Neste livro o autor exporá um dos temas filosóficos que lhe mais interessa, que é o da Justificativa de Deus, ou Teodicéia (theos = Deus + dike = Justiça). Isto o levará a fazer uma excelente defesa da arte combinatória da Providência divina que produz a Harmonia Preestabelecida das mônadas, da sua idéia do Princípio da Razão Suficiente, e a afirmação famosa de que de todos os mundos possíveis este deve ser o melhor de todos, às custas de ser chamado pela elite ilustrada de sua época de um otimista tolo.
Sua construção se dá no contraste às idéias de um adversário principal, Pierre Bayle, que defendia a incapacidade da razão humana de pretender fazer algo como uma justificativa da ação divina, e da Providência como um todo. Ainda estamos operando no trauma do fim do Medievo, do divórcio entre Filosofia e Teologia. Para Leibniz isto não é necessário, e ele fará o uso da Razão para reafirmar a philosophia ancillae theologiae.
Apesar de ser muito diplomático e aberto a receber e reconhecer o mérito das influências de filosofias as mais variadas, inclusive da Escolástica (a qual defende contra os preconceitos iluministas), Leibniz não deixa de ser crítico quando precisa. Abaixo encontramos uma amostra, quando ele acusa a negação da manutenção da particularidade da alma humana de modo independente da morte do corpo:

O autor sabe que é necessário reintegrar racionalmente toda a manifestação daquilo que entendemos como o Mal, ou ao menos a privação do Bem, de modo que o império de um Logos divino seja reconhecido sobre toda a realidade, bem como que faça sentido a experiência da alma independentemente deste corpo corruptível. É por isso que ele faz a sua filosofia que, nesse sentido, pode ser entendida como eminentemente cristã, porque busca defender racionalmente o testemunho da Revelação do Evangelho. Em outra parte o autor também glosa nesse sentido os Estóicos, observando o quanto estes também são contrários à continuidade da particularidade singular das almas em favor de um monopsiquismo próximo ao averroísmo.
No seu “Discurso preliminar sobre o acordo da Fé com a Razão“, um tanto longo ou quase até prolixo, nosso autor, prosseguindo em sua crítica ao Sr. Bayle, afirma algo valioso:

Essas distinções são preciosas. Por um lado é preciso evitar a Presunção do excessivo racionalismo humanista, e por outro também evitar a escolha irracionalista. Este é praticamente o grande desafio do Idealismo Alemão: combater o Iluminismo ateísta, sem cair no Romantismo fideísta.
Leibniz luta para defender a dignidade da razão humana mesmo diante de suas limitações. Ele não quer o divórcio infeliz entre racionalismo ateísta e teísmo irracionalista. Nesse intuito lembra que a condição presente não pode ser desconsiderada:

Essa ideia de “pequena parte de seu reino” é cheia de generosidade e magnanimidade. As coisas divinas não podem ser julgadas em absoluto, e muito menos ainda desde uma condição tão precária e limitada. A razão humana, ainda assim, opera de acordo com a verdade que lhe compete. E sua competência, por menor que seja, é capaz de ilustrar seu próprio limite em face do que lhe transcende, e por isso permite ao ser humano apreciar razões que sua razão própria não pode dominar, mas que jamais poderá negar, e que de algum modo é capaz de apreciar por aproximações analógicas.
Entrando no miolo da obra do nosso autor, parece que o meu caminho será o de diferenciar a sua Teodiceia da minha Eleuteriodiceia, com destaque para o problema da interpretação do Pecado Original. Logo no início da sua explicação sobre a perplexidade comum a respeito da questão, ele nos diz:

Ora, se todos os pecados são derivados de um decaimento decorrente do Pecado Original, é inadequado afirmar que Deus concorre para o mal, porque o ser humano é livre para reproduzir a sua condição decaída ou negar-se a fazer isso. Será que este será um ponto cego na filosofia de Leibniz? Veremos.
Otimista e confiante na bondade da obra divina, em sua proposta o nosso filósofo não só afirmará que não há defeito na Criação, mas que este é o melhor dos mundos possíveis necessariamente. E isto deve, portanto, incluir a provisão de todas as provações, erros, falhas, males e sofrimentos:

Eu subscrevo integralmente. Pois um mundo sem pecados e sofrimentos não possuiria seres livres capazes da maior felicidade, mas daí em diante resta a pergunta a respeito do objeto final dessa liberdade contingente, que deve ser uma nova realidade redimida e perfeita. Se não for assim, cairíamos na legitimação da Mistura, o que é tão indigno da bondade divina quanto a rejeição do Limite.
Leibniz navegará entre hipóteses variadas que mostrarão sua grande liberdade de investigação. Ele contempla a hipótese da legitimação da Mistura, mas dispensa esse caminho em face da vida após a morte, que obviamente é o que interessa. Falando, porém, dos muitos chamados e poucos escolhidos, ele verifica que esta dificuldade deve ser enfrentada. Afirma que lhe agrada até certo ponto uma ficção do tipo cabalista (da redenção pela atuação de Adam Cadmon), mas prefere ficar com as pistas da Revelação e da Natureza. Nessa última linha o autor admite que muitos outros mundos podem conter uma quantidade incomparavelmente maior de criaturas felizes, e que essa hipótese bastaria para justificar o problema da aparente desproporção no resultado da economia espiritual. Eu próprio não desconsiderei essa hipótese, de que vivemos num mundo particularmente caracterizado por um excesso de mistura com as Trevas, e que funcionaria como um tipo de penitenciária espiritual entre outros mundos. Mas isto sem cairmos no erro gnóstico de julgar toda a realidade como uma prisão ontológica. Os muitos chamados e poucos escolhidos seriam apenas os capazes de serem reabilitados por este regime especial, mas isto como uma realidade localmente administrada entre muitos outros mundos melhores, que eu chamaria Vanyar na minha linguagem. Leibniz repara como a mera abundância de astros no céu noturno serve de apontamento suficiente para se conceber essa hipótese, o que é no mínimo uma questão de justiça com Deus.
Com muita razão o autor afirmará a bondade da ação criativa de Deus em todos os casos, inclusive sobre as espécies materiais. Para tanto fará uso de conceitos derivados da sua Dinâmica, a qual propôs como uma solução física melhor para o estudo das forças moventes, em comparação com os sistemas cartesiano e newtoniano. Diz ele:

Esta ideia da limitação na receptividade da criatura, de modo preciso como agência moral que produz uma arbitragem, é absolutamente essencial para se compreender a responsabilidade dos espíritos livres. E o conhecimento disto é uma fonte tremenda de Sabedoria, um verdadeiro baú de tesouros espirituais. Por este caminho se pode compreender como a Humildade permite uma maior recepção da Graça, e como a rejeição das arbitragens dos excessos de Mistura nos aproxima de Deus e do desígnio de sua Providência.
O autor deseja resolver o impasse que ainda persiste na luta entre deterministas e voluntaristas radicais. Sua solução mais simples e elegante é o conhecimento divino dos muitos mundos possíveis (hoje diríamos talvez “continuum paralelos”). Sua linguagem me parece impecável nesse tema:


Existe, portanto, indiferença suficiente para a liberdade, mas nunca total simetria que impeça o movimento da escolha, isto é, há “indiferença de equilíbrio”, na sua linguagem. Este é um dos pontos mais importantes desta doutrina de Leibniz.
A Teodiceia serve para o testemunho da vida na Presença e da recomendação do repouso na divina Providência. Não cabe a nós nos salvar, ou salvar o mundo. Só nos cabe fazer o melhor que podemos na nossa condição, pois tudo já está destinado ao seu melhor concurso:


Até o final da Primeira Parte destes seus Ensaios, nosso filósofo trabalhará na constrangedora tarefa de compensar certas doutrinas religiosas com suas idéias generosas a respeito de Deus e de sua Bondade. Elogia, é verdade, os católicos, por terem uma visão mais magnânima da Salvação do que os protestantes –cita, por exemplo, Francisco Xavier à respeito dos ancestrais dos japoneses–, mas ele faz isso desde a confortável posição de um reformado, com uma liberdade da qual ele não quer abrir mão.
Leibniz defende enfim o direito de Deus de fazer o que quiser com o que é seu. E só faltava mesmo Deus ter que dar explicações sobre o seu Amor para o ser humano. Se pensarmos bem, não pode haver criatura mais asquerosa que o legalista religioso, que é como um servidor fiel aos infernos. O que faltava ainda para o autor era a liberdade de considerar duas hipóteses que muito poderiam contribuir para simplificar e abrilhantar a sua idéia geral: (1) a de que o Pecado Original não é transmitido pela geração, e sim repetido como uma nova causa eficiente; e (2) que é perfeitamente viável a Salvação da vasta maioria dos seres humanos na Segunda Ressurreição. Isso completaria a sua obra de glorificação de Deus de modo excelente.
Na Segunda Parte nosso autor entra em contra-argumentos contra Bayle, e chega nos detalhes interessantes relativos ao Pecado Original. Todo mundo acha isso misterioso e até incompatível com a bondade de Deus. Como que um pecado passa de pai para filho? Como isto seria justo? As coisas ficam deslocadas e separadas, tudo por culpa do efeito da Tradição Primordial que tomou o lugar da Revelação. Não é que a punição de Deus gera males aos descendentes de Adão. Isto é uma inversão demoníaca. O pecado de Adão, continuado por seus descendentes, é que gera consequências que Deus não quer evitar, para não fazer o homem chamar o mal de bem. Por outro lado, as medidas da sentença divina decretaram limites ao mal escolhido pelo homem, e constituem por isso mesmo o contrário do que se supõe, ou seja, bençãos (a hostilidade da natureza, a fragilidade do corpo humano, a mortalidade, etc.). O tal fruto misterioso da Gnose não é outra coisa que o conhecimento do meio de se usurpar a Graça divina, de roubar o bem e tê-lo como seu próprio (Pseudoeuergesia). E a permissão divina decorre da necessidade que a criatura livre tem de conhecer sua própria liberdade de escolher ou rejeitar o Amor divino. Tudo isso me parece óbvio, mas Leibniz está distante dessa visão, por mais bem intencionado e preparado que estivesse.
Leibniz ataca Bayle na ideia de que Deus fez todas as coisas para o homem. Defende a ideia de que o bem maior na ordem do todo criado supera os bens próprios. Está preso na lógica naturalista, infelizmente. Com sua mônada, tem os meios de atingir patamares muito excelentes na glorificação de Deus, mas fica aquém. Por consequência de suas decisões, termina por afirmar que a mistura de bens e males foi arbitrada e desejada por Deus, para produzir um resultado determinado que na análise combinatória seria o melhor possível. Isto invalida o significado do Pecado Original, para não falar do pecado em geral. Não é Deus quem precisa do mal para escolher o que é bom, é o ser humano, e mesmo assim não necessariamente, mas porque arbitra o excesso de mistura livremente. “E a RSMM?”, alguém poderia perguntar. Ora, ela sempre poderia ser pura, sem mistura, caso contrário o primeiro pecado não seria pecado, e Jesus o Filho do Homem não poderia ser santo como sempre foi. Deus já conhecendo a nossa própria arbitragem mínima necessária, providenciou a circunstância capaz de realizar a melhor combinação, mas desde sempre a mistura mínima foi uma arbitragem nossa conhecida desde a Eternidade pelo Logos divino.
Com muita razão e habilidade, na explicação das diferenças entre o que convém por necessidade e por contingência nos dispositivos legais, Leibniz distingue entre o que é o Direito Natural, como o que embasa a moralidade do Decálogo mosaico, e o que é o Direito Positivo, cujo valor é circunscrito à convenção do ordenamento social, como por exemplo consta das regras do culto religioso. Esse já é um rudimento de esclarecimento sobre a diferença entre o que é espiritual e o que é religioso. O progresso dessa consciência foi lento. Já os católicos desenvolviam a separação entre os âmbitos místicos e legalistas, mas foi preciso a Reforma para avançar mais profundamente nessa direção. E, por fim, a secularização dos poderes e a liberdade religiosa nos permite hoje fazer considerações inéditas. Claro que há um preço a se pagar no quesito da coesão social, mas quem, senão um zelota fanático, desejará voltar ao tempo de uma liberdade menor? Nosso autor trabalhou também, entre outros, para que fôssemos mais livres, com vistas a uma maior glorificação do Nome, justamente por liberalidade e espontaneidade, e não por costume, hábito, hipocrisia ou coação.
Leibniz mantém-se defensor da Humildade e da Soberania, e do respeito pelos mistérios divinos, o que é uma marca e um testemunho da vida na Presença. Coloca o ser humano no seu lugar:

Com isto não se proíbe a especulação sobre a razão das coisas divinas. Bem ao contrário, o que se faz nestes Ensaios de Teodiceia, senão tentar compreender melhor as deliberações de Deus? A questão é nunca perder de vista o limite da razão humana, e o sentimento piedoso do sagrado misterioso que nos transcende. É possível e muito adequado fazer as duas coisas.
Um problema que se repete nesta obra, e que torna Leibniz de certo modo um legitimador da Mistura, é a tese de que a bondade do conjunto do Universo supera os defeitos das partes. Para quem este Universo, por sua vez, seria uma coisa boa? Para Deus? Mas se Deus tivesse alguma bondade acrescentada por algo externo ao seu Ser, ele não seria divino. Um dia destes eu explicava isto para o Felipe. Ele achava misterioso que alguns sofrimentos perdurassem, e que teria alguma razão de composição na justiça disso. Neguei essa tese absolutamente. Deus só tolera e permite males contingentes na razão interna da sua obra de buscar o bem maior das criaturas. Quando o Apóstolo diz que os males presentes não se comparam ao bem futuro, ele não está falando de um bem externo, porque Deus não pode ser mais perfeito, e a perfeição das criaturas é obtida pelo usufruto de seu bem próprio e pela contemplação da perfeição divina. Infelizmente há esse traço de Idolatria no pensamento de Leibniz, o que nos surpreende, porque ele tem a intuição da mônada, e de certo modo é um precursor do subjetivismo do Idealismo Alemão. Mas ainda era demasiado mecanicista e naturalista.
A visão que o autor tem sobre a ação do pecado em relação à iniciativa e ao governo divino é muito boa. Embora seja apresentada de modos diversos, uma das melhores deve ser esta:


Isto vai bem com a minha própria doutrina dos poderes da Humildade e de seus frutos, a Obediência e a Gratidão, como vias excelentes para a colaboração do ser humano com a Obra de Deus.
O que há de muito nobre na Teodiceia de Leibniz é a sua insistência em fazer uma Filosofia dirigida aos grandes temas da existência humana, que são todos obviamente relacionados com Deus, sem temer o serviço da Razão humana aos objetos mais excelentes da vida espiritual. Seus problemas, como já disse, estão relacionados à sua visão mecanicista, algo naturalista, que complicam as coisas mais do que o necessário. Todo o potencial da Monadologia depende de um Idealismo Transcendental que ainda não é a filosofia leibniziana.
De minha parte, desenvolvi uma Eleuteriodiceia (eleutheris = “Liberdade + dikes = “Justiça”) para trabalhar a justificativa da liberdade das criaturas, especialmente relacionando a necessidade da sua experiência de alguma RSMM (que na Teologia chamamos de “Cruz”) para a arbitragem do aceite do Amor divino que permite a realização da Coruscância. Há algo da Teodiceia de Leibniz no meu pensamento, mas sou um devedor maior da sua Monadologia, ou do seu pensamento metafísico em geral.
Nota espiritual: 5,4 (Calaquendi)
| Humildade/Presunção | 7 |
| Presença/Idolatria | 6 |
| Louvor/Sedução-Pacto com a Morte | 5 |
| Paixão/Terror-Pacto com o Inferno | 5 |
| Soberania/Gnosticismo | 6 |
| Vigilância/Ingenuidade | 4 |
| Discernimento/Psiquismo | 5 |
| Nota final | 5,4 |
