Com sua costumeira homenagem filosófica ao dom da Presença, nosso autor dará seus melhores testemunhos a respeito da qualidade do ser divino e de suas obras, de modo quase sempre impecável.
Contra o voluntarismo, Leibniz afirma que Deus conhece o bem que então deseja, como se uma coisa fosse posterior a outra, o que não existe em Deus. Mas essa é uma posição comum e respeitável, já que entre o erro de uma arbitrariedade irracional e o de uma instância determinista sobre a agência da liberdade divina, parece que o primeiro erro é pior, porque destrói o conhecimento. Se o filósofo quisesse, ele poderia desenvolver essas minúcias a favor inclusive do seu argumento, mas não foi o caso. Em muitas passagens deste Discurso de Metafísica a brevidade não permite tais aprofundamentos. Aliás, em muitas obras de Leibniz ficamos com a impressão de que ele estava com alguma pressa.
No Capítulo VII encontramos duas teses importantes da metafísica leibniziana:

Quais são essas teses? São: (1) que o que entendemos como natural é um costume e não uma Lei imutável, pois a natureza se submete ao império de uma Lei superior, que é o ordenamento divino com vistas ao bem maior; e (2) que o que é um mal em essência pode ser bom em acidente, desde uma Harmonia Preestabelecida que provisiona todos os futuros contingentes na melhor combinatória possível gerada pelo Intelecto divino. Entenda-se bem que este segundo item não é uma legitimação da Mistura. É uma tolerância permissiva em face do melhor resultado já calculado pela cognição de Deus, ou seja, o mal é tolerado temporariamente de modo processual, com vistas a um fim, e nunca de modo definitivo.
No Capítulo VIII localizamos uma evidência de como a Monadologia leibniziana foi herdeira e continuadora da filosofia Escolástica:


O total pertencimento do predicado ao sujeito ganhava novos contornos com o Principium individuationis formal de Duns Scot, algo que Leibniz aprende e ao que dá continuidade. A matriz ancestral do futuro Idealismo Alemão estava então embrionariamente contida na filosofia franciscana do Medievo.
Os pentelhos e amantes de discórdia poderão afirmar que se a Haecceitas de Scot foi uma base da mônada de Leibniz, que então a filosofia tomista foi preterida pelo alemão. Mas esse tipo de polêmica não resiste ao universalismo desses grandes filósofos que estão sempre conversando entre si acima das disputas tolas entre seus supostos seguidores.
O Capítulo IX já o prova imediatamente:


Não só não é necessário negar o tomismo, como é possível extrair dele, por inspiração da tese a respeito da individualidade específica das substâncias separadas, um modelo para a singularidade de todas as substâncias simples.
Essa ideia é uma das mais geniais de Leibniz, e a meu ver é a única maneira de se resolver a questão da Relação Uno-Multiplo sem negar o nível de entidade adequado a cada parte. O filósofo chega mesmo a afirmar que a mônada criada é equivalente em potência à divina (“traz consigo o caráter”), diferindo apenas que o que na criatura é virtual ou dormente na maior parte, é totalmente atual em Deus como infinito em ato.
Leibniz faz o que Descartes não pôde ou não quis fazer: justiça aos Escolásticos e uma ponte viável entre os dois mundos, o antigo e o moderno. O Capítulo XI é dedicado a isto:

Observem então como é possível que a divulgação da obra de Leibniz tenha sido prejudicada por preconceitos muito mais profundos do que se poderia imaginar inicialmente. Seu trabalho desmontava a fantasia iluminista da ruptura entre a idade das luzes e das trevas. E, se tivesse mais sucesso e influência, sua obra poderia ter servido como prevenção contra várias guerras e revoluções europeias, para não falar de todas as consequências derivadas do mito da ruptura. A verdadeira obscuridade, quem diria, provinha dos iluministas, e foi daí que saiu tudo o que haveria de caótico no mundo moderno de uma ciência sem Deus e sem metafísica. Alguns culparão Kant, mas estou mais propenso a desconfiar de franceses e ingleses, que aliás foram os maiores adversários ideológicos da filosofia de Leibniz.
No Capítulo XIV temos a doutrina da qual sou tão devedor na minha filosofia, a respeito da ontologia e epistemologia das mônadas, para não falar da Mútua Representação:


A simplicidade desse pensamento mostra como o mecanicismo de Leibniz às vezes parece artificial, ou ao menos divorciado da sua metafísica mais profunda. Talvez o filósofo fosse mais sitiado culturalmente do que imaginamos, e só por isso não pudesse romper de modo completo e ostensivo com todo o materialismo e dualismo. Quando lemos esta parte de sua obra isto nos parece claro: que a composição dos complexos é desnecessária, bem como o ser das mônadas irracionais. Talvez ele tenha experimentado certas ideias a um tempo (como aqui, em 1686, aos 40 anos de idade) e só depois tenha voltado com maior empenho na consolidação dessas coisas, como na Monadologia de 1714, já aos 68 anos de idade, não muito antes de morrer (e aliás sem publicar, pois a primeira edição veio em 1720, quatro anos depois de seu falecimento).
Conforme o autor se aproxima do fim de seu Discurso de Metafísica, sua linguagem se aproxima mais da teológico-mística, mostrando novamente que uma boa ontologia filosófica entra em acordo com a linguagem das coisas espirituais, pois tudo que sobe converge. No Capítulo XXVIII localizamos testemunhos poderosos:


A cognição das criaturas imita o Ato Puro divino, pelo qual a Substância Simples, ou mônada, conhece a si mesma por reflexo, de modo que em nós o Uno experimenta a si mesmo intelectualmente através da Percepção do Múltiplo. É importante frisar, porém: o intelecto agente é localizado, ao contrário do citado erro dos averroístas, pois somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Em suma, Deus sempre teve a felicidade de conhecer plenamente a Si mesmo, e o que faz ao criar mônadas limitadas é compartilhar da sua Glória mediante o processo da Percepção delas que relaciona sua Unidade de ser com a Multiplicidade das formas.
O mais importante, no que Leibniz aponta, é tanto a realidade da exclusividade da experiência de Deus através das coisas, quanto a dependência da Graça divina para a realização desta experiência. Isto destrói totalmente a Idolatria, e é por isso que a Monadologia é a ontologia mais espiritualmente conveniente de todas.
Quando escrevi a introdução da minha Monadofilia publicada em 2022, posso ter causado estranhamento ao afirmar que João amava João na forma de Maria, mas isto ainda era menos exato do que afirmar que, na verdade, João ama Deus pelo amor de João na forma de Maria. A linguagem é meio burra, porque dialogicamente parece multiplicar seres que na realidade são mais simples, e é isto que Leibniz está ensinando: só existe a mônada criada e a Mônada divina, como uma Lua e um Sol. A complexidade que parece derivar da Multiplicidade é desfeita ao se considerar que ela é apenas um reflexo. Igualmente importante, entretanto, como disse, é considerar que a Percepção não existe para a mônada criada, senão pelo ato divino que ilumina o Intelecto da criatura e atualiza nela o ato cognitivio.
Em breve: tudo o que conhecemos sempre foi Deus e sempre será Deus, e apenas através de Deus.
Se isto parece reproduzir diretamente uma idéia da mística cristã, não é por acaso. No Capítulo XXXII, corajosamente, o autor não se intimida a citar, como filósofo moderno no meio de uma cultura iluminista que chamava a Idade Média de “trevas”, um testemunho espiritual:

A pessoa citada é Teresa D’Ávila, Doutora da Igreja Católica. Não importa endossar culturas ou instituições, o que importa é a verdade. O amante da verdade se aproveita de tudo o que a evidencia para si. E o que está em jogo aqui não é uma razão católica contra uma razão iluminista. O que importa é verificar a autonomia e a integridade da Substância Simples que só pode ser modificada por si mesma ou por Deus. Vejam como chega longe aquele princípio que descrevi da vida espiritual como pura vida interior, algo que poderia ser erroneamente julgado como um tipo de psicologismo. Ora, não existe dualidade de corpo e alma, só existe a Substância Simples, e ela só pode se relacionar consigo própria e com Deus, evidentemente. Até mesmo Descartes sabia disso, até o ponto da sua segunda meditação, enquanto partia da evidência do cogito para chegar no infinito em ato com Deus. Como sempre, o que estraga é a atribuição de substancialidade ao que está fora justamente dessas duas realidades metafísicas, a alma e Deus, ou ainda, a mônada criada e a Incriada. Leibniz, ainda que seja racionalista e mecanicista até certo ponto, alcança ápices metafísicos que já significam uma liberdade total com relação ao dualismo cartesiano, que é uma forma de Idolatria. Talvez o autor só não pôde assumir integralmente o que acreditava a esse respeito, para não perder o respeito e prestígio, ou por alguma fraqueza desse tipo. Isso só ressalva mais ainda, para nós, a importância da independência de pensamento que requer uma certa indiferença à posse dos meios materiais de subsistência e à reputação social.
No Capítulo XXXVII, o último da obra, o autor parece finalmente ceder de vez à linguagem das coisas espirituais para dar um testemunho mais completo do seu pensamento metafísico, o que é muito louvável numa pessoa como Leibniz, cercado de principados e potestades, porque mostra que esse convívio com o poder e o prestígio não corrompeu a sua capacidade de afirmar as maiores verdades, por mais que fossem inconvenientes:


Só causa estranheza que um filósofo cristão consciente da noção agostiniana da diferença entre Cidade de Deus e Cidade dos Homens tenha perdido tanto do seu tempo e dos seus dons com a segunda. Mas não deixou de ilustrar a virtude da primeira, o que já é grande coisa.
Nota espiritual: 6,7 (Calaquendi)
| Humildade/Presunção | 6 |
| Presença/Idolatria | 9 |
| Louvor/Sedução-Pacto com a Morte | 8 |
| Paixão/Terror-Pacto com o Inferno | 8 |
| Soberania/Gnosticismo | 6 |
| Vigilância/Ingenuidade | 5 |
| Discernimento/Psiquismo | 5 |
| Nota final | 6,7 |

