Nesta obra do Doutor Sutil encontramos mais uma expressão da filosofia cristã medieval alternativa ao programa dominicano e tomista.
O objetivo é uma revisão de termos essenciais da metafísica unindo os melhores legados tanto da filosofia antiga, em especial de Aristóteles, quanto da teologia cristã, porém com uma ênfase maior na submissão do racional ou filosófico ao espiritual. Esse programa já vinha de antes, com o próprio Doutor Seráfico (Boaventura), também franciscano, e foi continuado por gerações frutuosas inspiradas nessa orientação, sem esquecer a influência mais remota mas não menos poderosa de Agostinho.
Tratando da terminologia das causas, encontramos essa passagem:


Já falamos muito da prioridade das causas formal e final em face das causas material e eficiente, mas a expressão aqui lembrada e reforçada pelo autor é muito feliz, tratando-se da causa final: “causa das causas“. De certo modo isso é um produto da causa formal, mas é pela finalidade que se movem as demais causas, principalmente em vistas ao bem. A vantagem da posição dos franciscanos provém de sua liberdade de usar o Amor como categoria filosófica com maior liberdade do que Aristóteles faria, já que o Eros grego possuía um caráter menos ideal do que o Caritas cristão. Embalados pelo neoplatonismo plotiniano através da doutrina agostiniana da qual são legítimos herdeiros, esses franciscanos medievais produzem uma linguagem filosófica a meu ver excelente, muito mais direta e pura. Se o mais elevado dos Cinco Conceitos Sinóticos da Monadofilia é o Escolhido, isso não poderia se dar sem essa história do uso dos termos em busca da expressão mais fiel da realidade, especialmente do ponto de vista cristão.
Esse legado terminológico é determinante para o futuro da filosofia ocidental. No número 37 (Conclusão 15) o autor diz “nunca se deve admitir pluralidade sem necessidade“, repetindo Aristóteles, o que é uma óbvia inspiração para o que será a futura doutrina da Navalha de Ockham. Essa intenção é reiterada muitas vezes no decorrer da História da Filosofia, e de modo muito explícito desde pelo menos da obra do Estagirita, ao tratar dos excessos do idealismo platônico.
A estrutura formal da ordem das essências requer o Primeiro Princípio de tal modo que nenhuma circularidade, como num sistema fechado, é viável:

Com isso se exclui as ideias de eterno retorno, e a circularidade imanentista do Ouroboros: neste último caso o que há é uma farsa em que se pretende não depender do Primeiro Princípio, isto é, do influxo da Graça, para a experiência dos bens contingentes supostamente perpetuados dentro do sistema fechado. Se Deus me permitir expandirei a ideia de Usurpação para a de Pseudoeuergesia, a “falsa beneficência”, para deixar mais claro o entendimento de como isto é perverso e como constitui uma insídia típica e replicável em várias escalas e níveis.
Voltando ao tema da economia ontológica, que é um princípio tão vital para a Monadologia, para não falar, por óbvio, da Monadofilia, o autor volta ao seu ponto:

A linguagem já está pronta para o subjetivismo e para a fenomenologia modernas. Nesse sentido as acusações dos tradicionalistas procedem na matéria, embora falhem no mérito, porque afinal de contas ainda está para ser provado porque é necessário que exista uma ontologia determinada como diferente desta, ou de qualquer outra tão ou mais econômica, para que se mantenham firmes todos os princípios da experiência espiritual cristã de Deus, da vida e do mundo. É claro que para um certo fetichismo idolátrico a manutenção da qualificação de algumas entidades é vital, mas nós devemos nos perguntar a respeito do que é necessário para a integridade da vida espiritual diante de Deus somente, lembrando que tudo foi feito por Ele e para Ele.
Normalmente essas considerações metafísicas contribuem sobretudo no testemunho do dom da Presença, porém eventualmente encontramos alguma elaboração que ajuda no entendimento de outro dom, como o do Louvor na seguinte passagem:


A amabilidade da finalidade última contém todos os bens que compõem o campo completo da Apetição dos amantes. Não existe separação, composição, e muito menos relação de dependência, entre o Bem da última finalidade (que é o que classificamos de Escolhido, ou de condição de Coruscância da mônada criada, isto é, a vida paradisíaca), e quaisquer bens particulares como produtos de quaisquer causas separadas. Fica óbvio que a integridade desse sistema funciona com muito mais simplicidade e perfeição sob uma ontologia monádica, e é por isso que esse tipo de metafísica é preferida sobre outros. Esse é um ponto que eu talvez nunca tenha deixado tão claro quanto deveria: a escolha da ontologia monadofílica não é um capricho ou uma preferência primária, mas é uma decisão tomada com o desejo de reproduzir na descrição da realidade a simplicidade da finalidade última conforme o que é revelado pela Boa Notícia. Algumas filosofias impedem que essa simplicidade seja assumida por hipótese, mas o sistema scotiano já no Século XIII tinha a flexibilidade suficiente para isto, para não se mencionar o neoplatonismo plotiniano, e até certo ponto inclusive a filosofia de Agostinho. Em resumo, em Deus nenhum bem particular pode ser perdido, porque todos estes já estão Nele por definição, e já são experimentados como reflexos da sua Glória imediatamente, como sempre foram, pois não há Percepção senão do reflexo do Ser da Unidade.
Num outro ponto encontramos uma passagem que implica no problema da voluntas ordinata no âmbito da idéia do Voluntarismo de que Scot já foi acusado várias vezes:

Com clareza o nosso autor aponta que a realidade do imperfeito ou do mal requer que a vontade divina tenha deliberado sobre a possibilidade do menos perfeito por alguma razão excelente (que é a Bem-Aventurança dos salvos), caso contrário o mal seria realizado necessariamente, o que é contraditório com a essência divina. A liberdade para o mal contingente, por sua vez, produz o maior bem possível através do dispositivo da Eleuteriodiceia, já que os amantes não podem escolher o amado se não forem livres para não fazê-lo, daí a necessidade de uma experiência com algum grau de imperfeição, ou como dizemos, com algum grau de Mistura. Sidney Silveira afirma na sua introdução ao trabalho de Scot que o argumento do autor provaria a inviabilidade da hipótese do “melhor mundo possível” de Leibniz, mas a meu ver a sua leitura foi equivocada justamente desconsiderando esse bem mais perfeito ao qual a Vontade divina move todas as coisas. Se a liberdade é requerida para esse maior bem, então um mundo contingentemente imperfeito para a realização daquilo que Deus ordena para o maior bem futuro é o melhor bem possível na sua condição de meio para uma finalidade. E um cristão não deve encontrar neste mundo justamente um meio para um fim? Como meio, portanto, este pode ser o melhor mundo possível, e se não fosse o erro não seria do pecado da desobediência humana, mas da Providência divina, o que é absurdo.
Revalidando e consolidando o entendimento a respeito da Onisciência divina, o autor afirma:

Há um subsídio teológico escritural onde se afirma que Deus sempre conheceu as coisas antes de tê-las feito, e que depois de as ter feito as conhece também, ou de novo, isto é, como futuros contingentes contidos na dimensão temporal que são simultaneamente intuídos no plano da Eternidade. Os dois conteúdos são plenamente dominados, mas de modo diverso: a priori há o domínio das essências e dos acidentes possíveis no campo da Possibilidade Universal, e a posteriori há o domínio dos futuros contingentes atualizados no tempo.
Em outra passagem o autor trata de tema que já tivemos a oportunidade de estudar quando comentei a sua outra obra A infinitude de Deus, isto é, a total independência da causa primeira na sua ação criativa, e aqui com ênfase no detalhamento de todos os aspectos da Criação:

Isto é mais relevante ainda na consideração da suposta exclusividade do efeito de alguns acidentes, como a caracterização genética na geração dos corpos corruptíveis. Ora, qual é a fonte primária de todas as possibilidades de variações do acervo genético completo da espécie humana? Não é o mesmo Logos divino? Se as informações genéticas, inclusive nas suas inumeráveis possibilidades combinatórias, não estivessem presumidas de antemão no campo da Possibilidade Universal dominada pelo Intelecto divino, de onde suas potências seriam extraídas para que existisse alguma atualidade? Então o fato é o seguinte: a única coisa que depende da ação humana, ou de qualquer criatura, para que venha a ser de modo que sem essa ação não poderia ser de modo algum, é o erro. Isto por definição e sem exceções, caso contrário se destruiria a integridade da essência divina.
Por fim convém citar integralmente os números do 157 até o fim (XI Conclusão) que trata da Unidade do Primeiro Princípio, que corrige o erro de multiplicação típico de alguns sistemas gnósticos:


Que isso baste sempre para a memória dos cristãos que podem ser injustamente acusados de idólatras de uma pluralidade de deuses, quando muitas das melhores, senão mesmo as mais infalíveis, entre as afirmações da Unidade de Deus foram testemunhadas por cristãos em todos os tempos, e até de modo mais firme com a idéia da suficiência da Trindade, como já tivemos oportunidade de falar.
Particularmente é preciso rejeitar os erros gnósticos que foram importados de fontes diversas e que replicam todas as falsidades a respeito da suposta dependência entre uma pluralidade de princípios, como já vimos na história mais antiga. Isso inclusive desde Platão com a idéia de que o Uno dependeria da Díade para gerar o Múltiplo, etc., algo que só foi corrigido de certo modo com Plotino com a noção das processões hipostáticas, o que ainda é algo complexo demais em comparação com a simplicidade e elegância da reflexividade monádica, por exemplo.
Duns Scot se insere nessa história com uma contribuição honrosa, instrutiva e inspiradora.
Nota espiritual: 5,5 (Calaquendi)
| Humildade/Presunção | 5 |
| Presença/Idolatria | 7 |
| Louvor/Sedução-Pacto com a Morte | 6 |
| Paixão/Terror-Pacto com o Inferno | 5 |
| Soberania/Gnosticismo | 5 |
| Vigilância/Ingenuidade | 5 |
| Discernimento/Psiquismo | 6 |
| Nota final | 5,5 |
