True Detective, série por Nic PIZZOLATTO (1T)

Os detetives Hart e Cohle atuam na investigação de homicídios no Estado de Louisiana, nos EUA. A série começa com um crime de características bizarras, ritualísticas. Os dois tentam descobrir o assassino antes que o caso saia da sua incumbência.

Como yin e yang, os parceiros se opõem nas suas visões de mundo, e no contraste de sua convivência os espectadores são satisfeitos na representação e embate das suas próprias convicções. São os dois braços do Ouroboros em suposta disputa: Hart é a Tradição exotérica hipócrita, e Cohle é a Revolução esotérica destruidora. Pessoas ingênuas serão convencidas de que Cohle é uma alma mais profunda, mas tudo o que ele faz é usar o seu jus sperniandi com algum requinte pseudofilosófico. O fundamento de toda a retórica de Cohle é o seu trauma de origem (a perda da filha num acidente, e o subsequente colapso do seu casamento) e, por implicação, a sua crença num Bem ausente que ele tenta negar como princípio, mas do qual nunca pode fugir, como ocorre aliás com qualquer niilista ou cacólatra. É claro que a decadência de Hart, que sucumbe nas suas mentiras, é algo apreciável, mas não torna Cohle um profeta.

Pelas escolhas artísticas da série, logo fica claro que o que temos aqui é Hollywood dando novamente mais testemunho das trevas do que da luz. Sem novidade, sabemos que essa turma é empregada pelo diabo faz tempo. A única questão que fica pendente até o final da primeira temporada é: além de Idolatria, Terror, Gnosticismo e Psiquismo, também darão testemunho da Ingenuidade? Ou seja, os crimes ritualísticos serão relacionados com uma prática de ocultismo real, principalmente em conexão com os poderosos (líderes políticos, religiosos, etc.), ou não? É a única questão que precisamos aguardar para entender até onde a série vai chegar.

Cohle, que deveria representar o auge da consciência humana na série, é apresentado como um personagem mais ou menos arruinado espiritualmente, mas no nível em que ele faz suas afirmações infelizmente não é possível eximir a sua liberdade de escolha, exceto por pura misericórdia. O que quero dizer: se ele tivesse a profundidade que pretende ter, o personagem deveria ser capaz de uma apreensão fria e mais inteligente da realidade, principalmente livre do mal contingente que ele quer nos convencer de que é o mais apto a encarar sem fingimentos, mas ao qual ainda se deixa impressionar demasiadamente. É verdade que todas as mentiras de Hart e da sua sociedade respeitável são insuportáveis, mas o triunfo do Mal ou do Caos também é mentiroso, ou pelo menos não passa de ser uma crença entre outras. É uma escolha. Nesse sentido a série é profundamente gnóstica e não oferece nenhuma alternativa: ou você mente para si mesmo como Hart, ou acredita que obteve uma compreensão profunda da realidade, quando na verdade nunca escapa de sua liberdade de crer como quiser.

No sentido mais psicológico e mundano, de certo modo Hart é mais maduro que Cohle: se você não quiser realmente crescer espiritualmente, é bom que se conforme com as estruturas simbólicas fornecidas por instituições como a Família, Religião ou a Nação, porque é isto que manterá a integridade da sua psique. Em outros termos: não se pode atravessar o vale da morte sem Deus. Ou você atravessa amparado por uma representação do sagrado nessas instituições, ou o faz por uma experiência espiritual direta. Sem Deus o peso da existência é sempre insuportável. Cohle desfez as mentiras que sustentavam Hart, mas não adquiriu verdades boas o suficiente para ele mesmo fazer a sua travessia com sucesso (isto é, com o Deus verdadeiro), e ficou perdido no meio do caminho. Afinal, se há algo de bom em se libertar das mentiras do mundo, só pode ser para adquirir verdades sagradas que honrem a verdadeira estrutura da realidade. Mas Cohle não alcança essas coisas, porque quer se deixar impressionar pelo Mal, etc. Não que ele tivesse que ter forças suficientes para encarar o mal no mundo, pois isso foi o que o derrotou. O que ele precisava era da força do Espírito Santo, e o dom de Vigilância o ampararia. Quando, por exemplo, ele dá suas razões antinatalistas logo no princípio da série, em nenhum momento ele parece querer usar essa inteligência supostamente tão aguçada para reparar que ele próprio se colocou à disposição do Mal quando decidiu casar e ter uma filha, e que essa foi a origem do seu trauma e de toda a sua visão de mundo, literalmente o seu Pecado Original. Se ele não tivesse acreditado ingenuamente numa felicidade tão falsa, ele não teria se colocado de modo tão indefeso nas mãos dos poderes das trevas, e então não precisaria passar o resto da vida num suposto esclarecimento que entende tudo menos a si próprio e o seu erro de origem.

Um traço sinistro da série é a associação dos produtos da Vigilância a uma visão tenebrosa da realidade, quando o efeito desse dom espiritual deveria produzir o resultado inverso. O espectador é encurralado: ou você vive num conto de fadas obviamente falso, que é o mundo de Hart, ou vive no “mundo real” de Cohle, onde os poderosos são adoradores do diabo e o Mal e o Caos triunfam. Ou você é ingênuo como Abel, ou é malicioso como Caim. Ora, é óbvio que a inocência é sempre preferível, mas quem desejará adquirir com ela a Ingenuidade? A solução é a superação da dialética gnóstica do Ouroboros com a Revelação do Evangelho de Jesus Cristo. Mas isto não aparece nem como insinuação em True Detective. Não digo com isso que o seu testemunho da Vigilância seja falso, mas não atinge patamares mais excelentes. Pois os dons espirituais devem crescer juntos e se auxiliarem mutuamente. A série cria uma armadilha, amarrando uma aparência de Vigilância com a Idolatria, o Gnosticismo e o Psiquismo. Mas isso não pode justamente ser a Vigilância verdadeira, pois o dom real desfaz a mentira dos poderes malignos, reconhecendo a supremacia do governo divino sobre todas as coisas.

Conforme chegamos ao fim da primeira temporada algumas coisas ficam mais claras. Cohle é mórbido e cínico, mas não ao ponto de desprezar o Bem. Igualmente, Hart é um hipócrita moralmente derrotado, mas não totalmente arruinado. Juntos eles podem ainda desejar a Verdade e a Justiça. Se o grande mal ancestral está acima de suas capacidades, isto é, o Pecado Original como realidade teológica e filosófica, pelo menos a maldade localizada dos crimes que investigam lhes mobilizam numa boa direção. As debilidades espirituais da série são finalmente compensadas com a investigação dos Tuttle, a poderosa dinastia política na Louisiana, envolvida em projetos de religião e de educação no Estado.

O máximo que se pode conceder para a Vigilância são 7 pontos. O envolvimento dos Tuttle em um círculo de praticantes de abusos, torturas e assassinatos ritualísticos, e os acobertamentos por parte das lideranças políticas, religiosas e policiais, tudo isso tem valor positivo. Mas o que faltou? Para chegar nuns 8 pontos, faltaria mostrar que o envolvimento dos poderosos com práticas religiosas não é acidental, mas essencial. Não é que os poderosos tenham gostos e práticas exóticas. É o contrário. A prática dos mistérios é que lhes abre o caminho para possuir o poder, fazendo seus acordos com os espíritos infernais. Para chegar em 9 pontos, faltaria subir mais um nível ainda na perspectiva da Vigilância, observando que o envolvimento com bruxaria e satanismo não era apenas a prática de alguns poderosos, como os Tuttle, mas que todos os grandes poderes do mundo possuem envolvimento em algum grau com as mesmas práticas, ou seja, reconhecer o Sistema da Besta. E, por fim, para alcançar 10 pontos seria preciso afirmar que a origem de todos os males é o Pecado Original, o Pacto Ouroboros.

A série termina com os investigadores reabrindo o caso antigo e encontrando o verdadeiro assassino da primeira vítima. Nossos protagonistas sobrevivem ao confronto. Cohle se recupera e dá o testemunho de uma visão ou sensação de algo além da sua fria morbidez de sempre, especialmente da continuidade do amor de sua filha. Isto poderia acabar bem melhor, no sentido da Presença, mas ao menos é algo mais benéfico. Há a menção de uma vitória da Luz contra as Trevas, mas esse testemunho é muito fraco.

Nota espiritual: 3,9 (Moriquendi)

Humildade/Presunção5
Presença/Idolatria3
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno2
Soberania/Gnosticismo3
Vigilância/Ingenuidade7
Discernimento/Psiquismo2
Nota final3,9

Deixe um comentário