Descartes, tido às vezes como um Sócrates moderno reinaugurando a Filosofia no seu tempo, partiu da certeza da própria dúvida, análoga à ignorância socrática, para fundar seu método filosófico. Cético contra a sabedoria alheia e a própria, ganharia mais pontos de Vigilância se não fosse o seu testemunho de Ingenuidade a respeito do ideal racionalista da evidência que não pode justamente ultrapassar entes de razão e ser aplicado aos objetos mais gerais da Filosofia a partir dos conhecimentos obtidos por experiência. Assim como ocorreu com aqueles gregos antigos, os conhecimentos exatos dos entes de razão lhe animaram a buscar uma verdade científica para além da opinião. O peso da ainda forte teologia herdada do império milenar da Igreja Católica requeria a busca de novos ares, mais frescos e livres. Mas seria necessário ainda um Kant para mostrar os limites da razão humana com sua Crítica da Razão Pura, inspirado pelo anti-racionalismo do empirismo de Hume, que revalorizou a experiência contra a pura abstração. Descartes ainda não consegue desenhar o quadro completo desde o seu racionalismo.
As precauções do ceticismo de Descartes servem como testemunho da Vigilância, com a ressalva do cuidado com o excesso da sua confiança no racionalismo. Para além disso, a favor da Soberania, nosso autor ensina que o pensamento a respeito das crenças é diverso do pensamento a respeito da sua posse:

Na verdade, o benefício deste testemunho é duplo. Por um lado auxilia no reconhecimento da possibilidade da Soberania na crítica da origem, credibilidade e viabilidade das crenças, e por outro lado auxilia no cuidado com a recepção das opiniões alheias, justamente porque é excepcionalmente raro encontrar seres humanos que sejam críticos com relação ao pensamento sobre suas próprias crenças. Já no início do Discurso do Método, Descartes já foi irônico (lembrando desde este ponto Sócrates) afirmando que o bom senso deve ser a coisa mais bem distribuída no mundo, já que todos pensam não precisar de mais bom senso do que já possui. Essa precaução é muito valiosa e conveniente.
Lembremos que a obra se separa em seis partes, das quais a Quarta Parte é de longe a mais importante, profunda e decisiva. A filosofia cartesiana partirá para todas as suas futuras explorações com base nesse fundamento metafísico originado neste segmento desta obra, que diz respeito à necessidade do ser da alma e de Deus.
Na sua consagradíssima e imortal sentença a respeito da incontornável existência da coisa pensante, “cogito ergo sum“, o filósofo seguiu a pista do método da Dúvida Total até encontrar a evidência do inegável:

Quem conhece a filosofia antiga, e mesmo a medieval, sabe que a prioridade do imaterial, ou metafísico, sobre todo o resto é uma noção clássica e básica na história das idéias, consolidada desde o idealismo platônico, o que G. Reale chamou de “a segunda navegação”. Algo, porém, complicou a transmissão das idéias de tal modo que Descartes se viu no papel de ter que resgatar esse tipo de evidência como premissa para a sua própria investigação. Como pode uma noção tão elementar não ser imediatamente evidente na cultura européia já experimentada em dezenas de séculos no idealismo? Essa questão exige uma investigação que não temos tempo de fazer agora, e talvez nem as condições, para dar uma resposta digna.
O que importa é que o nosso filósofo está afirmando que a sede da consciência é inegável por trás de qualquer experiência possível, inclusive a mais regressiva e cética de todas, que é a de seu método da Dúvida Total. A persistência da entidade que nega qualquer certeza perdura e por fim não consegue negar a si mesma na sua instância intelectual. Descartes redescobre assim a alma como substância pensante (res cogitans), que é um modo de conhecer o ser da Mônada pela via da evidência da operação intelectual. O que importa é reconhecer que esta substância não possui materialidade ou corporeidade na sua simplicidade, pois qualquer experiência fora da Apercepção da Mônada pode fazer parte daquilo que é condicionado por uma causa externa e questionável, mas nunca a própria noção de sua identidade e integridade.
Em seguida o autor reflete que se sua substância pensante é inegável, outra mais perfeita e plena é necessária, do contrário a sua estimativa do Bem seria inviável, pois não teria origem:



Monadofilicamente, afirmaríamos que a Apetição exige a instância do Sumo-Bem que não pertence à entidade da mônada criada. Só Deus poderia explicar nossa agência moral no desejo de um Bem que nunca foi realizado plenamente. Outro modo de alcançar o mesmo resultado e mais comumente usado é reconhecer que o finito requer o infinito, ou ainda que as causas intermediárias requerem uma causa primeira não causada que a tudo move sem ser por nada movida.
Reparem que Descartes não está inventando nada. Mas seu breve Discurso do Método é uma espécie de redescoberta das coisas essenciais que deveriam mover a Filosofia a se tornar um discurso mais simples e direto a respeito do que é essencial. Ele vinga, de certo modo, os críticos da filosofia medieval que anteciparam futuros problemas com a excessiva aristotelização da cultura filosófica, como a oposição de Bernardo de Claraval contra Pedro Abelardo. A Lógica por si jamais será antifilosófica, mas ela pode ser empregada num tal nível de sutileza e abstração que a hierarquia das noções mais relevantes fica perdida no meio de montanhas de discursos, demonstrações, provas, etc. A geração de Descartes atua no contexto de uma reação dialética contra os excessos da Escolástica.
O autor prossegue afirmando algo que ecoa a Metafísica aristotélica e as lições de comentadores como Tomás de Aquino, Duns Scot ou Francisco Suárez, isto é, que o conhecimento sobre o ser divino deve ser mais necessário e certo que o de qualquer outro tipo:
Psiquicamente, diríamos que todo assentimento com a integridade da estrutura da realidade requer uma crença prévia na bondade de uma fonte coerente que provisione essa firmeza. Esse objeto primário de crença nunca foi e nunca será provado. E nem os gnósticos escapam disso: sua Gnose, afinal, é uma suposta verdade infalível por trás de vários véus de mentiras e ilusões, etc. Simbolicamente encontramos referências como na Alquimia, onde não se pode obter nenhuma estrutura apenas com o solvente mercurial, bem como na ficção o iniciado nos mistérios gnósticos também sempre tem que descobrir alguma verdade que aceitará como definitiva sem garantias, como Neo tomando uma pílula azul no “deserto do mundo real” que lhe é apresentado por Morpheus, em Matrix, pois a continuidade indeterminada do efeito pílula vermelha teria apenas um efeito destruidor cada vez maior, até enfim dissolver e eliminar a coerência interna da identidade do próprio Neo. O que Descartes afirma é o seguinte: é necessário um Primeiro Princípio, ou um termo inicial, que nos garanta a veracidade da realidade que experimentamos. Por esta razão não importa tanto descobrir em qual nível de Simulação ou de ilusão nos encontramos, mas somente reconhecer que sempre vivemos diante da instância máxima que domina e governa todos os níveis de realidade possíveis, ou seja, que sempre vivemos na Presença de Deus.
Na Quinta Parte da obra o autor detalha alguns entendimentos sobre a alma, com a finalidade de distinção entre os homens e os animais, como ele mesmo explica no último parágrafo:

Ora, isto não seria necessário, e nem mesmo a defesa da imortalidade da alma, se o corpo ou a matéria não possuíssem substancialidade suficiente de modo que o composto tivesse que ser justificado. Essas dificuldades surgem já de uma certa traição ao próprio método cartesiano: intuída a alma pensante, sabe-se que ela experimenta algo que se manifesta como percebido, mas isto não é mais que um fenômeno. Kant diria: você representa essa realidade exterior, mas não poderia conhecê-la em si mesma. E depois a Fenomenologia avançará numa especulação a esse respeito. Descartes tem problemas análogos ao de Aristóteles com uma alma que forma um composto com um corpo que tem que ser algo além de um objeto de percepção. Embora, cá entre nós, a definição aristotélica da alma como forma do corpo é mais perfeita do que a dualidade cartesiana, porque facilita o recurso da analogia.
Na Sexta Parte, a última da obra, Descartes se mostra uma pessoa pequena diante de suas próprias capacidades como metafísico, o que novamente reforça o que já tantas vezes observamos antes: que a Vontade é muito mais determinante da ação humana do que o Intelecto. Vejamos um trecho significativo:


Para quem queria ser tão livre de preconceitos e limites artificiais, nosso filósofo até que se mostra bastante dócil e submisso às noções gerais de legitimação do Sistema da Besta. Ele quer participar e quer ser reconhecido socialmente, embora tema assumir isso francamente. Mais nobre seria afirmar seu desejo de glória do que mentir. É a velha vaidade das vaidades.
Por suas afirmações na última parte da obra o autor perde um tanto do valor positivo de testemunho da Vigilância que tinha alcançado. E também se justifica a glosa de religiosos contra as intenções do autor, o que é uma pena, porque sua metafísica poderia se tornar uma excelente filosofia cristã. O que não impede que outros tenham seguido melhores caminhos inspirados por Descartes, graças a Deus.
Nota espiritual: 6,0 (Calaquendi)
| Humildade/Presunção | 6 |
| Presença/Idolatria | 7 |
| Louvor/Sedução-Pacto com a Morte | 6 |
| Paixão/Terror-Pacto com o Inferno | 5 |
| Soberania/Gnosticismo | 7 |
| Vigilância/Ingenuidade | 6 |
| Discernimento/Psiquismo | 5 |
| Nota final | 6,0 |



