Metafísica, livro por ARISTÓTELES

Finalizamos a avaliação das obras do Estagirita por aquela que deve ser a mais importante de todas. Usamos os serviços de três tradutores no estudo de Aristóteles: Edson Bini para o Órganon, a Poética, a Retórica, o Da Alma, a Ética a Nicômaco e a Ética a Eudemo; Nestor Silveira Chaves para A Política; e agora Giovanni Reale para a leitura da Metafísica.

O objeto deste estudo é a ciência do Ser enquanto tal, no seu sentido mais universal. O autor inicia sua explicação afirmando que ter um conhecimento qualquer é algo menos que ter ciência, pois conhecer as coisas é saber o que é particular, enquanto que ter ciência é saber as causas universais dos conhecimentos particulares. Neste ponto, se Aristóteles parasse por aqui, ele poderia ser apenas mais um pensador engajado no projeto da gnose adâmica. Mas ele vai além. Afirma que entre as ciências das causas, existem algumas que são superiores: aquelas ligadas à essência e à finalidade das coisas, em vez do saber sobre o de que ou o de como as coisas são feitas. Traduzindo em termos aristotélicos, o conhecimento das causas formais e finais é superior ao conhecimento das causas materiais e eficientes. Por quê? Porque essas ciências são mais terminais por si mesmas, isto é, mais adequadas para a atividade intelectual de homens livres que conhecem os seres de modo mais livre. O objeto dessas ciências é mais puro e simples, e portanto mais ligado aos primeiros princípios, que são as categorias mais universais do saber. Ao distinguir entre ciências superiores e subordinadas, e identificar entre estas aquelas destinadas ao atendimento das necessidades e dos desejos práticos do ser humano (isto é, ao problema da Maldição e do Poder), o filósofo já busca um grau de liberdade que supera a escravidão da Legitimação da Mistura, isto é, a ideologia da Religião de Adão.

Imagine-se uma cadeira onde sentamos para obter repouso e descanso, seja para contemplar uma paisagem, tomar sol, assistir um espetáculo, etc. As suas causas material e eficiente, ou seja, a madeira, o tecido, e a cola ou os parafusos de que é feita, ou ainda o processo de fabricação da mesma, seja artesanalmente ou por manufatura industrial, nos dão um conhecimento sobre o ser da cadeira, mas este tipo de conhecimento é inferior ao das causas formal e final, já que mais me importa saber o que é uma cadeira e para o que ela serve, de modo que eu possa admirá-la na sua bondade e fazer uso dela para sua finalidade, do que saber de quê ou como ela foi produzida. Sem a forma e a finalidade nem existiria razão para a reunião dos materiais necessários à produção da cadeira, e nem a atuação do processo de criação da mesma. Por outro lado, conhecendo a forma da cadeira e a sua finalidade, posso fazer bom uso da mesma ainda que jamais venha a tomar conhecimento da origem dos materiais que a compõem, ou do seu processo produtivo. Tudo o que é ligado à forma substancial e à finalidade é mais puro e simples, pois é mais ligado ao Bem. Os outros conhecimentos são inferiores e misturados, porque dependem de forma e finalidade para se justificar. O bem da cadeira é que ela seja possível tal como sua essência lhe determina, e que sirva ao seu propósito da melhor maneira, enquanto que os materiais de produção e o ato de produzir em si são bens relativos aos bens formais e finais. Isso é assim de tal maneira que se fosse possível a criação de uma cadeira de acordo com a forma e a finalidade, para o usuário da mesma isto seria perfeito ainda que os materiais componentes e o processo produtivo fossem gerados instantaneamente na condição do produto final, já que o bem para esse usuário não está no conhecimento e manejo dos materiais, e nem na produção da cadeira, mas no reconhecimento da forma e no uso prático da cadeira. Outra coisa poderia ser dita de um marceneiro por hobby que extraísse prazer justamente do manejo dos materiais e da arte da fabricação? Nem tanto assim, porque para este o que era meio se tornou finalidade, de modo que nunca se busca nada acima do próprio bem, mas os bens podem variar de acordo com as apetições particulares. Isto é, neste segundo caso a causa formal é o próprio artesanato enquanto atividade boa por si, e a causa final é a ocupação do artesão numa atividade que lhe seja satisfatória, e essas duas causas continuariam superiores às causas material e eficiente da atividade. O que interessa é entender a diferença entre a ciência livre e a escrava, a diferença entre a ciência que ama o bem da ciência que ama o poder. Aquele que conhece o de que a cadeira é feita, ou como ela é produzida, quando possui este conhecimento como meio para a produção da mesma para causar o bem a terceiros, conhece essas causas como escravo da Maldição ou do Poder (ou porque precisa se sustentar, ou porque quer ganhar algum lucro como meio de poder sobre terceiros), enquanto quem conhece a essência da cadeira e a sua finalidade possui uma ciência livre destinada ao bem. O mesmo diferencia o artesão por hobby do operário que trabalha por sustento ou lucro.

Aristóteles afirma que as ciências superiores buscam as causas supremas, e são, assim, atividades de homens livres. E não há causa maior do que a mais universal possível, que explique o ser de todas as coisas. Totalmente fiel ao legado platônico, o autor afirmará que a finalidade de qualquer ser é o bem, e que, sendo assim, o fim geral de todas as coisas é o sumo bem (982b5). Que exista uma causa unificada que explique universalmente o ser de todas as coisas é o reconhecimento que o autor presta aos méritos do idealismo platônico, e é o que livra definitivamente o Estagirita da acusação de ser um filósofo naturalista, ou empirista, etc. Já tivemos ocasião de afirmar isso antes, e aqui se consolida esse entendimento.

Na distinção entre o que é a sabedoria mais livre e próxima ao bem divino, que do ponto de vista filosófico é justamente a Metafísica, e todas as demais formas de saber humano dirigido a objetos inferiores, Aristóteles produz a sua sentença eterna que distingue a atividade intelectual livre da escravidão: “Todas as outras ciências serão mais necessárias do que esta, mas nenhuma lhe será superior” (983a10).

Com muita honestidade e humildade o autor reconhece que trabalha na esteira de uma sabedoria que os gregos já vinham produzido desde antes:

Entre os destaques do período pré-socrático na investigação do primeiro princípio, o autor destaca com razão Anaxágoras, Pitágoras (ou “os pitagóricos”), e Parmênides. Antes de Platão estes foram os melhores filósofos que encontravam explicações no Logos, no Número (especialmente no Um) e no Ser. Tudo isso fluiu para a descoberta do Uno como uma Inteligência suprema, mais ou menos identificado depois por Platão como Sumo-Bem.

Na sua crítica mais detalhada do platonismo Aristóteles com razão condena o procedimento de multiplicação dos seres: não bastasse o problema do Múltiplo tal como percebido, ainda por cima se fará toda uma infraestrutura formal entre o Uno e o Múltiplo, e com isso supostamente vamos entender melhor a realidade? O que ele ainda não diz, porém, é que o idealismo platônico era necessário para a descoberta da sua causa primeira. E, mais ainda, para o futuro recurso da analogia dos entes. A complicação do Mundo das Idéias foi um aborrecimento necessário para o aproveitamento dessas outras possibilidades no progresso da filosofia futura. Mas era necessário que Aristóteles se destacasse dos platônicos de estrita observância, então compreendemos a sua posição. Cada nova geração deve manter o que há de melhor na filosofia anterior, e prosseguir com as contribuições de que for capaz. Aristóteles definitivamente fez isso e muito bem.

Com uma maturidade exemplar o nosso filósofo honra a humildade de Sócrates –que lhe foi bem transmitida pelo mestre, e nisto deve haver um mérito platônico–, reconhecendo que a relação do homem com a verdade é, ao mesmo tempo, sempre imperfeita e inescapável, e que essa deficiência tem que ter algo a ver com a nossa forma de ser, e não com uma característica da verdade em si:

Depois outros filósofos abordarão esse problema de maneiras diferentes e com resultados variados. Mário Ferreira dos Santos, por exemplo, no seu Filosofia da Crise, tratou da questão, mas a meu ver de modo deficiente, com excesso de drama, ou tragédia, como se o gnosticismo luciferino fosse um problema de defeito do ser, e não uma questão de orgulho. Coisa igual fez Olavo de Carvalho com a sua noção do “Trauma da Emergência da Razão“, que é mais ou menos a mesma questão reformulada em outros termos. Em suma: ao homem o conhecimento pleno nunca é viável, mas nunca é impossível, e justamente quanto mais realiza a sua forma de ser racional, mais o ser humano deve ser humilde de reconhecer os seus limites. Assim que se explica a queda de Lúcifer: o maior dos intelectos criados precisava da maior virtude da Humildade para resistir à tentação da negação de seu próprio limite.

Por outro lado, o conhecimento do que é contingente e relativo sempre será inferior ao conhecimento do que é transcendente e absoluto, como o que é temporal é inferior ao que é eterno, e o transitório ao que é permanente:

Mais ainda, quando se conhece o ser de que outros seres dependem, conhece-se mais o próprio ser dependente nessa relação. E como a série das causas precisa ter um princípio para que ela seja atual e não mera potência, do fato de que exista um ser qualquer se pode deduzir o ser da causa primeira que lhe gerou por meio de qualquer processo de atuação de causas intermediárias:

O nosso autor estabelece assim a necessidade do primeiro princípio. Mas este se identifica com aquelas noções primordiais das filosofias precedentes: o Ser, o Um, e o Bem. E finalmente com o Estagirita o primeiro princípio é qualificado sob essa categoria indestrutível da filosofia aristotélica, o da Substância.

Diz ele: “Na medida em que é ciência soberana e mais digna entre todas para dirigir, na medida em que a ela todas as outras ciências, como servas, justamente não podem replicar, a ciência do fim e do bem parece exigir a denominação de sapiência (todas as coisas, com efeito, existem em função do fim). Por sua vez, tendo sido a sapiência definida como ciência das causas primeiras e do que é maximamente cognoscível, esta parece ser a ciência da substância“.

Ora, o que é a Substância senão o Uno de onde se origina todo o Múltiplo, e o que é isto senão a Mônada? A Metafísica, portanto, enquanto ciência do Ser que é a Substância, equivale à Monadologia.

Que seja necessário o permanente para que haja o transitório faz Aristóteles afirmar outra das máximas consagradas em sua Metafísica: “Se não existisse nada de eterno, também não poderia existir o devir“. O princípio de identidade que afirma qualquer verdade a respeito de qualquer coisa que veio ao ser ou que deixou de ser fala justamente sobre o ser que permanece ele mesmo, e isto deve transcender totalmente a realidade dos contingentes. Afinal, se o intelecto reconhece e afirma algo sobre o devir, sua proposição identifica principalmente o que é eterno no contingente. Se existe um objeto para a intelecção, esse é o ser que se preserva e em face do qual é percebido o próprio devir. Imaginem que salto, em termos de esclarecimento, significa verificar essa necessidade metafísica por trás daquela abrumada teoria do Mundo das Idéias de Platão. A questão fica mais clara do que nunca, ainda que Aristóteles não possua todas as respostas. Sobretudo a relação Uno-Múltiplo ainda lhe desafia. Vale a pena acompanharmos o raciocínio como um todo:

Temos pistas para as respostas que o filósofo deseja. O particular existe no universal como manifestação, sendo o universal justamente o Intelecto, e o particular o objeto parcial de sua Percepção (exceto para a Mônada Incriada, onde a Percepção é total pela potência do Intelecto infinito). A forma de todos os homens é uma só porque a Substância é idêntica pela forma, embora para precisar este ponto fosse necessários esclarecimentos como o do Princípio da Identidade dos Indiscerníveis, de Leibniz. Como ocorre que o mesmo é o outro? Ocorre pela total analogia, porque a Substância Simples, que já identificamos como a Mônada, existe singularmente e percebe apenas a si própria. O preço da simplicidade da ontologia monádica é o descarte, porém, do composto e da matéria, como meras manifestações do ser no conteúdo da percepção. Não tem jeito: se qualquer coisa além da Substância Simples possuir ousia, as aporias são inevitáveis e insolúveis. Porém, como pode o Múltiplo ser explicado, se só existe o Um, isto é, a Mônada, ou Singularidade? Somente como conteúdo intelectual da Percepção, de modo que o Ser é eminentemente cognitivo e tudo o que chamamos de Multiplicidade nas suas relações de matéria e de compostos são produzidos pela reflexividade monádica.

Não se pense, porém, que o nosso filósofo não consegue se aprofundar tanto quanto queira no problema e tirar de suas perguntas todos os poderosos insights que seriam necessários para as melhores filosofias futuras. Exemplo:

Já falamos que a comparação do Uno com a unidade na matemática, ou com o ponto na geometria, pode favorecer esse entendimento de como o ser, por assim dizer, se “reproduza” na sua própria forma essencial, embora essa forma não possua partes e também não possa constituir partes de outros seres justamente por não ter extensão. Como o número natural Um pode formar o Dois, se ele mesmo não tem uma quantidade em si que possa agregar o resultado do Dois (você pode somar frações que são derivados da unidade, mas não pode desfazer a unidade de modo natural), e pior ainda, como o Dois pode ser ele mesmo e, portanto, ter na sua essência a forma do Um, porque é igual a si próprio, mas ao mesmo tempo não ser o Um, mas uma espécie de “outro” Um? Ou, na geometria, como o ponto que não tem extensão pode formar linhas e superfícies que possuam extensão? Tudo isso evidencia o Princípio da Analogia, que é um conceito fundamental do Idealismo Transcendental. Porque nada disso pode ser negado: nem que o Um não seja substância, e nem que existam grandezas e extensões que são unidades por si mesmas, embora sejam diferentes entre si. Tudo isso é evidenciado por intuições e pela observação da realidade. A difícil ponte entre esses dois mundos não é o Mundo das Idéias de Platão. É a Analogia, e então a reflexividade monádica. Aristóteles, ainda que não tivesse o domínio da solução, já progrediu muito no avanço da investigação ao estabelecer critérios mais claros e decisivos do que os que tinham sido estipulados pelo platonismo.

É óbvio que as contribuições dos pré-socráticos foram recebidas e processadas pela filosofia aristotélica que pôde então entregar ao futuro um entendimento mais minucioso e profundo do problema da Relação Uno-Múltiplo. Especialmente a necessidade de que a substância seja simples e livre de composição e decomposição, e dos processos naturais de geração e corrupção. Exemplo:

Independentemente de Plotino e das contribuições do neoplatonismo, Leibniz certamente leu e foi profundamente impactado pela leitura de passagens como esta. Existe, enfim, uma certa tradição de filósofos ligados à investigação de uma metafísica monadológica, e Aristóteles com certeza faz parte dela.

Pensem nesta afirmação:

Inteligente como poucos, é evidente que a Aristóteles esse padrão não escaparia. Os filósofos vêm definindo o problema com termos e conceitos diferentes, ou analisando a questão sob aspectos diversos conforme suas preferências, mas por trás da variedade é possível encontrar o padrão que pode ser identificado nessa “redução” –usando a expressão do próprio autor– a um problema essencial que é o da Relação Uno-Múltiplo.

De certo ponto em diante o autor trabalhará em detalhe com as definições dos termos empregados na investigação do tema de sua Metafísica, o que em grande parte podemos deixar de lado e deixar mencionado apenas para a consulta daqueles que desejarem se aprofundar na questão técnica. O que tem valor diferenciado, porém, é o trabalho com a categoria da Substância.

Como o autor não pode aceitar que somente a Substância Simples tenha ser no sentido pleno, ele deve necessariamente se gastar em diversas considerações sobre as respectivas supostas substancialidades da forma, da matéria, e do sínolo (composto). E no fim das contas ele assume que certos problemas são insolúveis. Não que ele não tivesse os meios de resolução. Raramente esse é o problema dos bons filósofos. Mas talvez faltasse a vontade de adotar uma solução mais simples que fosse menos gnóstica e naturalista.

As pistas para a solução são dadas pelo próprio autor. Em 1036a, por exemplo, ele afirma: “a matéria por si é incognoscível“. Ora, como aquilo que depende de uma essência formal para ser conhecido pode receber o status de substância? O ser que é a substância primária não deveria subsistir sem depender de outro ser? Ele sabe que sim. O problema é que na Percepção nós conhecemos a qualidade daquilo de que as coisas são feitas, e no nosso pensamento nós conhecemos essências abstraídas da concretude por lhes faltar algo, e este algo deve ser uma coisa como a matéria. Nada mais natural do que afirmar que essa qualidade do substrato da Percepção é aquilo que falta para que as essências abstraídas ganhem concretude e então chamar isso de “matéria” (hyle). Não é difícil perceber que o que chamamos de matéria é uma abstração que sempre poderia ser predicada como qualidade da verdadeira substância. O conceito filosófico de matéria é uma abstração pelo menos desde a filosofia aristotélica, como se pode observar, isto apenas para não se atribuir o puro predicamento desde as Formas (ou Idéias), algo que tinha muita importância no sistema do Estagirita. A matéria é um conceito funcional e intercambiável com o de potência (dynamis) na própria concepção do nosso filósofo. O que é mesmo necessário, porém, é que algo distinto do pensamento humano possa tomar a forma das essências que podem ser separadas pelo intelecto. Se a Luz divina que ilumina o intelecto humano realizar essa operação, ela é então a verdadeira matéria da Percepção. E essa luz é transcendente à toda Gnose da criatura. A ciência da Física já atingiu a evidência suficiente para confirmar a paradoxal imaterialidade da tal “matéria”, mas isso não impede que o ser humano continue desejando dominar a Luz com a Gnose. Nisso não encontramos nenhuma novidade desde a história daqueles traidores, Lúcifer e Adão. Que particularmente alguns cristãos ainda aceitem ou até legitimem essa Pretensão, isto sim é algo espantoso.

Nosso autor está o tempo todo esbarrando na verdade inescapável de que apenas a Unidade pode ser Substância com plenitude. Ele não foi o primeiro e não será o último.

Por exemplo, em 1036b lemos:

Ou em 1039a lemos:

O problema é sempre o mesmo. E a expressão “problema dos universais” deveria ser reconsiderada pelos historiadores da Filosofia: a expressão mais cabível é “problema da Relação Uno-Múltiplo”, pois a questão dos universais só é difícil quando de pretende atribuir a substancialidade da Unidade ao que é Múltiplo, então essa é a forma mais essencial do problema. O que persiste, à quem negar a Monadologia (ou pelo menos alguma Fenomenologia baseada na Crítica kantiana), é a incompatibilidade entre a integridade do Uno e a suposta ousia do Múltiplo tal como se infere nas impressões da Percepção. E a solução mais perfeita que consigo pensar é a da epistemologia da reflexividade monádica. Só a Mônada possui ser, e todo conhecimento é a Percepção do seu reflexo como Multiplicidade, de modo total e simultâneo para a Mônada Incriada, e de modo parcial e sucessivo para as mônadas criadas. Todas as dificuldades nesta apreensão derivam do hábito mental de se atribuir substancialidade ao que não convém, o que por sua vez resulta da influência do espírito de Idolatria que é, por fim, gerado desde o espírito de Presunção típico da Gnose luciferiana e adâmica (conhecer o Ser ou o Bem sem Deus, ou ter o domínio de Deus sem ser Deus).

Apesar de muito insistir no seu modo complexo de considerar o Ser –e tendo feito isso, lembremos, para escapar de outras tantas complexidades do idealismo platônico–, nosso filósofo não deixa de contribuir com noções valiosas, como esta em 1050b: “É evidente, portanto, que a substância e a forma são ato. E, com base nesse raciocínio, é evidente que o ato é anterior à potência pela substância. Também pelo tempo, como dissemos, há sempre um ato anterior a outro, até que se alcance o Movente primeiro eterno.” É por esse tipo de contribuição, com clareza e racionalidade, e sem nenhuma transigência com o idealismo precedente, que o pensamento metafísico pôde não só surgir nessa época da humanidade, mas se consolidar para sempre.

Adiante lemos uma passagem que reforça o que já foi dito sobre a necessidade do eterno para a ocorrência do temporal, mas com destaque para um aspecto diverso que vale a pena ser revisto:

Essa argumentação prova que o Estagirita antecipou as considerações do argumento ontológico que viria no Proslogion de Anselmo da Cantuária, e da identidade divina de essência e existência no O ente e a essência, de Tomás de Aquino. Pensando bem, esta é uma filosofia muito simples, como aliás toda boa metafísica costuma ser. E para que as futuras gerações de pensadores se entendessem dispensados de considerar a necessidade dessas evidências e relações, seria necessário mudar de assunto muitas vezes, o que é sempre mais eficiente do que querer realmente refutar a filosofia metafísica no seu próprio campo.

No livro XI o autor recapitula o problema de sua Metafísica como um todo, revisando problema por problema. Independente de seu embate com os outros platônicos, na sua revisão da Décima aporia, em 1060a, Aristóteles declara um dos grandes estranhamentos que exigem uma reflexão desse grau:

Reconhecida a necessidade dos primeiros princípios do Um e do Ser, e a sua eternidade, como é possível que deles derivem coisas não-eternas, isto é, submetidas ao devir, à entropia, corruptíveis e perecíveis? A sensação informa o Intelecto do temporal, mas a razão o informa do eterno. É o mesmo problema dos pré-socráticos, e dos platônicos, etc., em suma, o problema da Relação entre o Um e o Múltiplo, como já vimos.

Complementando o que já foi observado antes a respeito da prioridade da filosofia metafísica em relação às outras ciências –do ponto de vista da Sabedoria, e não da utilidade–, nosso autor afirma: “A relação da filosofia com a física é idêntica à relação que tem com a matemática. De fato, a física estuda as propriedades e os princípios dos seres enquanto estão em movimento e não enquanto seres, ao passo que –como dissemos– a filosofia primeira ocupa-se desses objetos na medida em que eles são seres e não enquanto são outra coisa. Por isso, tanto a física quanto a matemática devem ser consideradas só como partes da sapiência (1061b)”. Observe-se sempre que as perguntas sobre as relações de causas de composição e de decomposição, ou sobre as propriedades acidentais, etc., tudo isso é filosoficamente secundário em relação às perguntas sobre a essência dos seres, e sobre as suas finalidades, como já vimos antes. Mesmo do ponto de vista da utilidade, porém, é possível questionar a prioridade das causas materiais e eficientes, porque a sabedoria prática (phronesis), como todas as outras virtudes, depende também da Sabedoria como subsídio prévio.

Sobre o suposto problema do relativismo total e do tal paradigma moderno da “pós-verdade”, que é uma falsa questão na qual algumas mentes se envolvem tolamente, isso tudo já foi refutado sumariamente pela boa filosofia antiga, como temos nesta obra um testemunho em 1062b: “Enfim, se não é possível afirmar nada de verdadeiro, então também esta afirmação será falsa, isto é, será falso dizer que não existe nenhuma afirmação verdadeira. Se, ao contrário, existe uma afirmação verdadeira, então poder-se-á refutar a doutrina dos que levantam objeções desse tipo e destroem inteiramente a possibilidade do raciocínio“. Isso deve bastar para se lidar com o desconstrucionismo niilista de algumas ideologias contemporâneas, sem prejuízo de um bom ceticismo que critica com razão todo tipo de erro. De fato, se não existisse o exagero da arbitrariedade de tantos dogmatismos, não haveria essa reação irracional na outra direção. Uma sociedade sadia deveria ter uma boa dosagem de ordem e de ceticismo.

Ainda sobre o problema da matéria como abstração necessária para a manifestação do Múltiplo, como pura potência diante do puro ato, ou ainda como o Zero para o Um, em 1069b fica claro que este é o conceito de matéria na filosofia aristotélica, ao menos no que compete à Metafísica, independentemente da Física:

Essa é a “matéria-prima” da Escolástica, em contraste com o que costumamos entender como matéria pela experiência da sensação, que é uma matéria secundária, ou “assinalada pela quantidade”. Essa noção de matéria-prima no sentido metafísico é totalmente compatível com a da Possibilidade Universal, a potência que a Mônada possui em seu reflexo e que atualiza por ato de seu Intelecto. Assim se pode interpretar simbolicamente as águas primordiais e a terra vazia do Gênesis como a mônada de Adão, por exemplo. Por sinal, o nome de Adão tem como raiz etimológica a própria idéia de terra, e no mito ele próprio é tirado do barro, como a Percepção de seu corpo sendo um reflexo da sua potência monádica. Por outro lado o espírito (o ar) pairava sobre as águas, e tudo foi criado –isto é, atualizado– pela ação da Luz divina (o foto), etc. Cada elemento primordial no mito da Criação pode ser simbolicamente interpretado como uma representação das propriedades e atuações da Mônada.

Neste próximo segmento citado encontraremos uma das passagens mais citadas da Metafísica de Aristóteles pela raridade de sua expressão, quando o filósofo parece sair um pouco de sua função racional e entrar num testemunho de louvor do tipo religioso, mas isto é apenas algo muito apropriado porque um bom raciocínio metafísico deveria sempre evidenciar justamente as coisas que compõem o núcleo da experiência espiritual:

A única coisa que falta para o filósofo é a Boa Notícia que lhe relacionasse com a eternidade de Deus: o próprio Filho de Deus se fazendo homem para chamar o homem Aristóteles a ser filho adotivo de Deus, e herdeiro da eterna felicidade divina. É necessário, porém, prestar uma homenagem honrosa a Platão, que foi o mestre do Estagirita e que o colocou nessa pista de identificar o primeiro princípio, ou o Primeiro Motor Imóvel, com o Sumo-Bem, ainda que o discípulo tenha seus muitos (e razoáveis) problemas e disputas com os platônicos.

Além do Logos, do Sumo-Bem, e do Primeiro Motor Imóvel, outro conceito paradigmático com que os antigos filósofos gregos nos agraciaram ao tratar da essência da Substância Simples, que hoje podemos chamar de Mônada, há também pela pena de Aristóteles o testemunho a respeito da Visão da Visão, ou Pensamento do Pensamento, noesis noeseos:

Qual é a especialidade dessa noção no entendimento do Ser? É o da prioridade do Ato intelectual sobre os objetos da Percepção, de modo que quando afirmamos que há uma reflexividade monádica na criatura, isto deriva da mesma atividade presente de modo mais perfeito e total na própria Mônada Incriada, e é a assim que entendemos a divindade como Visão da Visão, e particularmente na teologia cristã é assim que compreendemos algo do Mistério da Trindade, etc. As contribuições aristotélicas nesse sentido não podem ser ignoradas.

Por boa parte de sua investigação daqui em diante o autor tratará dos problemas gerados pelas filosofias pitagórica e platônica, o que para nós hoje em grande parte pode ser cansativo e parecer desnecessário, pela simples razão de que a vasta maioria de nós não participa, e nem participou, de nenhuma dessas escolas, mas era preciso que Aristóteles, que participava dessa cultura, denunciasse as aporias e através disso sugerisse as suas soluções. Sobretudo na sua disputa com o problema da multiplicação dos entes pela Doutrina das Idéias, seu argumento é excelente, embora não possamos dizer que seja infalível sem conferir, por exemplo, a possibilidade da realidade de uma miríade de substâncias separadas, como se poderia supor, por exemplo, em algumas teologias.

No Livro XIV o autor dá um testemunho contra o dualismo gnóstico que acusa a matéria, ou o Múltiplo, de ser o mal:

O erro que o Estagirita acusa é o de estipular uma oposição entre o Um e o Múltiplo, embora ele também tenha suas dificuldades com o Um como princípio (justamente por considerá-lo como ente matemático e propriedade da substância, e não como conceito ontológico), e nisto tem toda a razão. Não que o Bem não seja um só, mas se o Múltiplo manifesta o Um, como ele seria mau? A relação não é de oposição, mas de reflexividade, especialmente na consideração dos intelectos limitados, já que para a Mônada Incriada o que nós chamamos de Múltiplo é a visão plena que o Uno tem de si mesmo eternamente.

De modo geral, para finalizar, a Metafísica é filosoficamente um bom estudo, e historicamente um verdadeiro monumento, mas para os nossos usos talvez não seja um documento muito recomendável por duas razões: (1) o excesso de atenção aos problemas do pitagorismo e do platonismo, que era uma questão importante para Aristóteles, mas para nós deixou de ser faz tempo; e (2) pelo peso de um certo naturalismo que ainda arrastou o filósofo a considerar a matéria de um modo menos ótimo do que seria se esta fosse apenas um elemento puramente abstrato para a concatenação dessa filosofia. Seria difícil evitar o primeiro problema, porque ele foi determinado pela circunstância imediata do autor, mas o segundo é mais dispensável, porque foi uma escolha arbitrária dele a escolha pelo estudo das ciências da natureza e de sua filosofia natural, com sua Física, e então a tentativa de fazer uma ponte entre esse universo de investigações e o da Metafísica, algo que seria mais fácil –e que resultaria numa solução muito mais elegante– se essa ponte tivesse a simplicidade e a pureza da Analogia. Esse conceito, no entanto, seria um patamar filosófico atingido apenas pelos Escolásticos na Idade Média.

Nota espiritual: 5,2 (Calaquendi)

Humildade/Presunção6
Presença/Idolatria6
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo6
Vigilância/Ingenuidade4
Discernimento/Psiquismo5
Nota final5,2

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