As epopeias que recebemos dos povos antigos geralmente narram os mitos que serviam de base cultural para a legitimação da prática do costume desses povos ancestrais. Não é abusivo, desde a nossa perspectiva cristã, especialmente qualificada pela ciência do Pecado Original e suas consequências, conforme Gênesis 3, entender que essa mitologia narra o “outro lado da história”, por assim dizer. Isto é, se os Filhos de Adão, o Traidor, o Pecador, receberam e perpetuaram a sua cultura de origem, esta se tornou a Religião do Homem centrada especialmente na justificativa e sacralização do próprio Pacto Ouroboros. Se Tubalcaim ou Nimrode produziram uma cultura que sobreviveu de algum modo até a nossa época, esta seria a cultura ancestral da Tradição Primordial.
Quando verificamos o conteúdo da Epopeia de Gilgamesh, que nos veio desde a civilização dos Sumérios, encontramos possivelmente um testemunho cultural o mais próximo possível, no tempo, daquela Tradição Primordial retransmitida pelos Filhos de Adão de geração em geração. Este testemunho provavelmente falará das idéias e dos valores caros à Cultura da Usurpação. Vejamos.
Sinopse da Epopeia de Gilgamesh
A Epopeia de Gilgamesh é o mais antigo poema épico preservado da humanidade, originário da Mesopotâmia entre os séculos XXI e XII a.C. A obra narra a trajetória de Gilgamesh, rei de Uruk, um governante de força extraordinária e natureza híbrida — parcialmente divina e parcialmente humana — cuja potência inicial se manifesta como tirania e desmedida. Seu poder, não moderado por sabedoria, provoca sofrimento à cidade e exige intervenção divina.
Aqui precisamos situar as coisas de acordo com o conhecimento da Revelação. Sabemos que existiu uma experiência de hibridismo pelo cruzamento de anjos caídos, ou “filhos de deus”, e seres humanos, as filhas dos homens. Isso aparece de modo resumido na Bíblia consagrada, de modo mais extenso e detalhado em documentos como o Livro de Enoque. O resultado dessa experiência teria sido o surgimento dos gigantes, que tomaram a identidade cultural dos “heróis” da Antiguidade. A Revelação, porém, afirma que os deuses das nações são demônios, e que esses Nefilim foram criaturas perversas à serviço do mal. Uma das principais motivações do Dilúvio teria sido o extermínio dessa raça híbrida, ou ao menos a sua redução, já que conhecemos gigantes depois do Dilúvio. O Rei Davi teria enfrentado e derrotado um desses descendentes dos híbridos Nefilim, o famoso Golias. Gilgamesh seria mais um desses “descendentes dos deuses”, ou, na verdade, uma criatura algo demoníaca. Se era necessário alguma “sabedoria” ou “moderação”, seria apenas para que o reinado desse tipo de usurpador se tornasse de algum modo sustentável, principalmente tendo em vista os objetivos últimos dos espíritos infernais, que seria a construção de uma civilização avançada, algo que levaria milênios.
Como resposta, os deuses criam Enkidu, um ser originalmente selvagem, destinado a confrontar Gilgamesh. O conflito entre ambos se converte em amizade profunda, e essa amizade marca o início da verdadeira humanização do herói. Unidos, enfrentam perigos míticos que simbolizam a transgressão dos limites impostos aos mortais, culminando em punição divina e na morte de Enkidu.
A perda do amigo lança Gilgamesh em uma crise existencial radical. Confrontado com a realidade da morte, ele abandona a busca por glória e inicia uma jornada em direção à imortalidade. Ao encontrar Utnapishtim, sobrevivente do Dilúvio, Gilgamesh aprende que a vida eterna não pertence aos homens. O fracasso final dessa busca não é derrota, mas aprendizado: ao retornar a Uruk, Gilgamesh reconhece que o sentido humano reside na aceitação da finitude, na construção da cidade e na permanência simbólica das obras e da memória.
É curioso que o Chat GPT tenha afirmado que Gilgamesh abandonou a busca da glória, quando na verdade a obsessão com a imortalidade tinha o valor único de garantir que a experiência desta nunca perecesse. O tirano Gilgamesh, punido não pelos “deuses”, mas pela Providência verdadeira, quer derrotar a morte a todo custo justamente para manter o seu reinado tirânico para sempre, mas aprende que não tem o poder de fazê-lo, pois só Deus, o verdadeiro, é o Senhor da Vida e da Morte. Aprendemos aí, novamente, o valor do Decreto da Maldição de Gen 3: se Deus não tivesse determinado a morte das Obras da Carne, este mundo se tornaria um verdadeiro inferno sem fim por ação dos espíritos demoníacos e de seus servos.
A solução que Gilgamesh encontra é a da continuidade do império da Usurpação, especialmente na forma da perpetuação do Pecado Original, e da transmissão da cultura dos Filhos de Adão aos descendentes. É assim que os inimigos de Deus se tornam construtores de impérios, civilizações, e culturas inteiras de Legitimação da Mistura.
A verdadeira imortalidade, porém, seria revelada pelo Filho de Deus, Jesus Cristo, através da Ressurreição. Esta não está acessível a Gilgamesh e sua laia de construtores de civilizações. Há uma Obra divina em andamento, de santificação, ou separação: dos habitantes da Cidade de Deus, e dos habitantes da Cidade dos Homens, do Trigo e do Joio, das Ovelhas e dos Bodes, dos Inquilinos e dos Moradores, dos Amorosos e dos Furiosos, etc.
Teses filosóficas da Epopeia de Gilgamesh
1. A finitude é a condição constitutiva do humano
A obra afirma que a mortalidade não é uma punição acidental, mas a própria essência da existência humana. Gilgamesh não falha por falta de mérito, mas porque a imortalidade é ontologicamente incompatível com a condição do homem. A sabedoria não consiste em escapar da morte, mas em viver plenamente dentro de seus limites.
Uma interpretação perfeitamente idolátrica e anticristã. A mortalidade é fruto de um acidente, sim, no caso a arbitragem da escolha do pecado. “O salário do pecado é a morte”. Sem o Pecado Original a morte não entra no mundo. Sendo assim, não há defeito na essência humana. Esta forma de ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, é a da Substância Simples imperecível, não submetida aos processos desde um princípio de geração e corrupção. O que não quer dizer, por outro lado, que a imortalidade é ontologicamente necessária, pois depende da decisão de Deus. Mas ela não é incompatível, como afirma o Chat GPT. E a sabedoria, embora de fato não consista em escapar da morte (que, se foi decretada por Deus, é uma coisa boa), e signifique sim na vida plena dentro dos limites adequados, consiste em algo muito maior do que o conhecimento de uma natureza contingente presente, isto é, é o amor a Deus sobre todas as coisas, e a esperança na Vida Eterna. É claro que esse caminho está fechado para Gilgamesh e tutti quanti, como já foi dito, pois quem ama o poder, e especialmente o mal, não pode ser herdeiro do Amor.
2. Existe uma separação ontológica irreconciliável entre deuses e homens
A epopeia sustenta que deuses e humanos pertencem a ordens distintas do ser. Os deuses detêm a imortalidade, mas não a justiça moral perfeita; os humanos, embora frágeis, possuem a capacidade de sentido, amizade e civilização. Nenhum esforço humano pode transpor essa diferença estrutural.
Confirma-se que os deuses das nações são demônios. Só há um Deus verdadeiro, e seu Ser é muito compatível com o ser humano, pois este foi criado à imagem e semelhança Daquele. Dito isto, os tais “deuses” que não detém a perfeição são por isso mesmo farsantes e usurpadores. E a grande qualidade dos seres humanos não está na sua capacidade de construção da civilização, mas no conhecimento da Glória de seu Criador.
3. A amizade é o princípio da humanização
A amizade entre Gilgamesh e Enkidu é apresentada como o elemento que transforma força bruta em humanidade. Antes da amizade, Gilgamesh é poderoso, mas desmedido; após ela, torna-se capaz de dor, compaixão e reflexão. A obra afirma que o humano se constitui plenamente na relação com o outro.
Aqui parece que há um grande exagero. Sim, Gilgamesh é freado pela presença de Enkidu, mas somente porque o amigo se mostra um adversário capacitado, e então colega de aventuras pelo mundo, fora de Uruk, de modo que é isto o que torna mais pacífica a vida dos habitantes da cidade, de modo acidental. A prova de que a soberba de Gilgamesh não é desfeita está na sua busca obsessiva pelo segredo da imortalidade, causa pela qual está disposto a ir literalmente até o fim do mundo. O que isto prova não é que o ser humano, por si, seja relacional, etc., mas apenas somente obcecado pelo Poder a todo custo. A presença de Enkidu mudou a experiência do protagonista, mas não alterou suas principais disposições. O que mais o freou, ao fim, foi a certeza da morte, que o tornou mais soturno e contido, pois de nada valeria querer expandir seus domínios se não pudesse usufruir deles diretamente.
4. A hybris conduz inevitavelmente à perda
A epopeia afirma que o excesso — a tentativa de ultrapassar os limites impostos pela condição humana — provoca desequilíbrio cósmico e punição. A morte de Enkidu não é arbitrária, mas consequência da transgressão. O limite não é um mal, mas a condição da ordem.
Isto é uma verdade, mas incompleta. Por que, afinal, existe o limite? E qual é a consumação final deste limite? O limite existe por necessidade metafísica, desde que só pode haver um Ser infinito em ato, que é Deus. E a consumação do limite da criatura só se dá na sua total comunhão com o Ser divino infinito, que é o único capaz de satisfazer eternamente a Apetição da criatura. A Epopeia de Gilgamesh só mostra a primeira parte da história, omite o principal, e dá como solução um caminho falso, que é o de uma construção que concorra com a Providência divina e com a Cidade de Deus.
5. A civilização é a resposta humana à mortalidade
Diante da impossibilidade da vida eterna, a obra afirma que o homem responde à morte por meio da construção simbólica: cidades, leis, obras e memória. Uruk, com suas muralhas, torna-se o verdadeiro “legado imortal” de Gilgamesh. A cultura é apresentada como substituto da eternidade biológica.
Sim, é verdade que os usurpadores operam assim, mas não se pode esquecer que a perpetuação do Pecado Original é a condição elementar desse procedimento. Ou seja, não é a cultura ou a civilização que substituem a eternidade dos indivíduos, e sim a reprodução das Obras da Carne. Este é o verdadeiro Costume dos Filhos de Adão, esta é a verdadeira Tradição Primordial, a Religião do Homem: o Pacto Ouroboros, o Pecado Original. Todas as culturas e civilizações são apenas elementos de superestrutura em cima dessa infraestrutura básica da procriação.
6. A sabedoria nasce do sofrimento
A narrativa sustenta que o conhecimento profundo não é inato nem concedido gratuitamente, mas adquirido pela experiência da perda. Gilgamesh só se torna sábio após sofrer a morte do amigo e fracassar em sua busca. O sofrimento é apresentado como via de acesso à verdade existencial.
O protagonista não se torna sábio. Ele apenas reconhece, no destino do amigo, o seu próprio limite. A interpretação do Chat GPT está totalmente equivocada. Existe uma sabedoria disponível por Graça, mas ela só é acessível a quem a deseje por mansidão e humildade, que são os caminhos das coisas sagradas. Gilgamesh não está nem um pouco interessado em nada disso. A morte de Enkidu o força a reconhecer uma realidade que sempre lhe esteve disponível, caso desejasse ter Sabedoria e não o Poder, ou mais ainda, caso fosse um amante do Bem. Se Gilgamesh só aprende algo com a dor, é porque foi obstinado, teimoso, soberbo e arrogante.
7. O mundo não é moralmente justo, mas é ontologicamente habitável
A epopeia afirma uma visão trágica da realidade: os deuses não garantem justiça proporcional, e o sofrimento não é plenamente explicável. Ainda assim, o mundo não é absurdo. Ele pode ser habitado com lucidez, aceitação e construção de sentido humano.
Novamente, não seria o caso de se supor nenhuma coisa diferente disso da parte dos falsos deuses. O sofrimento, por outro lado, é totalmente explicável, desde que se busque a Justiça do Deus verdadeiro que está muito acima das conjecturas mesquinhas e pequenas das criaturas. Essa visão trágica, portanto, é apenas um espelho da infeliz condição amaldiçoada dos próprios anjos caídos. Estes seres miseráveis, incapazes de atingir uma Redenção, só querem transmitir a sua infelicidade aos homens.
8. A verdadeira imortalidade é simbólica
Ao final, a obra afirma que a única forma de permanência acessível ao homem é simbólica e histórica. A memória, o nome, a cidade e a obra substituem a eternidade literal. Gilgamesh torna-se imortal não por viver para sempre, mas por ser lembrado.
Por pouco Gilgamesh não foi totalmente esquecido. Bastasse que alguns registros fossem perdidos, e ninguém saberia da sua existência. E de oito bilhões de seres humanos, quantos conhecem o seu conto? Pior, mesmo entre os que conhecem sua história, quantos o veneram, e não apenas tomam ciência de uma curiosidade histórica? Como são vãs as pretensões humanas, inclusive esta da memória. Isso já foi ensinado pelo Eclesiastes. Pior ainda, a própria perpetuação pela descendência carnal não significa nada. Eu não sei o nome de um de meus bisavós, quanto menos a história de todos eles. Até certo, ponto, não sei direito nem a história de meus pais, pensando bem. Pois o que não convém não é transmitido. Apenas farsas e propagandas. Se há algumas famílias que preservam sua genealogias, elas não estão imunes às mentiras (como mostra uma recente descoberta a respeito da dinastia inglesa), e de qualquer modo não ultrapassam uma quantidade pífia de ascendentes. Ora, tudo isso diante de Deus é uma vaidade ridícula que depõe contra a nossa espécie. Somos feitos à imagem e semelhança de Deus! E mais, somos chamados a sermos filhos adotivos e herdeiros da Glória divina pela Eternidade! O que são essas patifarias humanas perto do chamado do Criador?
Nota espiritual: 3,0 (Moriquendi)
| Humildade/Presunção | 3 |
| Presença/Idolatria | 1 |
| Louvor/Sedução-Pacto com a Morte | 4 |
| Paixão/Terror-Pacto com o Inferno | 5 |
| Soberania/Gnosticismo | 3 |
| Vigilância/Ingenuidade | 2 |
| Discernimento/Psiquismo | 3 |
| Nota final | 3,0 |