
Já faz tempo que a psique ocidental é tratada com os analgésicos espirituais e amortecedores morais da autoajuda, na vã tentativa de compensar o vazio existencial que cresce sem parar.
Conforme a escravidão material da Maldição é compensada pelo progresso civilizacional, o sentido da existência dessa massa de escravos é continuamente desmontado. A especialidade da nossa raça era a de ser escravizada num cativeiro trabalhoso de manter e cheio de perigos. Se vivemos mais livres de um trabalho contínuo e de grandes ameaças iminentes, que sentido de vida nos resta?
Nossa sociedade chegou ao ponto de se especializar no autoengano ao ponto da alucinação coletiva em torno das mentiras mais sofisticadas, uma farsa que vai dar trabalho para cada nova geração desvendar. Ao lermos A biblioteca da meia-noite, de Matt Haig, revisitamos o hospício a céu aberto da mentalidade contemporânea, e revemos mais uma vez as impotentes reflexões do Vazio sobre si mesmo.
Ao viver uma vida sem Deus –e, vejam bem, falo do Deus verdadeiro, o centro e o ápice de nossas vidas, o Primeiro e o Último, o fundamento e o objetivo, a origem e o fim–, nenhuma mônada pode dar conta de si mesma, por mais potente que se considere, e por mais privilegiada que seja a sua “visão quântica” dos muitos universos possíveis. Toda a relação do Múltiplo consigo mesmo é entrópica por natureza e tende ao declínio e à dissolução, pois dissipa sua energia ilimitadamente. Todos os seres contingentes precisam do Ser Absoluto de potência infinita para lhes conceder continuamente a vida e a graça. Por si mesmos, os entes criados são pedaços vazios de possibilidades equivalentes ao Nada de onde foram tirados pela vontade amorosa de seu Criador. Por isso se diz, diante da rebelião contra o Amor, que o ser humano veio do pó, e ao pó retornará.
Tudo o que Nora Seed, a protagonista da história, faz, é tirar as minimamente honestas conclusões dessa total devastação espiritual da experiência humana vivida na rejeição da Presença e do Amor de Deus. Isso obviamente a leva a desejar a morte depois que algumas circunstâncias a pressionam para além do psiquicamente suportável, especialmente a perda do emprego e a morte de seu gato.
A história concluirá que Nora sofre do medo de viver, no sentido da recusa de experimentar uma vida não refletida, e neste sentido apresenta uma moral antifilosófica, fatalista, trágica e existencialista.
No sentido espiritual, é um conto que estimula o Pacto com a Morte e o Psiquismo, desempenhando assim seu autor o papel de Bispo no Sistema da Besta, legitimando a existência decaída através de diversos testemunhos de justificação da experiência da vida humana sem Deus.
“As coisas boas fazem o todo valer a pena“, uma das crenças de Nora, por exemplo, é um clássico testemunho Moriquendi.
A Sra. Elm, a bibliotecária que serve como interlocutora constante de Nora na experiência da Biblioteca da Meia-Noite, produziu por sua vez o importante testemunho de que “a única maneira de aprender é vivendo“, desclassificando e desmoralizando qualquer busca por Discernimento e Sabedoria, e equivalendo o ser humano a um rato de laboratório preso num labirinto. Ela teria razão, sem dúvida, com relação ao caso dos Falmari, os salvos da Segunda Ressurreição, os seres humanos que realmente têm que apanhar até o limite para aprender. Mas se ainda estamos aqui, não temos então uma eleição muito melhor disponível, a do destino Noldor?
O livro produz uma ficção científica baseada na Física Quântica, que é o mais novo esparadrapo no kit de primeiros-socorros da literatura de autoajuda. Nora não consegue morrer de uma vez, e vai parar na tal Biblioteca com a Sra. Elm, onde vai poder experimentar outras possibilidades de vida a partir de seus arrependimentos, tudo com o objetivo de recuperar o desejo de viver na sua vida original.
Eventualmente Nora recuperará o desejo de viver numa conclusão não muito convincente de que ela poderia rever sua vida original com olhos repletos de novas possibilidades. A compaixão com as pessoas que concretamente foram beneficiadas pela sua existência naquela realidade é o ponto forte da narrativa (o aluno de piano e o vizinho idoso), mas me lembra a solução de compaixão do Schopenhauer: como aplicar um band-aid numa fratura exposta.
Uma das experiências alternativas que mais a impressionou foi, obviamente, a de casar e ter filhos. Parabéns ao autor, está trabalhando firme mesmo na manutenção deste mundo decaído. O Ouroboros está orgulhoso. Só recomendo ser um pouco mais competente: em certa parte diz que “Nora se deu conta de que não era culpa sua que os pais jamais tivessem sido capazes de amá-la como seria esperado: incondicionalmente“, mas depois diz, quando Nora tem a experiência do casamento e da maternidade, que “ela sentiu o poder daquilo, o poder apavorante de amar incondicionalmente e de ser amada incondicionalmente“. Ué, Nora superou seus pais? Ela ficou melhor que eles? Quando foi que isso aconteceu? Não será mais provável que Nora tenha se tornado mentirosa como seus pais? Ou ao menos que tenha se enganado tanto quanto eles?
Para mim a mensagem sutil da história é: mulheres, meninas, esqueçam esse negócio de filosofia e sentido de vida, simplesmente casem e tenham filhos. O Ouroboros agradece. Consciência pra quê mesmo? Deixem a Serpente se alimentar…
Em certo momento um grande segredo da vida humana é revelado quando Nora, numa de suas expedições quânticas, sobrevive ao encontro com um urso polar: “fazer parte da natureza era fazer parte da vontade de viver“. Quer dizer, toda aquela consciência do Vazio pode ser resolvida de modo simples, desde que o ser humano aceite equiparar-se a um animal e que não queira ir muito além disso.
Há situações na história em que a legitimação fatalista da humanidade decaída chega aos cumes, principalmente nas conversas de Nora com a Sra. Elm, representante dessa suposta sabedoria quântica.
Exemplo:
“A tristeza é parte intrínseca do tecido da felicidade. Não dá para ter uma sem a outra.”
É a famosa mistura de Luz e Trevas que tanto interessa à Serpente do Mundo, pois o mal só sobrevive com a parasitagem do bem.
Comparemos isso com o que diz o Apocalipse:
“Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, nem dor haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram!“
Cada um faça a sua escolha.
Querem outros exemplos de testemunho Moriquendi neste livro?
Vejamos:
“Não há uma vida sequer em que a pessoa possa existir num estado permanente de felicidade absoluta. E imaginar que exista uma vida assim só acrescenta mais infelicidade à nossa vida.”
E:
“Nora: ‘Parece impossível viver sem machucar as pessoas.’ Sra. Elm: ‘Parece impossível porque é impossível’.“
Quer dizer, Jesus Cristo e seu testemunho do Amor e da Ressurreição não vale absolutamente nada para essa gente. Nada, nada, nada. Só lhes resta, é claro, fazer o Pacto com a Morte. De preferência não entendendo lhufas de nada, como reafirma a Sra. Elm em outra parte: “Você não precisa entender a vida. Precisa apenas vivê-la.” Assinado: A Serpente do Mundo, por seu procurador.
Talvez esotericamente Nora tenha escapado da Biblioteca e voltado à sua vida original passando pelo Corredor 11, um número bem conhecido do pessoal que, digamos, assim, não estão muito a fim do Amor de Deus.
A decisão final do masoquismo de Nora, e de seu assentimento espiritual com a mistura de Luz e Trevas desde mundo decaído, é declarada nas seguintes expressões conclusivas:
“Minha vida será milagrosamente livre de dor, desespero, mágoa, coração partido, dificuldades, solidão, depressão? Não. Mas eu quero viver? Sim. Sim. Mil vezes, sim.”
Não é uma adesão à esperança cristã da Vida Eterna, a salvação divina. Não. É uma adesão ao sofrimento mesmo. É a afirmação do valor existencial do mal. É um testemunho Moriquendi.
E também:
“Ela aceitou as sombras da vida de um jeito que jamais havia feito, não como fracasso, mas como parte de um todo, como algo que ajuda outras coisas a serem ressaltadas, a crescerem, a existirem.”
Eis uma declaração cuspida e escarrada de que o Bem precisa do Mal, e a Luz das Trevas. Mais óbvio que isso, impossível.
Antes que se diga que o autor apenas se perdeu no tema, com seu conhecimento de filosofia eu tenho certeza de que ele poderia acertar o alvo espiritual, se quisesse.
Por exemplo, esta obra perde a chance de mergulhar numa interessantíssima reflexão sobre o Princípio de Indeterminação das Mônadas, ou Singularidade monádica, ao rejeitar por exemplo o modelo de Diógenes de Sinope que elogiava o heroísmo de quem desistia de qualquer plano mundano como uma vitória que honra a verdadeira forma humana destinada ao plano divino, defendendo as mônadas da decadência da identificação com quaisquer manifestações inferiores. Nora poderia ter sido uma heroína cínica, mas até esse paganismo seria perigoso demais, porque poderia abalar a paz e segurança do Sistema da Besta.
Mas esta já é uma história que não foi escrita, e que provavelmente jamais será.
Notas (de 0 a 10):
Valor EMD:
Hipótese: P&A 2,0 (Influência Demoníaca)
| M. Maior – Gratidão/Soberba | 2 |
| M. Maior – Obediência/Rebelião | 2 |
| M. Menor – Perdão/Julgamento | 5 |
| M. Menor – Libertação/Sadismo | 5 |
| M. Primeira – Liberdade/Masoquismo | 0 |
| Ataques Avari-Moriquendi | 0 |
| Testemunho ES-Calaquendi | 0 |
| Nota EMD | 2,0 |
Valor Espiritual:
| Humildade/Presunção | 5 |
| Presença/Idolatria (a mera hipótese da transcendência é desprezada) | 1 |
| Louvor/Sedução | 3 |
| Paixão/Terror | 5 |
| Soberania/Gnosticismo | 5 |
| Vigilância/Ingenuidade | 3 |
| Discernimento/Psiquismo (causas finais preteridas pelas eficientes) | 1 |
| Nota Espiritual | 3,2 |
Cultural
| Inspiração (moral, estética, etc.) | 0 |
| Informação | 1 |
| Diversão | 0 |
| Nota Cultural | 0,3 |
Nota Final: 1,8


