com a denúncia dessa prática quanto com o entendimento dos motivos da sua efetividade. O que é próprio do discurso retórico é a sua atuação sobre aquilo que é persuasível em qualquer caso. Assim, tanto quanto vimos, no Órganon, que a estrutura da lógica analítica é universal para todos os intelectos, do mesmo modo as propriedades daquilo que é persuasivo são universais para todas as psiques. Todos os seres humanos costumam ser convencidos daquilo que é verossímil do mesmo modo.

Aristóteles percebe que o discurso persuasivo orbita em torno de seu tema, sobre o qual pode conjecturar indefinidamente, mas se apóia em duas componentes alheias ao assunto em si: a credibilidade do orador (ou autor), e as emoções e inclinações do ouvinte (ou leitor), que é o árbitro e, portanto, o elemento “que determina a finalidade e o objeto do discurso“. O objeto da retórica não é a verdade, mas o movimento da crença do juiz do discurso. Um discurso que seja desqualificado por sua relação com a verdade sobre o assunto pode se tornar convincente apenas porque seu autor possui credibilidade suficiente, ou porque as emoções e inclinações dos ouvintes foram movidos na direção que convinha para que fossem persuadidos.

A verdade é convincente por si mesma, mas a aparência da verdade pode ser convincente por recursos alheios ao que é verdadeiro. A arte retórica explora esses recursos.

Como bom inventariante que é, Aristóteles logo começará a fazer listas de coisas, o que aliás parece ser algo típico de pessoas inteligentes, ou no mínimo curiosas. Sobre temas do debate político ele relaciona os assuntos fundamentais sobre os quais as disputas políticas costumam versar, quais sejam: recursos, guerra e paz, defesa nacional, importações e exportações, e legislação. Eu poderia penalizar este segmento por sua Ingenuidade, já que com a consideração do efeito do Pecado Original sobre todos esses temas políticos, estes restam vazios (res exclusae in limine) ou ao menos muito preteridos em face da conveniência do desarmamento moral generalizado em direção à idéia da Melhor Geração. Mas o filósofo apenas inventaria aqui aqueles assuntos políticos que são debatidos de acordo com o costume, e portanto não pode ser responsabilizado pelo que os outros entendem ser de maior importância. Se ele próprio produzisse um juízo de mérito a respeito, então poderíamos avaliar essa decisão, como deverá ser o caso na avaliação da sua Política, ocasião na qual poderemos confrontar as suas posições.

Algo diferente talvez ocorra quando o filósofo passa a listar os bens que produzem, por sua posse, a felicidade dos seres humanos. Ele não erra ao reconhecer que a felicidade e os seus componentes são universalmente desejáveis. Mas possivelmente erra na própria listagem desses bens, para não falar na omissão sobre a origem primeira de todos os bens, o que pode levar ao erro do Psiquismo. Vejamos o trecho:

Já Sócrates, e com ele Platão, afirmava a superioridade da virtude (arete) sobre todos os outros bens. Nós mesmos podemos ir além e afirmar a Graça como a fonte de toda felicidade verdadeira. Novamente me inclino à leniência, porque Aristóteles pode se referir, mais uma vez, àquilo que é acreditado pelo costume, como ele mesmo nos avisou que faria, e como aliás faz sentido que faça, já que reconhecemos que a retórica visa à persuasão e não à investigação da verdade. Mas há o erro, talvez, de não disputar ou ressalvar o quanto essa valorização pode ser prejudicial. Como ele enfatizou a origem axiológica dessas idéias, o que é muito apropriado e exato, de novo podemos deixar passar. É difícil glosar Aristóteles. Mas oportunidades não faltarão para um reexame das idéias por elas mesmas, como com o Da Alma, com a Ética a Nicômaco, etc.

Sua definição daquilo que é bom é excelente e possivelmente até insuperável:

Grande é a importância de dois componentes nessa definição: a característica da finalidade e a característica da racionalidade. A finalidade torna todos os meios dispensáveis todas as vezes em que isso for possível, e a racionalidade implica na falsidade dos bens que são considerados apenas pela sua natureza e independentes de finalidades. Ambos componentes são espiritualmente vitais. Aqui Aristóteles se mostra um legítimo e digno herdeiro do idealismo platônico, e se mostra também livre, pelo menos por ora, de qualquer Naturalismo.

Neste trecho do Capítulo 6 vemos como o nosso filósofo é exato em seus termos, razão pela qual sempre foi muito apreciado:

A chave está na expressão “a consideramos um fim“. Esse caráter subjetivo neste tipo de juízo mostra o grande perigo da capacidade e do interesse humano de perverter o senso da realidade das coisas. Pois o modo de proceder típico desses seres criados no cativeiro da Idolatria e na cultura do Pacto Sadomasoquista é o de fazer o valor dos esforços e sofrimentos dos meios das ações humanas emprestarem legitimidade, de modo artificial, às finalidades. É uma racionalização abusiva e falaciosa, a justificação das finalidades pelos meios. O fato de que quaisquer meios para a obtenção de determinados fins tenham sido custosos, especialmente em termos da impressão subjetiva causada por sofrimentos gerados por danos ou esforços deliberados, não servem para a qualificação dos fins. Qualquer fim deve ser bom por si mesmo, por definição, já que isto é o que qualifica e determina a essência daquilo que é uma finalidade. Aristóteles não se aprofunda nisto agora, mas seu testemunho é bom o suficiente para nos despertar um alerta: o quanto não pode ser conveniente a um ser ao mesmo tempo racional em potência e ignorante em ato a atribuição retroativa da bondade dos fins de suas ações pela consideração do valor subjetivo dos meios voluntariamente empregados? Numa alma predisposta à Presunção, especialmente, é mais fácil simular a Sabedoria do que ser Humilde, porque para o orgulhoso a Humildade é humilhação.

Ainda nessa matéria da prioridade dos fins sobre os meios, nosso filósofo tem mais observações interessantes e que merecem ser notadas, por mais óbvias que sejam:

Ora, não há causa mais primordial, mais benéfica, ou mais perfeita nos seus meios e nos seus efeitos, do que a Graça, que é a ação divina por excelência. Aristóteles não tem a obrigação de reconhecer isso, mas os filósofos cristãos têm. E isso especialmente em face do sentido do Pecado Original. Ninguém podendo restringir a potência da criatividade divina, resta como absurda toda ação que se presuma boa por livre deliberação sem o constrangimento das circunstâncias, principalmente quando implique em riscos evidentemente inapropriados.

Por uma razoável extensão o autor fará o inventário dos elementos mais convincentes para a persuasão, com ênfase nos âmbitos das disputas forenses e políticas. Aqueles que estão envolvidos nesses tipos de atividades podem encontrar instruções valiosas nesta Retórica.

Naquilo que nos interessa, que é o sentido espiritual, há uma passagem relevante sobre o amor e a amizade que vale a pena destacarmos, sem prejuízo de futuras manifestações da parte do mesmo autor em outras obras:

Esta definição de amor (philia), ou amizade, é perfeita. Essa noção mostra como todas as outras relações humanas, em contraste, refletem posições como de poder ou posse, e conflitos de interesses pelos bens relativamente a uma das partes em detrimento ou em indiferença aos interesses das demais. Sócrates, e com ele Platão, já havia notado isso, e Aristóteles subscreve.

Em outra passagem descobrimos um importante testemunho à favor da Vigilância:

Aqui novamente ressalvamos o destaque para a função técnica desses testemunhos, o que implica que não necessariamente o filósofo endossa essas idéias enquanto investigador ou na competência de pessoa particular que emite sua opinião. Mas, com o risco de que bons testemunhos não sejam reiterados em outra ocasião, prefiro fazer o destaque do citado.

E no que isso implica? Na corrupção e na decadência reconhecidas por efeito das inclinações naturais, de modo que a virtude e a bondade não são naturais, extraordinárias. A natureza não é boa e não inclina os agentes livres ao bem e à virtude.

Esse testemunho não só auxilia à favor da Vigilância, mas também favorece o reconhecimento da Presença, particularmente contra a Idolatria naturalista. Estamos falando de um filósofo pagão sem acesso ao testemunho revelado da Queda gerada pelo Pecado Original. Com qual subsídio operam então os medievais aristotélicos a exaltação da Lei Natural para além da sua justa medida, que é a da regulação dos entes submetidos à corrupção da Queda? Se os gregos já tinham produzido a Segunda Navegação e superado, assim, o naturalismo fisicalista das gerações precedentes de investigadores, de onde os medievais tiraram então a revalorização da Natureza acima do seu nível de direito? De outras fontes, como até certo ponto também Agostinho o tinha feito. O que está em jogo é a sanidade filosófica do escape da dupla armadilha da Dialética do Ouroboros: nem rejeitar o Limite, e nem legitimar a Mistura. Isto é: nem negar a bondade de alguma natureza simpliciter revelada como expressão do Limite, e nem a idolatria de uma natureza secundum quid já condicionada pelo mau uso da Liberdade.

A natureza amável é aquela mais pura e mais simples, gerada pela vontade divina e não pervertida ou deturpada pela agência de quaisquer outras vontades, e não aquela que foi arruinada pela ação humana.

Mais adiante, no Capítulo 21, ao tratar do emprego das máximas, Aristóteles mostra com clareza como a arte retórica tende à mentira e à corrupção:

É persuasivo, e isso não deveria nos surpreender, o discurso que não só confirma as opiniões que o público já possui, mas que usa de sua arte, como com o emprego de máximas, para tornar essa opinião valorosa com as formas da Sabedoria (principalmente através da pretensão de universalidade).

E também é persuasivo o discurso que versa sobre coisas nobres e qualidades virtuosas, porque se supõe que aquele que fala do que é superior possui em si próprio algo de superior.

Em suma, o ser humano está geralmente predisposto a enganar e a ser enganado, e cria até mesmo uma arte refinada com o propósito de conquista e dominação da vontade alheia, independentemente da bondade ou verdade de suas idéias.

Assim como o discurso poético tem o potencial, derivado de uma capacidade humana geral para a mentira, de produzir uma falsa imagem da verdade, também o discurso retórico possui este potencial, embora o desenvolva em outra direção, não por artes imitativas, mas por artes discursivas.

Dito isso, o componente mais crucial da arte retórica como um todo, e que a inclina para a malícia ou corrupção derivadas de algum grau de Presunção, é o fator da busca do verossímil à revelia do provável em face de uma decisão tempestiva. O discurso retórico quer persuadir um árbitro, ou juiz, a decidir em tempo hábil sobre o objeto em disputa, e portanto sacrifica o desejo pelo que é bom e verdadeiro em face daquilo que parece ser bom e verdadeiro, isto é, opera uma espécie de troca do Amor (pela verdade) pelo Poder (para agir).

Isso significa que qualquer situação que leve um agente a ser persuasivo não por força das circunstâncias, mas por Pretensão, constitui uma tentação para a malícia.

Igualmente, aqueles que são amantes do Bem e da Verdade agem como seres livres da necessidade da arbitragem em qualquer disputa a que não sejam obrigados a participar por força maior, e se dão o direito mais nobre de buscar o mais provável ou certo, podendo assumir em seu benefício o fato de sua ignorância, sem sofrer a pressão como fazem aqueles que se escravizam em busca do Poder.

Nota espiritual: 5,3 (Calaquendi)

Humildade/Presunção5
Presença/Idolatria5
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo6
Vigilância/Ingenuidade6
Discernimento/Psiquismo5
Nota final5,3

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