A Política, livro por ARISTÓTELES

A origem da polis, e depois do próprio Estado, é a família. Esta é a raiz natural dos ordenamentos políticos, e o reconhecimento disto é uma das primeiras observações feitas pelo nosso autor. Quando ele passar a discutir os tipos de governo, fará comparações com as relações familiares: o pai, perante seus filhos, é como um rei (bem como pode se tornar como um tirano); o marido, diante da esposa, é como o governante por méritos numa aristocracia, bem como pode se tornar como um oligarca e comprar seu domínio com poder econômico; e por fim, a relação dos irmãos entre si é como a vida numa república, que pode decair nos fingimentos demagógicos como numa democracia.

Basta-nos verificar, na hipótese de que a natureza não seja infalível considerando os fins últimos da vida humana (algo que Aristóteles mesmo reconhecerá mais adiante), que o problema político é originado desse costume que tem a forma teológica do Pecado Original, para perceber que, resolvida a questão de origem, que é a multiplicação das Obras da Carne, restará resolvido ipso facto o problema político: se toda a falta de paz, prosperidade e Justiça deriva do Pecado Original, retirada a causa única desses males todos que exigem uma solução política, eles cessam imediatamente, e resta vazia a necessidade da arte política. Por isso, pela Monadofilia, afirma-se que a discussão política é Res exclusae in limine, a não ser que se discuta somente os meios sociais de realizar a hipótese excepcional da Melhor Geração, que de qualquer modo requer antes uma conversão unânime, ou pelo menos quantitativamente suficiente, à escolha da vida na Presença. Ou seja, antes que exista essa conversão em massa, não faz sentido discutir teoria política, embora continuem válidos os deveres de estado de governantes e governados, inclusive os deveres de legislar e de cumprir as leis (“mandar” e “obedecer”, na linguagem de Aristóteles). Sempre convirá mais o testemunho, portanto, da fé e da vida na Presença, por todos os meios, do que a busca de uma solução política para problemas que possuem uma raiz espiritual única.

Não encontramos por ora nenhuma grande novidade, em comparação com a filosofia platônica. Mas vale a pena observar como a fonte do poder é aquele ato inaugural do homem sobre os seus subordinados naturais, esposa e filhos. É verdade que isso corresponde à responsabilidades objetivas, mas cabem duas questões: (1) que opção a mulher tem de ser tratada como irmã e pura semelhante, e os filhos de não nascer do arbítrio paterno? (2) quais garantias existem para os subordinados nessa relação natural de que o poder real do homem não se tornará tirânico e abusivo? Ora, os direitos universais de mulheres e filhos dependem de um desenvolvimento político que terminará por negar a base natural elementar da própria política, isto é, o poder e a autoridade do arbítrio do homem. O limite ético da Cidade dos Homens é a descoberta da Lei da Cidade de Deus, e esta contraria aquela Lei Natural que por sua vez garantia o direito do homem de ter poder sobre mulheres e filhos. É claro que a prática disto implicará na tradução das leis morais em leis humanas e jurisprudência, o que significa que o Estado, gerado em primeiro lugar a partir do poder do homem, termina por se tornar seu adversário na limitação desse poder, na representação dos interesses de mulheres e filhos. Essa transição é traumática e pode gerar abusos e revolta de todas as partes envolvidas. Mas é um caminho inevitável, desde que o progresso moral não pode ser desligado do progresso material, técnico, econômico e social. Muitos homens sofrerão com esse conflito, quando ainda retém na memória, ou conservam na cultura, os símbolos do antigo poder que seus ancestrais possuíam sobre os subordinados naturais. E alguns destes buscarão uma revalorização de costumes e tradições para restaurar a condição anterior, embora seletivamente, pois eles próprios não desejarão perder todos os demais progressos humanos que também os beneficiaram. Esta contradição gera paradoxos e hipocrisia. É um processo interessante de se observar, e inevitável. A queda do poder particular gerado pela condição natural do homem se dá pelo desenvolvimento da sociedade, especialmente pelo comércio, pela tecnologia, e pelas instituições civis.

Aqueles saudosistas dos poderes ancestrais deveriam perceber rapidamente que o mundo antigo, por ter menos camadas de proteção contra a brutalidade da vida natural, apresentava riscos que hoje consideraríamos inconvenientes. Aristóteles mesmo diz que “a natureza desculpa a guerra“. Ou seja, o domínio do homem na guerra é tão legitimado quanto na paz da vida doméstica. Se você pode dominar esposa e filhos, você também pode ser dominado por um conquistador: um ladrão, um invasor, etc. O direito natural é o mesmo, isto é, o da força. E se você pode submeter mulher e filhos, lembre-se de que você também pode ser submetido como escravo por quem possa ter o domínio físico sobre a sua pessoa. Se hoje nós temos a noção de direitos humanos, de guerras injustas e da abolição da escravidão, isto vem junto com os direitos das mulheres e dos filhos. Porque a Lei Natural que permite algumas práticas também permite outras.

O autor reconhece que o desenvolvimento do comércio, da moeda e do dinheiro, cria como que uma realidade virtual que produzirá poderes justamente artificiais, principalmente em relação aos poderes naturais ligados ao domínio físico da realidade. Direitos jurídicos criam poderes jurídicos, baseados na Lei e não na força. Em 1258b, Aristóteles afirma que o comércio, a usura e o acúmulo de dinheiro são contrários à natureza, pois ultrapassam a necessidade. “O lucro, de todas as aquisições, é a mais contrária à natureza“. E no entanto, é por essa artificialidade da concentração de riquezas e da instituição de direitos jurídicos, como o crédito, que grandes projetos humanos são viabilizados para a aceleração da criação dos meios de progresso geral que mais contribuem com o bem-estar da sociedade política. Tanto que essa marcha nunca tem volta, e não se encontra uma proposta séria sequer de interrupção do progresso alavancado por estas práticas artificiais, ou antinaturais. O máximo que se observa é a legislação a respeito de limites contra abusos, etc., ou seja, a regulação dessa artificialidade.

Com razão Aristóteles critica a coletivização, pois o que é propriedade de alguém se torna sua prioridade, mas o que é de todos é como se não fosse de ninguém. Até hoje liberais citam essa evidência, ou alguns famosos já o fizeram, como Milton Friedman. Na crítica particular da idéia de coletivização das famílias na Politéia platônica, diz: “é melhor ser o último dos primos do que filho na República de Platão“. Sua filosofia é uma boa defesa da família e da propriedade. E como sempre o Costume vence a Libertinagem em matéria de conveniência moral e política, embora nunca vença a Liberdade que se baseia nas maiores virtudes.

Para o autor é muito óbvio que o número de nascimentos deve ser controlado para evitar a pobreza. E ao se evitar a pobreza, se evita as infelicidades, as discórdias e os crimes. Ora, se a política é a arte de governar com vistas ao bem comum, que é a felicidade dos cidadãos, deve-se evitar a pobreza com vistas à felicidade. E a providência número um que Aristóteles menciona nessa prática de se evitar a pobreza da sociedade humana é o controle dos nascimentos. Alguns autores conservadores podem adorar citar idéias aristotélicas favoráveis ao império da Lei Natural, mas com o cuidado de glosar esse tipo de observação óbvia que tem por base a observação da realidade e um cálculo racional simples e direto. Qual é a origem da pobreza? O que é pobreza? Pobreza é a escassez relativa de recursos necessários. O que gera a escassez de recursos? A falta de produção dos recursos, ou o excesso de produção dos necessitados de recursos. Até pessoas pouco inteligentes deveriam ser capazes de reconhecer isso, e por consequência, que o instinto animal atua contra os interesses humanos de paz, prosperidade e felicidade. Notavelmente, parece que onde os seres humanos possuam liberdade suficiente para criticar os costumes, e onde se possa exercer algum autocontrole sem constrangimentos, uma certa autoregulação se torna espontânea a esse respeito. Ou seja, não é necessário instituir por lei o controle dos nascimentos: as pessoas farão isso espontaneamente, a partir de seus interesses particulares, desde que exista suficiente progresso material que lhes permita dispensar uma descendência de escravos particulares, e um suficiente progresso moral para a liberdade da crítica dos costumes e para a escolha de um estilo de vida diferente. Que isso tenha demorado tanto tempo, aparentemente, desde o fim da instituição da escravidão na maior parte do mundo, é uma questão relativa. Para nós séculos e milênios parecem durar muito, pois medimos as coisas com a régua da duração de nossas vidas, mas na escala da duração dos Estados, ou até da espécie, observa-se até o contrário, ou seja, uma rapidez na mudança dos costumes, etc. Em suma: a quantidade de pobreza existente numa sociedade é diretamente proporcional à diferença entre o aumento da população e o crescimento da riqueza gerada. Libertos os escravos de antigamente, se estes têm que cuidar de suas próprias vidas no trabalho agrário, estes possuem incentivo econômico para aumentar a sua descendência, que constituirá mão-de-obra gratuita no auxílio laboral. É preciso que surja suficiente urbanização e industrialização para que esse incentivo cesse e a conveniência se inverta, como observamos hoje, onde o autocontrole e a autoregulação são mais benéficos. De todo modo não nos esqueçamos que o custo moral sempre existiu e foi desprezado por muitas gerações de pais e mães, e que somente mais recentemente essa realidade foi precificada, especialmente com a pressão de uma legislação que regula os direitos humanos, etc. É demorado, complexo e difícil, mas algum progresso moral parece acompanhar o progresso material. Os riscos da humanidade surgem quando o descompasso entre as duas trajetórias se torna muito grande, seja por uma explosão de inovações, ou por um retrocesso cultural ancorado na força das Religiões, dos Costumes, etc.

Sobre o controle das proporções das rendas, com a finalidade de se evitar revoluções políticas, menciona-se a razão de 5 para 1, ou de 4 para 1, já proposta antes por Platão, na relação entre a maior e a menor renda. Mas em sociedades altamente capitalizadas e industrializadas isso poderia alcançar 10 para 1 e preservar uma boa razão distributiva. Os abusos parecem surgir quando se ultrapassa a medida de 20 para 1. O problema obviamente é a execução desse ideal de equidade como lei, e não como costume moral, já que isso requer a concentração de um poder maior que todos, o que pode se tornar a origem de uma tirania e causar males muito piores do que as desigualdades, especialmente pelas mãos de agentes perversos animados pelo espírito de inveja. Essas injustiças produzidas pela Revolução produzirão mais revoltas e caos social. Aristóteles também repara que as distribuições que não sejam atreladas ao controle dos nascimentos se tornarão inúteis, porque a falta de autocontrole ampliará o consumo num ritmo mais acelerado do que as distribuições poderiam acompanhar, gerando mais pobreza e não mais igualdade. Em algumas sociedades os controles distributivos são espontâneos e baseados na virtude moral, como ocorre na Escandinávia, ou no Japão. Mas onde não existe essa autoregulação, a imposição legal das distribuições parece gerar mais problemas do que soluções.

Assim como o excesso de desigualdade provoca revoluções, o excesso de igualdade gera o mesmo resultado, pois aqueles que possuem maiores capacidades e maiores méritos se tornam descontentes com a injustiça que lhes nega seus esforços e competências. O bem está em uma mediania, em que todos devem ceder algo para que a ordem e o bem-estar prevaleçam: o rico deve aceitar ficar um pouco menos rico, e o pobre deve aceitar continuar sendo um tanto pobre, ainda que menos pelo favorecimento de algumas distribuições. O problema, como sempre, é a instituição por vias legais dessa prática, o que é muito pior que o ato voluntário de generosidade da parte daqueles que possuem as riquezas.

Com razão o autor verifica que a conveniência da aplicação de recursos da sociedade em meios militares serve apenas para a dissuasão dos outros Estados, para que os governantes destes calculem o prejuízo de uma guerra e prefiram a paz. Obviamente, qualquer excesso nesse tipo de aplicação gera um desequilíbrio que tende ao uso das forças para a conquista militar que justifique o dispêndio, ou seja, tende para a injustiça.

No Livro III discutem-se os limites dos ideais dos tipos de governo (monarquia, aristocracia e república, que decaem nas formas corruptas da tirania, oligarquia e democracia, respectivamente). Já que a virtude não pode ser obrigatória por lei, mas deve ser voluntariamente buscada pelos cidadãos, deve-se presumir sempre um decaimento pelas formas corruptas de governo, e é por isso que a democracia se torna viável, não por ser boa em si, mas por ser a menos pior das formas corrompidas de governo.

O governo ideal seria uma monarquia, mas só se o monarca fosse infalível como uma divindade, pois a tirania é a pior das corrupções políticas.

O governo mais conveniente seria aristocrático, pois alia o cultivo da virtude com a divisão do poder. Porém, ainda que demore mais, a corrupção também atinge esse tipo de governo, de modo que resta à democracia o papel de governo mais provável, não porque seja o mais virtuoso, mas por ser o tipo de governo onde o vício está mais sob controle, dada a máxima distribuição do poder entre os corruptos. De certo modo competindo entre si, os corruptos limitam os males na sociedade governada democraticamente.

O ideal político de Aristóteles rejeita a noção de vida comum, ou seja, da política definida pela habitação numa mesma localidade, com respeito aos contratos privados e com a colaboração na defesa comum (justiça, polícia e exército). O ideal tem como base virtudes morais e políticas, especialmente de justiça e de amizade, de modo que o ser social seja feliz pela política, por causa dos laços de família e de amizade. Isto denota um traço característico de Ingenuidade da parte do filósofo. Primeiro, pela idéia de que se possa ter muitos amigos. E segundo, pela idéia de que a organização familiar é algo naturalmente ordeiro e benéfico.

Na crítica da corrupção democrática, Aristóteles mencionará o perigo das demagogias:

Assim como o adulador busca ganhar vantagens junto ao tirano, o demagogo busca ganhar vantagens junto às massas. Convém nos lembrarmos que o suposto anticomunista Olavo de Carvalho lançou muitas vezes no Brasil a idéia de governos no estilo dos sovietes, das democracias plebiscitárias, dos decretos no lugar da legislação, etc. Isso é uma desgraça, como Aristóteles mostra. A falta de crítica dos fãs do filósofo, que não percebiam o que isso significava –isto é, uma política coletivista, bolchevista, com uma aparência de conservadorismo–, mostra o quanto é desqualificado o debate político num país como este. Por corruptas que sejam as instituições políticas, é preciso considerar o quanto a vida coletiva poderia piorar sem o resguardo das mesmas, e o quanto é conveniente optar por reformas no lugar de revoluções. Curiosamente, enquanto educador, esse deveria ser o papel de Olavo: criar consciência política com base nas virtudes morais, etc. Das duas uma: ou ele decaiu desde um plano anterior, ou ele se revelou como o que realmente era depois que alcançou alguma notoriedade.

Em 1296a, §8, Capítulo IV, Livro IV, o filósofo defende que a melhor sociedade é aquela em que a classe média é a mais forte. Isto porque os maiores danos surgem dos excessos de pobreza e de riqueza que criam as condições dos crimes e das revoluções políticas. Aristóteles manda um abraço para a Marilena Chauí.

Num testemunho muito direto daquilo que eu chamo de Pacto Sadomasoquista, o autor afirma: “os homens desde muito tempo contraíram o hábito de não poder suportar a igualdade; ao contrário, eles só procuram mandar ou resignar-se ao jugo daqueles que mantém o poder“. Ora, isto se dá por força daquela relação de poder natural que está na origem de todo o organismo político, como o próprio Aristóteles reconheceu, isto é, o domínio do homem sobre a família. Por acaso essa Lei Natural permite a igualdade? O homem só pode governar a família se a sua superioridade for reconhecida. A igualdade arruinaria a vida doméstica. Do mesmo modo, quando analisamos, não o ideal político, mas a sua realidade, encontramos a mesma coisa: uma sociedade dividida entre governantes e governados. Pela igualdade o homem seria amigo do homem, mas quem pode ser amigo e esposo sem conflito, ou amigo e pai? O amor pelo próximo sempre evitaria as relações de poder, tanto do matrimônio quanto da paternidade. Não tem jeito: o ideal do Bem e da Justiça denuncia tanto os limites da Natureza quanto do Costume, ou seja, tanto a idolatria naturalista quanto a humanista.

No Livro V, Capítulo IX, a explicação do autor sobre os meios de manutenção das tiranias é muito interessante e merece ser citada integralmente:

Note-se que a tirania depende basicamente da fraqueza da população, de um desgaste derivado da desordem moral e da criminalidade, e da dificuldade da vida. Neste último aspecto, tanto os impostos quanto os grandes projetos públicos (inclusive guerras) podem ser suficientes para manter uma população na escravidão. Lembramos da linguagem do Faraó no Êxodo, quando o povo hebreu pede para adorar a Deus no deserto: vocês são preguiçosos… e de fato ele aumenta a carga de trabalho dessa população, tanto que o texto diz que Moisés era ouvido, mas que o povo desanimava pelo peso da sua escravidão. Aristóteles, ao descrever os meios de manutenção da tirania, explica o que é que mantém o Sistema da Besta em funcionamento. Para ele, esta é apenas uma das possibilidades políticas para o ser humano, pois ainda trabalha na esteira de um certo idealismo humanista herdado de Platão. Nós sabemos melhor, ou deveríamos saber, que esta não é uma mera possibilidade, mas é a regra e a tendência. Um governante justo, por exemplo, ou uma legislação justa, é excepcional na História.

Mais adiante encontramos, em 1326b, Capítulo IV, Livro VII, uma passagem que faz o alerta sobre o tamanho dos Estados:

Isso deveria ser suficiente para mostrar como a democracia de massas é diferente do ideal político grego. Onde a distância e o desconhecimento entre governantes e governados é tão grande, como ocorrem com os Estados modernos, não é possível nem a eleição de pessoas realmente confiáveis, e nem o constrangimento moral daqueles que falham nas suas posições de poder político. É por efeito dessas grandes aglomerações humanas que não é possível haver verdadeira paz e justiça no mundo: seria preciso que os Estados fossem muito menores e mais diversos, o que só seria viável com o desarmamento moral generalizado, o que dependeria, por sua vez, de um progresso espiritual que rompesse as cadeias do Pecado Original e rendesse as sociedades do governo divino das consciências, como especulamos no ideal da Melhor Geração.

No §7, 1332a, Capítulo XII, Livro VII, o filósofo afirma o seguinte: “O homem segue a natureza e os costumes. Segue também a razão. Só ele é dotado da razão. É preciso, pois, que haja acordo e harmonia entre essas três coisas. Porque a razão leva os homens a fazerem muitas coisas contrárias ao hábito e à natureza, quando eles se convencem de que é melhor fazer de outra forma” (grifo meu). Ou seja, o Bem transcende o Naturalismo e o Humanismo, tanto a Lei Natural quanto o Costume. Essa é a premissa do Idealismo Transcendental e da vida na Presença. Neste sentido Aristóteles se mostra como um impecável discípulo do platonismo. A razão humana conhece verdades que se referem a bens que transcendem a esfera do natural e do humano. De tal modo que submeter-se à Natureza e ao Costume é uma forma de escravidão do superior pelo inferior, isto é, da potência racional pelo guiamento naturalista ou humanista. É por esta razão também que o amante da sabedoria, que é o próprio filósofo, tende a ser o mais feliz dos homens, por ser o mais livre para contemplar as verdades que transcendem o próprio homem e a natureza.

Mais adiante o autor confrontará a escolha dos espartanos de priorizar a virtude guerreira, e mostra porque a paideia ateniense é superior, como aliás a filosofia platônica e aristotélica será superior a qualquer coisa que surja no Ocidente durante coisa de uns sete séculos:

É a marca de uma inteligência superior o saber distinguir com clareza, facilidade e rapidez entre meios e finalidades. A virtude guerreira, ligada à irascibilidade, é tão competente em seu próprio escopo quanto o é a virtude da Justiça, mas é menos necessária do que esta, pois onde a Justiça impera a violência é desnecessária. Aplica-se a virtude guerreira quando justamente é preciso agir violentamente contra o que é injusto. Deste modo a educação ateniense, ou simplesmente a educação grega fora da Lacedemônia e de Creta, é superior, pois tem como objeto aquilo à que a coragem, bem como toda a virtude guerreira, se submete como serva, isto é, a Justiça, o Bem, etc. E de modo bastante coerente, o legado civilizacional mais duradouro e valioso para nós até hoje vem de outras partes, mas não de Esparta.

Isto foi tudo o que Aristóteles disse e que nos importa em sua obra A Política.

Resta ao problema da política em geral, como já afirmei antes, a sentença de Res exclusae in limine pela hipótese da Melhor Geração: uma solução com a multiplicação dos Estados, o desarmamento moral generalizado, o amplo direito migratório, etc. O subsídio escriturário para essa posição política se encontra no I Samuel, quando o profeta afirma que Israel não deveria ter um rei de carne e osso, porque o Senhor já é o seu rei. Quando Deus é reconhecido como o governante sobre as consciências daqueles que amam o Bem –e as instituições dos juízes e dos profetas são dirigidas a esse alvo–, a Justiça é praticada e há paz verdadeira na Terra, não sendo necessário assim um poder humano que se sobreponha. A concentração do poder humano é necessária para o arbítrio das questões daqueles que são escravos da Maldição e do Poder, i.e., as partes do Pacto Sadomasoquista. Quando Jesus diz que se deve dar a César o que é de César, é disso que ele fala. Deus é o Senhor dos homens livres. César, o Faraó, ou o Anticristo, são os senhores dos escravos do Sistema da Besta.

Se o mundo se tornasse como um grande mosteiro, ou um grande convento, uma verdadeira casa de oração, o problema político seria resolvido muito rapidamente, pois o problema da política é a Justiça, e esta depende da nossa Humildade diante de Deus. O ponto fundamental dessa solução política, como aliás também ocorre na vida privada, é a renúncia ao Pecado Original na imitação de Jesus Cristo.

O cidadão da polis aristotélica –assim como o da platônica– é membro da Cidade dos Homens. Por mais justo, virtuoso e ordeiro que seja, seu horizonte máximo é a consumação de um certo humanismo que ignora os fins últimos do ser humano que vive diante de Deus. Estas finalidades mais excelentes fazem parte da experiência daquele que habita a Cidade de Deus. Com estas categorias agostinianas superamos o idealismo político dos gregos antigos, submetendo tudo à supremacia do Rei dos Reis.

Nota espiritual: 5,0 (Calaquendi)

Humildade/Presunção6
Presença/Idolatria4
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo6
Vigilância/Ingenuidade4
Discernimento/Psiquismo5
Nota final5,0

Teste Jenni: Dr. Sono, filme por Mike FLANAGAN

BRIEFING CGPT

Sinopse: Décadas após os eventos traumáticos do Overlook Hotel, Danny Torrance, agora adulto e alcoólatra, vive atormentado pelos fantasmas — tanto literais quanto simbólicos — de seu passado, enquanto tenta silenciar o dom psíquico da iluminação que o atormentou desde criança. Após um processo de recuperação e de busca por reconstrução pessoal, Dan encontra Abra Stone, uma jovem com poderes muito mais fortes que os dele. Ela é caçada por um grupo de seres imortais chamado True Knot, que se alimenta da “essência” das crianças iluminadas. Dan precisa enfrentar não apenas esses inimigos sobrenaturais, mas também reconciliar-se com seu passado, o que o leva de volta ao lugar onde tudo começou: o Overlook Hotel.

O filme mistura horror psicológico, drama e fantasia espiritual, explorando temas de redenção, dor, poder e transcendência.

Principais Questões Filosóficas e Espirituais:

Art. 1 CGPT – O problema do mal e o sofrimento: O True Knot encarna o mal parasitário, subsistindo ao sugar a energia vital de outros. Filosoficamente, eles representam o vampirismo existencial — o uso dos outros como meio, e não como fim. Espiritualmente, o mal manifesta-se não como um poder autônomo, mas como uma degeneração do espírito: a perda da luz interior que leva à necessidade de devorar a luz alheia.

Esse vampirismo constitui uma apropriação da essência vital, um símbolo do que de fato é a Iluminação divina que sustenta a atividade intelectual das mônadas criadas. Aqueles que, por escolha, rejeitam a Luz divina como fruto da Graça tornam-se parasitas, dependendo de roubá-la daqueles outros que ainda vivenciam a plenitude das bênçãos de Deus. O parasita, vampiro, usurpador ou ladrão é, portanto, um dependente da Graça pela via indireta do roubo. Assim, a “Iluminação” não é meramente um dom psíquico, mas uma metáfora para a conexão intrínseca com o divino e a capacidade de experienciar a plenitude da existência, que os True Knot, em sua depravação espiritual, buscam avidamente consumir. A sua busca incessante reflete uma profunda ausência de significado e um vazio existencial, preenchido pela apropriação forçada da vitalidade alheia, uma distorção perversa do princípio de transcendência que a iluminação verdadeira oferece. Esses seres decaídos estão presos num sistema fechado, idolátrico, entrópico e decadente, exatamente como é representado no simbolismo do Ouroboros, a serpente que precisa devorar a própria cauda para sobreviver. Nesse contexto, o ciclo vicioso do True Knot ilustra a falácia da imortalidade obtida através da negação da própria mortalidade e da exploração alheia, revelando uma forma grotesca de autossuficiência que, paradoxalmente, depende da aniquilação do outro para a sua perpetuação. Isso nos remete também ao problema da imortalidade simbólica do Pecado Original, ou Pacto Ouroboros. A busca pela imortalidade e poder por meio da usurpação da vitalidade alheia, portanto, não é uma expressão de liberdade, mas uma prisão autoimposta que perpetua um estado de carência ontológica, onde a existência é definida pela ausência e pela constante necessidade de consumir o que falta. Esta condição os aprisiona em um ciclo de dependência insaciável, impedindo qualquer forma de verdadeira transcendência ou conexão genuína com o divino.

Contraponto Jenni: No entanto, pode-se argumentar que, da sua própria perspectiva distorcida, o True Knot não está meramente rejeitando a luz, mas sim buscando uma forma de eternidade ou “iluminação” através de meios profanos, percebendo a essência vital alheia como a única fonte acessível de transcendência em um universo que, para eles, é desprovido da Graça divina.

Ora, isso é apenas uma mentira. Indiretamente, esses seres continuam dependendo da Graça, embora se recusem a admitir isso. Sua malícia e sua violência refletem apenas a sua rebeldia temporária contra o ordenamento divino das coisas. Lembremos que o Decreto de Gênesis 3 que determinou a morte das Obras da Carne —e que é a realidade da qual o True Knot tenta fugir como seu objetivo principal—, não só é inescapável como é benéfico. A rebelião é uma tolice, sua meta é frustrada, e seu propósito é humilhado pelo império do Amor divino. 

Art 2. CGPT – O dom e o fardo de ser “iluminado”: O “shining” apresenta-se tanto como uma bênção quanto como uma condenação. Filosoficamente, ele simboliza uma consciência ampliada — uma percepção que transcende o ordinário, mas que, paradoxalmente, acarreta dor, ecoando a alegoria da caverna de Platão: ver demais é sofrer demais. A tentativa de Danny de suprimir o dom com álcool aponta para a tensão entre lucidez e anestesia — um tema existencialista que ressalta o peso de saber demais em um mundo indiferente.

Danny não se enquadra na definição de uma pessoa “normal”. Em um mundo decaído e amaldiçoado, governado por forças obscuras e mergulhado numa cultura de Cativeiro, a “normalidade” exige a ilusão, a rejeição da Vigilância e a aceitação da Ingenuidade. Danny, por sua capacidade de perceber o que os “normais” ignoram, não pode se permitir tal luxo e, por isso, é particularmente perseguido. No entanto, a verdadeira marca da Vigilância não reside apenas na percepção do sobrenatural, pois este pode — e frequentemente é — interpretado de forma ingênua.

Contraponto Jenni: Contudo, pode-se argumentar que essa mesma ‘anormalidade’, longe de ser apenas um fardo, é a condição necessária para a verdadeira vigilância e resistência em um mundo que se recusa a ver. A sua percepção aguçada, embora o torne um alvo, também o capacita a ser um baluarte contra as forças obscuras, transformando sua aparente fraqueza em uma forma singular de força e propósito. A capacidade de Danny de discernir as realidades ocultas, portanto, não é uma anomalia a ser suprimida, mas uma ferramenta essencial para a desestabilização das estruturas de poder que se alimentam da ignorância e da complacência. Nesse sentido, a “anormalidade” de Danny configura-se como uma condição sine qua non para a agência moral e a autonomia em um cosmos que, de outra forma, perpetuaria a heteronomia e a ilusão.

A suposta anormalidade é um juízo desqualificado desde o ponto de vista contaminado pela influência do espírito de Ingenuidade. A verdadeira normalidade reside na vigilância e na capacidade de discernir a verdade em meio às ilusões, transformando o “fardo” do shining em uma ferramenta de libertação e esclarecimento para si e para os outros. Neste sentido confirma-se a hierarquia anunciada pelo Apóstolo Paulo que coloca os pneumáticos acima dos psíquicos. Ser “iluminado” seria ter algum nível de Discernimento espiritual, o que é interpretado como anomalia num mundo cheio de obscuridade psíquica a respeito do sentido espiritual das coisas.

Art. 3 CGPT – A natureza da alma e a sobrevivência após a morte: O filme postula que a consciência sobrevive à morte, contudo, não de forma estática, mas por meio da transmutação. O “vapor” serve como metáfora para a energia espiritual, uma visão quase panteísta onde a vida é compreendida como energia em constante movimento e consumo. Há, ainda, ecos do espiritismo, sugerindo que os mortos não encontram descanso até alcançarem a paz moral.

Essa é uma abordagem própria para a Idolatria. O “vapor” obviamente não pode representar a verdadeira substância, isto é, a Mônada. E a experiência post mortem como aparição fantasmagórica também dá uma sugestão de sabor gnóstico. Isso tudo nos impede de nos entusiasmar demais com o filme.

Sem contrapontos ao argumento.

Art. 4 CGPT – O ciclo da vida e da morte: O final sugere que o mal não é erradicado, apenas transformado. Abra herda o brilho e, com ele, o dever de lidar com tal poder — como uma nova geração herda os fardos espirituais da anterior. É uma meditação sobre karma e continuidade, ecoando tanto o pensamento oriental quanto a tragédia grega: o destino se repete até ser compreendido.

Nesse sentido, o filme pode ser considerado anticristão, dado que nega implicitamente a Salvação pela Ressurreição e, consequentemente, a Boa Nova do Evangelho. Afinal, qual o propósito do confronto de Danny e, posteriormente, de Abra com os espíritos malignos? Se a narrativa se resume à mera sobrevivência dos “bons”, a moralidade dos protagonistas torna-se superficial, desprovida de conexão com uma ordem transcendente. A ausência de uma resolução definitiva que transcenda o ciclo de violência e retribuição aponta para uma visão cíclica e pessimista da existência, onde o mal é uma força persistente, transmitida de geração em geração. Essa perspectiva contraria diretamente a promessa cristã de uma vitória definitiva sobre o mal e a morte, reforçando uma cosmovisão que parece aprisionar a humanidade em um eterno retorno de conflitos espirituais. A reiteração incessante desses ciclos, desprovida de uma intervenção divina ou de uma redenção metafísica, projeta uma realidade na qual a transcendência é inatingível, e a luta moral se torna um fardo perpétuo. Essa concepção de um destino inelutável, onde o mal se perpetua sem uma perspectiva de libertação genuína, estabelece um contraste marcante com a teleologia cristã, que visa a uma consumação escatológica de toda a história em Cristo. A ausência de tal culminação na narrativa do filme, portanto, reforça uma visão existencialista onde a humanidade está condenada a reviver suas tragédias, desprovida da esperança de um fim redentor. 

Contraponto Jenni: No entanto, é possível argumentar que, apesar de não aderir a uma escatologia cristã tradicional, o filme ainda propõe uma forma de redenção e esperança através da agência moral e da resiliência humana. A agência moral dos personagens, manifestada na sua capacidade de escolher entre o bem e o mal e de agir em conformidade com essa escolha, transcende a mera sobrevivência e confere significado à luta contra as forças obscuras, demonstrando que a redenção pode ser alcançada por meio da ação ética. Ademais, a sucessão geracional no enfrentamento do mal, encarnada em Abra, pode ser interpretada não como uma negação da salvação, mas como a afirmação de uma continuidade na luta pela justiça, onde cada indivíduo contribui para um progresso ético coletivo. Essa perspectiva ressalta a importância da agência individual e da responsabilidade intergeracional na construção de um futuro mais justo, mesmo na ausência de uma intervenção divina explícita.

Mas qual é o significado dessa suposta redenção? Se ela se manifesta apenas como um alívio temporário, sem uma ruptura ontológica com o ciclo de sofrimento, ela se assemelha mais a um paliativo existencial do que a uma verdadeira libertação. Ou ainda pior, pode ser visto como recurso de equalização ou equilíbrio que atue como argumento de legitimação da condição da Mistura. Existe o Overlook, e o True Knot, mas existem também Danny e Abra… Isso não é Salvação nem Redenção de nada, é a continuidade do status quo, para o benefício dos parasitas e usurpadores que dependem justamente da condição da Mistura para se perpetuar. Os demais argumentos são igualmente falíveis: tanto o do progresso intergeracional que torna as novas gerações escravas de uma dinâmica que poderia ter sido extinta por atos voluntários de abstinência na perpetuação do Pecado Original, quanto o do progresso da coletividade que anula completamente a noção de integridade moral do indivíduo que tem um destino único diante de Deus.

Art. 5 CGPT – Síntese Filosófica e Espiritual: Doutor Sono é menos um filme de terror e mais uma parábola sobre a cura da consciência dividida. Ele propõe que o verdadeiro horror não provém dos fantasmas, mas da recusa em enfrentar o próprio passado e aceitar a própria luz. O caminho da redenção implica atravessar o inferno interior e transformar a dor em compaixão — o “brilho” em serviço ao outro.

Danny e Abra não possuem uma “consciência dividida”. Eles foram traumatizados pelo mal. Danny foi afetado pela ação de seu pai e pelos espíritos do Hotel Overlook, enquanto Abra sofreu com as ações do True Knot. O filme, de fato, retrata uma luta pela sobrevivência e um triunfo moral contra os vilões. Ambos os heróis precisam decidir agir e abandonar sua indiferença, o que, mais do que um conflito de consciência, é uma questão que envolve a virtude moral da Coragem. 

Contraponto Jenni: Contudo, pode-se argumentar que, embora traumatizados, a forma como Danny, em particular, lida com seu “brilho” e com os fantasmas do Overlook — inicialmente reprimindo-os e buscando o esquecimento — demonstra uma clara cisão interna. Essa negação do próprio dom e da própria experiência traumática é, em essência, uma manifestação de uma consciência dividida que precisa ser integrada para alcançar a cura e a redenção, como sugerido pelo Art. 5 CGPT. A superação dessa cisão interna, por meio da aceitação e ressignificação do trauma, é central para a jornada de Danny, transformando seu poder de “brilho” de um fardo em uma ferramenta de proteção e auxílio. Essa transformação não apenas o habilita a confrontar as forças malignas externas, mas também representa uma integração de sua própria psique, permitindo-lhe operar com uma plenitude moral e espiritual antes inatingível. A narrativa, sob esta ótica, transcende a mera representação de eventos externos para se aprofundar na complexidade da psique humana e na sua capacidade de resiliência frente à adversidade existencial. Essa perspectiva oferece uma interpretação mais profunda da trama, alinhando-se com a ideia de que o verdadeiro horror reside na recusa em integrar as partes fragmentadas do self, em vez de se limitar a uma batalha contra entidades externas.

Posso aceitar em parte a explicação sobre a fragmentação da psique dos protagonistas, como aliás costuma ser relatado a respeito dos problemas de desenvolvimento da personalidade de pessoas traumatizadas, mas isso só alcança uma parte do entendimento do caso, e a parte menos importante. Pelo dom do Discernimento, contra o espírito do Psiquismo, há um limite na explicação desse processo causal. Independentemente das pressões psíquicas, os dois personagens são agentes morais livres que devem decidir a respeito de agir responsavelmente, com coragem, diante dos desafios, e essa circunstância independe da sua condição psíquica anterior. Há um agravante, por certo, mas substancialmente não há diferença no desafio moral: um agente não traumatizado teria que ser igualmente corajoso para enfrentar os dilemas éticos que se apresentam. Particularmente, sim, Danny e Abra tiveram que lidar com algum trauma, mas o cerne de sua jornada reside na escolha consciente de confrontar o mal, uma decisão que transcende a mera superação de distúrbios psicológicos. É uma condição universal.

Doutor Sono, filme por Mike FLANAGAN

Neste filme que tinha tudo para dar errado, mas que até que funcionou bem, nós acompanhamos a trajetória como adulto do protagonista Danny Torrance, o menino do filme O Iluminado, de Stanley Kubrick, que já avaliamos aqui antes.

O filho de Jack Torrance cresceu perturbado, como era de se esperar. Prefere o bloqueio ou o uso limitado de suas capacidades paranormais, nas quais é treinado pelas aparições do antigo cozinheiro do Hotel Overlook, que se torna o seu tutor. Boa parte de sua vida é passada no vício do alcoolismo, na esteira da fraqueza de seu pai. Até que ele não aguenta mais e parte para uma vida nova num novo lugar onde ele consegue usar suas capacidades para uma boa finalidade, especificamente dando conforto para idosos e pacientes terminais quando chega o momento destes morrerem. Daí que ele recebe o alcunha de “Dr. Sono”.

Acontece que ele receberá mensagens de um correspondente secreto que mais tarde se revelará como a outra protagonista do filme, a menina Abra. Superpoderosa na sua própria “iluminação”, Abra terá por sua vez o seu caminho cruzado com uma gangue de vilões chefiados por Rose.

Quem são estes? São seres humanos convertidos em um tipo de ser decaído, como vampiros ou demônios, cuja atividade principal é a absorção do sopro vital de vítimas inocentes, especialmente crianças com o dom da “iluminação”, para receberem o dom de prolongamento de suas próprias vidas. A gangue, que se autointitulam “O Verdadeiro Nó”, vive como ciganos nômades, vagueando de cidade em cidade em busca de novas presas, ou mais raramente em busca de talentos que possam ser integrados ao grupo. Rose, a líder que sempre veste um chapéu preto, é a que possui os maiores dons para detectar novas vítimas, e é quem também parece ser responsável pelos rituais de coleta do recurso de sobrevivência do grupo, do qual ela faz um estoque controlado.

No que entendo ser a cena mais importante, o filme mostra o grupo capturando um menino que será levado até um local remoto onde os vilões farão o ritual de roubo do seu sopro vital. Isto importa porque é a maior ponte da ficção com a realidade. O menino não é simplesmente assassinado, mas é torturado com crueldade por Rose. Parece que o sofrimento da vítima está diretamente ligado à qualidade da extração do sopro vital. Depois podemos checar se isto consta do livro de Stephen King, o que não é difícil de se acreditar. Faz parte do esquema perverso do mundo o sistema de constante compartilhamento das verdades obscuras e comprometedoras na forma das artes, de modo que o público esteja de algum modo ciente do que é que mantém o seu mundo funcionando, e assim exista algum nível sutil de comprometimento moral, especialmente da parte daqueles que contribuem com a continuidade do Pecado Original, seja com sua prática ou com sua legitimação, o que constitui uma forma de cumplicidade. A esse respeito recomendo que se tome conhecimento do argumento de Bruno Contestabile na sua leitura de Aqueles que partem de Omelas, de Ursula K. Le Guin.

Ora, todos os usurpadores que servem ao Ouroboros, que é o maior Usurpador de todos ele mesmo, basicamente extraem o seu poder do sofrimento de suas vítimas. Isso se aplica tanto a anjos caídos, ou demônios, que dependem da idolatria humana para continuar a existir como os falsos deuses que pretendem ser, quanto a servidores humanos que vendem suas almas em troca de benefícios temporais nas posições de poder sobre as massas (as Torres, Cavalos, Bispos, Rainhas e Reis do Sistema da Besta). Esse vampirismo é retratado de forma bem direta pelo filme, embora os vilões sejam falsamente retratados como meros marginais afastados dos centros de poder da sociedade, quando o que ocorre na realidade é exatamente o oposto. Apenas por essa razão não podemos dar uma nota maior para o critério de Vigilância.

O filme se desdobrará através de um elo psíquico de Abra com o menino vitimado pela gangue de Rose, e então de Abra com a própria Rose. Um conflito e uma caçada se instaurará. Rose fica obcecada e temerosa com o grande poder de Abra. A menina se defende sozinha o máximo que pode, mas sabe que o cerco está se fechando e por fim resolve pedir ajuda ao Dr. Sono, Danny Torrance.

Relutante de início, Danny será estimulado pelo seu tutor que reaparecerá uma última vez para confirmar a sua missão: assim como ele ajudou Danny (lembremos que o cozinheiro literalmente morreu para salvar o menino no primeiro filme), agora chegou a vez de Danny ajudar Abra.

Apesar de algumas baixas (um amigo de Danny e o pai de Abra), eventualmente a dupla de heróis consegue eliminar toda a gangue, exceto por Rose, que está afastada do conflito até que chegue o fim. Furiosa com a morte de todos os seus companheiros, a vilã perseguirá a dupla com pleno empenho, no uso de todas as suas reservas dos sopros vitais de vítimas do passado. Mas Danny tem um plano: levar Rose para um território onde a caçadora possa se tornar caça, isto é, o próprio Hotel Overlook.

Dito e feito, Rose é confrontada pelos espíritos famintos do hotel, e o próprio Danny termina por se sacrificar na explosão do Hotel, para garantir que Abra possa sobreviver e continuar sua própria trajetória. Ele voltará como um espírito para incentivá-la em seu novo caminho.

Nota espiritual: 5,1 (Calaquendi)

Humildade/Presunção5
Presença/Idolatria4
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno4
Soberania/Gnosticismo5
Vigilância/Ingenuidade8
Discernimento/Psiquismo5
Nota final5,1

Ética a Eudemo, livro por ARISTÓTELES

Literariamente bem mais agradável, esta obra do nosso filósofo trata novamente do objeto de sua Ética a Nicômaco: a ciência da felicidade, a eudaimonia. O começo do seu argumento oferece porém algumas novidades interessantes. Por exemplo, ele declara que a vida humana entregue ao seu dispositivo natural não vale a pena ser vivida, por ser muito contrária ao que é escolhido voluntariamente, ou apetecível, e que para muitos seres humanos seria melhor não ter nascido (1215b20). Isso coaduna com os muitos chamados e poucos escolhidos do Evangelho, e com a diferença entre a participação na Primeira Ressurreição, que só a menor parte alcança, e a participação na Segunda Ressurreição, ou Dia do Juízo, onde a maioria termina.

Também é notável que logo no início o Estagirita separa a investigação do Sumo-Bem da investigação da conveniência da filosofia para a felicidade. Outros tipos de felicidade precisam ser comparados com o da vida contemplativa ou especulativa. Já sabemos onde ele deve terminar sua investigação, mas ele quer nos levar lá por raciocínios e evidências. É justo que faça isso, mas é algo dispensável de acordo com a Soberania. Melhor fez Plotino, por exemplo, dando por pressuposto o motivo de sua busca e se dedicando a se aprofundar nela própria. Se ao fim a maioria não pode ser persuadida à respeito do Bem, como o próprio Aristóteles já admitiu antes, de que adianta argumentar?

O autor reafirma que a virtude é uma atividade da alma em que se alcança a mediania racional entre as deficiências e os excessos diante das paixões. Não temos grandes novidades aqui, em comparação com o que já vimos na Ética a Nicômaco, exceto talvez pela descrição do que Aristóteles chama de Malevolência: oposto à deficiência da Justa Indignação diante da maldade, que é o caso da Inveja (a tristeza com os bens e o sucesso alheio), a Melevolência é a alegria com o sucesso e a prosperidade alheia mesmo quando esta implica em injustiça e maldade. Ora, quanto não podemos compreender da natureza humana e da baixeza moral com a qual convivemos, distinguindo justamente esses extremos decadentes na nossa sociedade? E isso não reflete de algum modo uma aplicação dessa ciência moral da Ética aos dois lados da Dialética do Ouroboros? Não são os malevolentes aqueles que legitimam a Mistura ao aprovar a injustiça, e não são os invejosos aqueles que rejeitam o Limite ao detestar o que é bom junto com o que é mau?

Nos Capítulos 6 e 7 do Livro II o autor argumenta de modo mais claro e elegante à respeito das virtudes enquanto atividades de um ser livre que se torna gerador de princípios de ações (e de suas consequências). Por trás, portanto, da máquina moral que produz a força das virtudes, existe a “prévia escolha” (proaíresis). Esse é um testemunho indireto da Soberania, que por mais fraco que seja possui o seu valor. O tradutor chega a usar o termo “escolhido” (proaíretes) para se referir ao objeto desse ato inaugural da alma na autodeterminação da sua moralidade, o que é uma referência que exibe diretamente o valor do principal dos Cinco Conceitos Sinóticos da Monadofilia.

No Capítulo 5 do Livro III o autor volta a falar da “Grandeza de Alma” mencionada na Ética a Nicômaco, mas com uma conotação que parece mais correta. Sem o juízo sobre os méritos das virtudes fica mais fácil afastar o perigo do Orgulho. Esta Grandeza de Alma está mais conectada à idéia de Magnanimidade, da qual aliás é um termo sinônimo. Tal virtude provê o magnânimo de desdenho e desprezo pelos vícios, ou mesmo pelas paixões quando essas provocam os vícios. Os ignorantes afetados pela deficiência da pequenez julgam a Magnanimidade como arrogância, porque desconhecem o mal da valorização daquilo que ainda respeitam e estimam, mas que é inferior. O magnânimo possui uma estimativa correta com relação ao valor real das coisas, especialmente do ponto de vista moral. Obviamente, assim como ocorre com todas as virtudes morais, a Magnanimidade é tão boa e mais plena quanto for grande a Sabedoria da qual depende. No mundo atual onde as pessoas são tão massacradas com estímulos e distrações diversas é quase impossível falar de Magnanimidade. Mas isso é relevante espiritualmente, porque esta virtude dá um testemunho indireto e valioso do dom da Soberania, especialmente numa sociedade dominada por uma cultura de massas.

No Livro VII, Capítulo 2, 1237a5, o autor nos provê uma excelente ferramenta para o juízo da hipocrisia, enquanto tratava da virtude da Amizade: “É necessário que as coisas nobres sejam prazerosas. Quando ocorre divergência entre eles, a pessoa fica impossibilitada de ser definitivamente boa, sendo possível nela ser gerado o descontrole, visto que o descontrole tem como causa a divergência entre o bom e o prazeroso nas emoções“. Calcule-se o quanto é mentirosa a falsa virtude daqueles que se acham bons justamente por seu padecimento, tal como fariam os masoquistas. Dores e sofrimentos, são compensados pela virtude verdadeira que dá prazer para aquele que a experimenta. Jesus se referiu a isso quando orientou sobre a maneira correta de se jejuar, isto é, com a alegria de alguém que faz algo bom e prazeroso à sua alma, e não com o pesar de quem se lamenta por sua situação.

A amizade verdadeira, que chamamos de Monadofilia Menor na filosofia cristã, ou de Segundo Mandamento na teologia, não é o amor pelas qualidades do amigo, pois estas nos pertencem como bens próprios, de acordo com o amor próprio ou Monadofilia Primeira. O amor ao próximo é o desejo do seu bem enquanto singularidade. E Aristóteles é capaz de reconhecer a excelência dessa amizade, que ele vincula à virtude, sobre aquelas baseadas no prazer e na utilidade: “a satisfação da amizade é aquela extraída do próprio indivíduo enquanto ele mesmo” (1237b1, Capítulo 2, Livro VII). O que coaduna com a melhor definição que o filósofo tem do amigo: o amigo é um outro eu.

Na maior parte do Ética a Eudemo o autor repete as idéias de sua Ética a Nicômaco, exceto pelos destaques que já demos, e pelo estilo em geral, que é mais agradável como já foi dito.

Isto até o Livro VII. O Livro VIII, que em algumas edições é embutido como capítulos extras do livro anterior, foi separado pelo editor deste trabalho, seguindo a prática de alguns editores das obras do Estagirita, o que entendo ser um procedimento muito adequado, dada a diferença no assunto.

Neste último Livro VIII o autor trabalhará na muito árdua e importante investigação do problema da sorte (tykhe), especialmente quando esta beneficia agentes que são moralmente destituídos das virtudes que, de acordo com a natureza, deveriam ser necessárias para produzir o seu sucesso. Vejam o que é a honestidade de um filósofo de verdade. É tão mais fácil espíritos superficiais simplesmente desconsiderarem aquilo que a observação da experiência real revela todos os dias: que os bens da vida não são sempre obtidos por aqueles que supostamente deveriam ser os únicos beneficiados. Aristóteles, que é modelo de seriedade filosófica e continuará sendo até o Fim dos Tempos, não ignora o problema. Sua mente busca a lógica dos dispositivos naturais de causalidade. Mas ele não ignora o fato brutal de um desajuste entre essa expectativa lógica e a realidade observada. E não teme avaliar essa questão desde o ponto de vista de uma intervenção divina, pois para o buscador de ordem isso é inescapável. Ou seja, ele não quer abandonar a razão e o ordenamento da realidade como recurso à explicação da sorte, isto é, ele quer eliminar a idéia de acaso e da própria sorte. Diz ele: “causa estranheza, porém, que um deus ou divindade (theon e daimona) se dispusesse a amar um indivíduo dessa espécie e não o indivíduo melhor e o mais sábio“. Seguindo essa pista, ele diz também: “Se, contudo, procedermos à sua completa eliminação, diremos que nada acontece em decorrência da sorte, ainda que digamos ser ela uma causa simplesmente porque, embora exista uma outra causa, não a vemos; por conta disso, ao definir a sorte há quem a entenda como uma causa insuscetível de ser calculada pela razão humana (aitían álogon anthropínoi logismôi), concebendo-a como algo autenticamente natural“. Aristóteles está na pista da Graça. E ele deduzirá que a alternativa seria aquilo que eu chamo de Cacolatria, ou seja, a destruição de toda noção de ordem subjacente ao Ser, um culto ao Caos como realidade primordial. Em suma: se existe sorte como caos, tudo tem que ser sorte (caos), embora tenhamos como que uma ilusão de ordem à partir da nossa própria racionalidade, que seria anômala com relação ao Ser. Esta é a interpretação que algumas pessoas farão inclusive da filosofia kantiana, mais tarde. Se, ao contrário, existe ordem no ser das coisas, então há um Logos transcendente que ordena todos os seres, ainda que este não seja compreensível para nós. Esta é a chave do enigma, a virtude da Humildade para não projetar sobre o ignorado (ou o inconsciente) uma irracionalidade que não revela o Ser, mas a nossa limitação de conhecê-lo.

Aristóteles parece estar numa pista muito boa, apesar de ele não se dedicar aqui ao desenvolvimento dessas idéias. Mas sua luta contra o Caos é admirável e louvável, em contraste com o que seria esperado de um habitual filósofo da natureza como ele. E chegamos ao ponto de questionar, na leitura desta obra, se aqui o autor não superou mesmo o Naturalismo, para a grande humilhação dos idólatras da natureza que persistem até hoje na sua obstinação. Como pode um pagão, ignorante da Revelação, e grande estudante da Natureza como foi Aristóteles, conceber os limites da hipótese do Caos primordial enquanto até hoje em dia rastejam sobre a Terra esses espíritos enfatuados com a sua recusa de admirar, pela beleza ordenada da arte, a virtude do Artista? O Estagirita alcançou aqui algum testemunho da Presença, por menos consciente que seja:

Quem não se impressionar com esse testemunho vindo de um filósofo pagão do Século IV a.C. não tem o direito de se considerar um bom juiz de valor. Aristóteles está praticamente reconhecendo, quando fala que o “princípio da razão não é a razão, porém algo superior“, do que chamamos filosoficamente de Teleologia Metaracional do Sumo-Bem, um dos Cinco Conceitos Sinóticos da Monadofilia, e daquilo que na teologia se chama de Lei do Amor, ou Lei da Graça. Seu termo “inspiração” (enthousiasmón) é quase uma descrição direta da atuação do Espírito Santo.

Dir-se-ia que estou vendo o que eu busco, isto é, fazendo uma leitura cristã da filosofia aristotélica, etc., mas que diabo de leitura eu posso fazer senão a que eu sou capaz e que quero fazer? Não se intimida o buscador da verdade que já tem consciência do dom de Soberania. O pesquisador neutro e cético, afinal, se for honesto, é ele também um amante da verdade tanto quanto Aristóteles o foi, e se persistir nessa trilha chegará a excelentes resultados. Não devemos temer pelos bem intencionados e sinceros de fato. E por que temeríamos os maliciosos e mentirosos que não conhecem nem a si mesmos?

No fim desta obra o autor termina com um excelente testemunho, na esteira da sua explicação a respeito da nobreza (kalokagathía), que é a virtude completa. Diz ele: “Deus, com efeito, não é governante imperioso, sendo sim aquilo em favor do que a Sabedoria emite suas ordens. Daí resulta que Deus de nada necessita. Portanto, a escolha e posse de coisas naturalmente boas, não importa se coisas boas relativas ao corpo, à riqueza, a amigos ou a outros bens, que maximamente vierem a produzir a especulação de Deus (theoû theorían) são as melhores, constituindo também a mais nobre das normas; e uma e outra que, por deficiência ou excesso, venham a nos impedir de servir a Deus e especulá-lo, são ruins. Esta norma a alma possui, sendo ela a norma mais excelente para a alma, a saber, perceber o mínimo da parte irracional da alma enquanto tal“.

A mínima percepção da parte irracional enquanto tal significa o erro da Idolatria: tomar por substancialmente bom aquilo que não o é. O que significa que indiretamente, ou nem tanto, Aristóteles termina sua Ética a Eudemo com um testemunho do dom de Presença.

Esta obra começou melhor que o outro trabalho sobre a Ética, do ponto de vista do estilo, mas terminou realmente melhor na própria qualidade do seu conteúdo, especialmente pelos efeitos do Livro VIII. É notável que a Ética a Nicômaco seja mais conhecida e propagada na cultura filosófica do que esta obra. Talvez isto tenha sido feito por uma certa predileção iluminista, o que não seria de se estranhar.

Nota espiritual: 5,6 (Calaquendi)

Humildade/Presunção6
Presença/Idolatria7
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo6
Vigilância/Ingenuidade5
Discernimento/Psiquismo5
Nota final5,6

Ética a Nicômaco, livro por ARISTÓTELES

Nosso filósofo começa afirmando que a finalidade de qualquer coisa é o seu bem e que o bem último do ser humano é a sua maior e melhor finalidade. Neste sentido o bem coletivo é proposto acima dos bens individuais. A ética, portanto, enquanto ciência da busca do bem, ou ciência da felicidade, é mais importante pelos seus efeitos no âmbito da política do que da moral individual. Isso pode levar a uma certa idolatria humanista, e ao bolchevismo espiritual, quando se vive para o ideal coletivo da humanidade, ao invés de se viver individualmente na Presença de Deus. O idealismo político dos gregos antigos gera esse problema. Mas é claro que observamos isso desde o ponto de vista privilegiado de quem já sabe do fracasso da polis no período alexandrino e helenístico, para não falar do declínio e queda do Império Romano.

O Estagirita notará que o problema da ética é viável apenas para adultos, ou pessoas maduras, já que aqueles que são governados pelas paixões e que carecem de autocontrole amam mais a ação do que o conhecimento, e não desejam a racionalidade. Isto é verdade, contanto que nos lembremos que os costumes morais podem escravizar tanto quanto os desregramentos, embora sejam menos danosos nas suas consequências a maior parte das vezes. Aristóteles sabia disso, mas as pessoas podem se esquecer. O autocontrole em si não é a felicidade humana, mas apenas uma condição da Liberdade necessária para a felicidade. Quem não possui esse bem é governado pelas paixões ou pelos limites artificiais e exteriores dos costumes.

No seu inventário das coisas que são consideradas boas por si, o autor começa notando a “vida do gozo” como objetivo da maior parte da espécie. Ele diz: “o grosso da espécie humana se revela inteiramente vil. Sua preferência é por uma vida própria do gado“. Já “pessoas refinadas e de ação” pensam que o bem é a honra e todas as virtudes políticas. E, por fim, pessoas contemplativas pensam que o bem é o conhecimento, isto é, a filosofia e a sabedoria. Nisto o discípulo está bem fiel ao mestre: esta é a doutrina platônica. Mas eles têm razão? Sim e não. É óbvio que o homem foi feito para atualizar a sua inteligência e a sua vontade livre, e a busca da sabedoria realiza isso de modo excelente. Mas o bem não é o conhecimento em si, mas o conteúdo deste, especialmente o Amor divino. Porém, como se realiza a bondade de Deus para a criatura humana, senão pela satisfação de todos os seus apetites? Assim, é boa a Sabedoria assim como é boa a Justiça, e também é bom o gozo de todos os bens da vida. Deste modo a única prioridade dos contemplativos sobre os demais tipos de seres humanos é a excelência do objeto da sua busca, desde que os demais bens não sejam preteridos. Ter a Sabedoria em meio à injustiça e à sofrimentos e privações não constitui uma vida plenamente boa e feliz. O filósofo só consegue se realizar na sua busca porque primeiro pôde satisfazer minimamente as suas necessidades nas esferas particular e pública. Onde impera a miséria e a desordem é muito mais difícil, quando não impossível, fazer boa filosofia.

Com muita propriedade o filósofo distinguirá o que é útil do que é bom, sendo a utilidade um meio para a finalidade, e a bondade o próprio fim em si. Uma vida voltada, por exemplo, para a aquisição e o acúmulo de dinheiro, pode ser uma vida útil, mas nunca boa em si, dependendo de como a utilidade é empregada. Mas o autor nota a dificuldade do problema da incompletude dos bens parciais, como a posse de riquezas, de saúde, de honra, etc., em face do Bem como Idéia, isto é, o Sumo-Bem platônico. Com muita razão e com bastante cuidado Aristóteles afirma a prioridade desse Bem supremo sobre todos os bens parciais, mas sem exigir que estes sejam prescindidos em nome daquele. Ele quer que o Sumo-Bem seja objeto de uma investigação especial –que é o tema da sua Metafísica–, sem desqualificar a busca de quaisquer outros bens, especialmente os da vida prática que são justamente o objeto da sua Ética. Um médico, por exemplo, não deveria abandonar a sua busca pela saúde em troca da idéia do Bem, sem que isso o impeça de buscar a Sabedoria na condição também de filósofo, sem prejuízo à sua busca do bem da saúde enquanto médico.

Eventualmente Aristóteles indicará um bem comum por trás dos bens particulares, que será o objetivo final de todos eles e o correspondente, na dimensão humana, ao que é o Sumo-Bem na dimensão divina. Este bem, que é o objeto de toda a ética, é a felicidade considerada como propriedade interior, ou atividade da alma. Coerentemente, de imediato o filósofo admite que esta felicidade deve ser um dom divino concedido ao homem. Mas ele não investiga isso a fundo, deixando esse aspecto para outra ocasião da qual não temos notícia (1099b10). Isto é uma pena, mas é compreensível, dado o propósito de seu estudo.

Mas uma distinção importante virá adiante que poderá ajudar a diferenciar a felicidade enquanto atividade humana de um outro sentido ligado ao divino. Lembrando muito o legado de Sócrates, essa felicidade que é um bem da alma humana é a vontade e o prazer pelo bem que é independente das circunstâncias. Renunciar à injustiça, mesmo quando se é vítima dela, é uma felicidade humana, porque o mal foi rejeitado pela alma. É por exemplo o que faz aquele que perdoa: derrota o mal em si. Essa felicidade como realidade interior e espiritual do homem é a eudaimonia. Esta, porém, não garante a posse de todos os bens externos que completariam a satisfação humana, especialmente no possível destino além da morte. Apenas a divindade poderia conceder este nível de bondade que é a mekariotes, ou bem-aventurança.

Esta doutrina é excelente. O propósito da ética é a obtenção da felicidade como cultivo do bem no interior do ser humano, independentemente da obtenção da bem-aventurança que somente Deus pode conceder. É claro que esse bem interior também tem origem divina, mas sobre ele a Liberdade humana possui maior responsabilidade, justamente pela recepção e pelo cultivo.

Mais adiante Aristóteles definirá a felicidade como a atividade da alma que a predisporá para a virtude, e a própria virtude como o estado que permite a escolha racional da mediania, isto é, o poder de evitar os vícios representados pelos extremos estados de deficiência ou de excesso das faculdades que lidam com as paixões. Isso é aceitável, embora talvez uma outra abordagem fosse mais eficaz, como a do ideal de manutenção da liberdade contra a escravidão, seja da sucumbência aos desejos, ou da sua repressão, como falamos na Monadofilia quando condenamos tanto a libertinagem quanto o Costume.

De modo muito apropriado, ao tratar da medida excessiva que gera insensibilidade, Aristóteles já deixa vencida a idéia do estoicismo à respeito da supressão das paixões, que é a apatheia. A moderação é superior, porque as paixões não são más em si. Má é a escravidão às paixões. E nós poderíamos dizer mais, que a filosofia estóica corresponde àquela frieza espiritual da Igreja de Éfeso, contra a qual Jesus alerta no Apocalipse. Talvez possamos tratar do problema dos estóicos no futuro.

No Capítulo 8 do Livro II o nosso filósofo observa que a mediania sempre parecerá uma medida desregrada por deficiência ou excesso desde os pontos de vista dos extremos. Isso nos ajuda a entender porque a verdadeira Liberdade é condenada desde o ponto de vista relativo dos dois tipos de escravidão: para o libertino, a Liberdade contra o desejo parece repressiva, e para o moralista a Liberdade contra o costume parece licenciosa. Daqui extraímos o maior valor da ética aristotélica da mediania, especialmente da moderação (sophrosyne) e do autocontrole (enkrateia), que são moralmente superiores às soluções extremas tanto do epicurismo quanto do estoicismo.

Aristóteles nos diz que a virtude é difícil porque é boa, e que o bom é sempre difícil, raro e nobre. Ele não está errado, mas este é um ponto de vista humanista e antropocêntrico. Isso porque vincula a nobreza da virtude com o esforço humano de fazer o que é difícil por seus meios, como se o que fosse difícil para nós não fosse fácil para a divindade capaz de dispensar seu benefício por liberalidade, desde que o ser humano seja humilde o suficiente para não se ensoberbar com seus benefícios. Como disse Jesus, a respeito da dificuldade da entrada no Paraíso: “mas para Deus nada é impossível“. Esse problema do autor, ou incompletude, é característico do pensamento antigo e só será corrigido quando o Evangelho converter gregos e romanos, e só começará a tomar forma filosófica a partir de Agostinho.

No seu inventário de virtudes o Estagirita menciona entre outras aquilo que foi traduzido por Bini como “grandeza de alma”. Não confundamos com a generosidade, e nem com a magnanimidade, que ele já destacou e explicou separadamente. Isto aqui é outra coisa. Em suas notas o tradutor diz que isto poderia ser “orgulho”. Mas por que ele não escolheu então esse termo no próprio texto traduzido? Por que isto poderia dar uma conotação errada? Mas talvez não fosse tão errado assim dizer que para Aristóteles o orgulho fosse uma virtude. O autor diz que esta é a virtude de quem reivindica uma qualidade, honra ou mérito, na medida em que possui essas coisas de fato. Ao contrário da vaidade, ou da vanglória, isto pode ser chamado sim, e com toda a razão, de orgulho. A questão é que isto é um pecado dentro da teologia cristã, e dos mais graves, senão mesmo o pior de todos. E para não se dizer que este é um exagero, os termos empregados mostram essa essência com tanta clareza que fica difícil negar a idéia. O próprio tradutor assume em suas notas que “megalopsykhos” é “orgulhoso”, e que o estado de deficiência, “mikropsykhos“, é a qualidade do humilde. Ora, a mentira da apropriação de uma falsa qualidade já foi destacada pelo estado de excesso na alma, o vício de quem reivindica uma qualidade para além da medida correta. Em nenhum momento Aristóteles distingue entre a origem humana e a origem divina das virtudes. Lembremos que ele desistiu de fazê-lo desde o início de sua investigação. O “pobre de espírito” e o “humilde e manso de coração” que Jesus elogia é, assim, considerado em estado de vício por deficiência. O filósofo nos dá um claro testemunho dos espíritos de Presunção e de Psiquismo. Isso já era implícito em toda a sua teoria sobre as virtudes, mas ele foi além e transformou o próprio orgulho numa virtude, explicitamente. Fico curioso para ver como Tomás de Aquino vai sambar para justificar essa idéia, se é que ele vai querer fazer isso.

Como a falha no elogio da grandiosidade se relaciona à discussão do mérito nas origens das qualidades das demais virtudes, o autor não deixa de ter razão ao identificar algumas propriedades positivas de quem possui essa virtude. Entre essas é justo mencionar o desprezo por assuntos inferiores, a busca de poucas ocupações que sejam mais excelentes, a indiferença pelas opiniões desqualificadas, a dispensa das honrarias exteriores e dos elogios humanos, etc. Essas características revelam um caráter focado naquilo que é bom e superior, independentemente da discussão da origem dos méritos, e aqui temos uma chance de viabilidade no reconhecimento da grandiosidade como virtude. Aquele que completa estas propriedades mencionadas com o reconhecimento da origem divina de todos os bens pode possuir a virtude de uma grandiosidade legítima e frutuosa.

Já no âmbito da virtude da Justiça, com razão o filósofo a chama de “perfeita”, porque ela engloba o elogio de tudo o que é correto e a condenação de tudo o que não convém. Diríamos mais, espiritualmente, que a Justiça é boa para todos os fins, para seu próprio portador, para Deus que é honrado pelo amor ao seu Bem transcendente que é o mais amável, e para o próximo que é reconhecido na sua carência como tão necessitado de bens quanto o próprio justo. O justo é um amante, e amar a Deus e ao próximo é ser justo consigo mesmo, com o Criador, e com o semelhante. O amor é uma questão de Justiça, e essa virtude realiza o ideal da ação humana. Aristóteles não nos diz tudo isso nestes termos, mas chega perto ao seu próprio modo.

Vale a pena citar que Aristóteles menciona, em 1135b1, Capítulo 8, Livro V, que tanto a velhice quanto a morte seriam processos incidentais nos quais a ausência de disposição voluntária implica na isenção de injustiça. Isso é materialmente errado. Velhice e morte são processos causados pela procriação animal submetida ao princípio de geração e corrupção, ato involuntário somente nos animais irracionais. Nos seres humanos existe a competência racional para arbitrar livremente a respeito de processos naturais que não sejam espontâneos. O ato procriativo humano é portanto de responsabilidade imputável: quando não é justificado ocorre a negligência ou omissão, e quando é justificado a sua razão subjacente deve ser qualificada. Sabemos que nem pelo naturalismo e nem pela antropodiceia se justificaria o ato livre da procriação, sendo necessária uma teodiceia. A justificativa divina, porém, só libera a ação humana de procriar com a condição de que a melhor hipótese, moralmente mais conveniente, seja sempre também admitida por uma questão de justiça, já que a sua alternativa não pode ser afirmada como necessária de forma exclusiva. Aristóteles ignora tudo isso e submete sua Ética ao Naturalismo e ao Costume. O que na verdade não nos surpreende.

No Livro VII o filósofo dá um testemunho que valida a lógica paulina, tanto por identificar que o descontrolado é melhor que o desregrado, quanto por reconhecer que não só a moderação é superior à licenciosidade, mas também à insensibilidade. Da melhor condição do descontrolado, ou simplesmente fraco, esta consiste no fato de que embora seja vencido pelas paixões, este ainda ama a razão e a verdade, enquanto o desregrado odeia essas coisas. E a superioridade da moderação sobre a insensibilidade reflete a Liberdade verdadeira que não só livra da escravidão das paixões, mas também da escravidão da repressão das mesmas. Ser livre contra os desejos significa ter poder sobre eles de todo modo, não cedendo sem razão, mas igualmente não se privando sem razão, podendo de tudo fazer uso, mas sem se deixar escravizar por nada.

No Livro VIII Aristóteles se empenhará na explicação da virtude da amizade. Distingue entre utilidades e finalidades, e obviamente destaca a superioridade da amizade voltada para o segundo tipo de objetivo, cujo bem é mais íntegro e pleno. Mas encontra seus limites ao notar que o benefício do outro termina quando impede o nosso próprio, razão pela qual também é incapaz de reconhecer o que seria a amizade de Deus pelos homens, já que Aquele em nada pode ser beneficiado por estes. Por esta razão ele também não pode reconhecer a maior amizade possível entre os próprios seres humanos, porque esta é totalmente mediada pela mutualidade da plenitude no usufruto do Amor divino. No Capítulo 7 isto fica muito claro. Diz ele: “Contudo, quando um se torna muito distanciado do outro, como Deus está dos seres humanos, não há mais possibilidade de amizade. Isso enseja a questão: amigos desejam para seus amigos os maiores bens? Por exemplo, serem deuses: com efeito, nesse caso perderiam seus amigos e, portanto, perderiam certos bens, uma vez que amigos são bens. Se, então, foi dito com acerto anteriormente que o amigo deseja o bem de seu amigo pelo próprio amigo e em favor dele, o amigo deveria manter sua própria identidade, fosse o que fosse. De sorte que lhe desejará somente os maiores bens condizentes com sua permanência na condição de ser humano” (1159a1).

Toda essa lógica se baseia na condição decaída e amaldiçoada que é para o Estagirita uma realidade terminal. Jamais podemos nos esquecer disso ao estudar os filósofos pagãos. Que eles pensassem assim não era culpa deles, mas que nós ignoremos o significado espiritual disso diante do Evangelho é culpa nossa. Para quem não existe a Queda, igualmente também não existe a Redenção, e esta não seria sequer necessária, porque o estado da Mistura estaria legitimado. Não já tão grande distância assim entre Deus e os homens sob o ponto de vista da potência, pois tudo o que há é a Substância Simples, ou Mônada, e a distância total que há entre o Criador e as criaturas se localiza na atualidade da Unidade, que Deus tem por si plenamente, mas que as mônadas criadas não possuem em nenhum grau por si mesmas. Sendo justamente o ato divino a única fonte de ser e movimento para a criatura, não só é possível a amizade entre Deus e os seres humanos, como é a única relação viável entre os dois, já que Deus em nada depende e em nada lucra com a sua Criação, senão pelo total benefício do que foi criado. A criatividade gratuita e amorosa de Deus revela a sua amizade pura e plena, que é a essência da sua relação com o ser humano.

Do mesmo modo os seres humanos que são realmente amigos entre si desejam sobretudo que se realizem para todos as promessas divinas, especialmente a eterna bem-aventurança. Esse desejo não os distancia, mas os aproxima, pois podem assim se auxiliar e testemunhar a favor uns dos outros na perseguição dessa meta espiritual da vida na Presença que têm em comum, se encorajando e auxiliando mutuamente. Quando um amigo morre para este mundo, ele não é perdido, mas é ganho para a Eternidade. Isto especialmente considerando a sua singularidade: o que há de amável no amigo, afinal? Aquilo que compõe a diversidade das suas qualidades faz parte do ser do próprio amante, que conhece a Deus por reflexo através de cada um desses bens. E aquilo que constitui a unicidade indeterminada do amigo é a sua condição de total Liberdade que eu amo tanto quanto a minha própria, e que não pode se realizar na condição da Mútua Representação, mas somente na plena comunhão com o Espírito Santo na Coruscância. Na essência do outro o que eu encontro, senão uma potência pura para a bem-aventurança, como a minha própria? Pelo Princípio da Identidade dos Indiscerníveis (Leibniz), não há mais nada pré-determinado. E essa potência só se realiza pela vida na Presença, com Deus. Por isso Paulo disse que por ele o bom era partir e estar com Deus. O que ele ganharia no estado da Mútua Representação, além do poder de dar algum testemunho útil para o próximo? Do mesmo modo, Jesus disse que se os Apóstolos soubessem para onde ele estaria partindo –isto é, para junto do Pai–, eles não se lamentariam. A manutenção da “identidade”, ou da “condição de ser humano”, com que Aristóteles se preocupa, não é o problema. A questão é compreender a verdadeira natureza desse ser, e a sua última finalidade. O filósofo jamais discordaria disso. Vamos dar o benefício da dúvida: ele amava a verdade, mas não conhecia o Evangelho.

O amigo que ascendeu pela redenção da Ressurreição e atingiu a vida paradisíaca da Coruscância não pode ser “perdido” (como aliás não existe bem real que o possa ser, por sinal): tudo que havia de bom nele é propriedade de toda mônada para sempre, e tudo de bom que ele era por si próprio só pode se realizar na plena comunhão com o Espírito Santo. Se eu quisesse preservar meu amigo na sua condição atual, como diz Aristóteles, eu desejaria então limitar tanto o meu gozo das suas qualidades, quanto o seu próprio potencial para a bem-aventurança na Eternidade. Isto seria o inferno. A verdadeira amizade, que é o amor ao próximo, ou Monadofilia Menor, é a busca do maior bem possível que não se contenta com a perpetuação da atual condição da vida humana, como aliás o próprio Deus não se contenta, Ele que instituiu tanto a morte das Obras da Carne quanto a Ressurreição das Obras do Espírito.

No Capítulo 8 do Livro IX o autor corrige a falsa impressão, derivada do senso comum, de que quem ama a si mesmo seja mau, como um egoísta. Ora, quem ama deseja o bem, e privilegiar-se de forma injusta contra os interesses alheios não é algo bom, e assim o egoísta não pode ser amigo de si mesmo, não pode ter amor próprio, pois não deseja o seu bem. Podemos ir além, e devemos. Sem o conhecimento imediato da conveniência do bem próprio não é possível conhecer o bem alheio: quem não se ama não pode amar o outro, pois não pode conhecer o bem do outro quem desconhece o mesmo bem para si. Só pode ser amigo do outro quem é primeiro amigo de si mesmo, porque o amigo, como diz Aristóteles, é “um outro eu”. Isto também por razões ligadas às causas eficientes das benfeitorias. Quem tem amor próprio cuida de si e dos seus bens e a partir desse cuidado e prudência se coloca em vantagem para o benefício alheio. Quem descuida de si se impede de agir em benefício alheio, quando não mesmo se torna um estorvo na vida dos outros. A primeira caridade é o amor próprio: cuida do outro quem cuida de si mesmo e não sobrecarrega o próximo. Por fim, o maior dos amores, a Deus, seria incompreensível se Deus não fosse reconhecido como o supremo benfeitor, e como isto poderia ser admitido senão pela noção dos interesses que cada um tem, conhecidos através de seu amor próprio? Mesmo sem o Evangelho é possível identificar a racionalidade da Monadofilia Primeira.

No Livro X Aristóteles reforça o Psiquismo ao afirmar que a felicidade não é uma disposição, mas uma atividade da alma. Que alguns componentes da experiência da felicidade tenham a ver com atividades da alma, isso é inegável, mas o fundamento da experiência da felicidade é um subsídio externo, a Graça divina. Lembremos que isto seria, para Aristóteles, a bem-aventurança em contraste com a felicidade, mas isso só porque ele separa os bens interiores dos exteriores como se todos os primeiros fossem sempre baseados na atividade da alma, e os segundos não. Mas ele acerta em vários aspectos no seu argumento final. Diz que “virtude e inteligência, de onde se originam as atividades nobres, não se subordinam à posse do poder“, o que é uma verdade tremenda, pois são atividades liberais, de homens livres, e a busca ou submissão ao Poder é uma atividade de escravos. A felicidade é a atividade virtuosa da alma, e nada é mais virtuoso do que o Intelecto que “é capaz de pensar o que é nobre e divino”, a nobreza da atividade intelectual se revelando por sua autossuficiência, ociosidade e descanso. Para Aristóteles, o filósofo e o sábio são os mais felizes, pois estão, por sua atividade, o mais próximos de Deus que é possível. Ele apenas desconsidera que isso pode ser realizado por meios espirituais que dispensem a prática filosófica, tanto quanto ignora que essa filosofia pode se tornar gnóstica e iniciática com facilidade.

Alguns trechos dos Capítulos 7 e 8 do Livro X merecem ser citados em maior extensão:

Quando fala da “parte soberana e melhor”, Aristóteles fala na verdade não de uma parte do composto, mas da essência da forma substancial, isto é, da própria mônada enquanto tal. E tem razão em reconhecer que esta é que merece se realizar, e isto não pode se suceder se o ser humano quiser se realizar nos alvos típicos da sua suposta existência composta. Como Jesus disse, deve-se buscar primeiro o Reino e a Justiça, essas coisas nobres e divinas, e o resto é acrescentado pela própria Graça de Deus. E em seguida, de modo até surpreendente, o filósofo reconhece que as virtudes morais que o ser humano emprega para a sua melhor existência não são tão puras, ou seja, separadas, quanto a virtude intelectual, porque lidam com os componentes inferiores que nada têm a ver com o que é divino e superior. Ele afirma que estas virtudes inferiores lidam com o composto, porque ele ainda lida com o problema sob a ótica de corpo e alma, mas nós podemos identificar o problema como a experiência da Mistura. Ora, como podem ser eternas as virtudes que só servem para se lidar com o que não é eterno? A Justiça só é necessária onde existe injustiça, a Coragem onde existe o medo, a Caridade onde existe a escassez e a carência, e mesmo a Sabedoria só tem valor onde existe a ignorância. Afastados os vários males que só subsistem através da experiência da Mistura, igualmente restam afastadas essas virtudes que só se justificam como remédios ou compensações para a lida com esses males. É neste sentido, e com muita razão, que Aristóteles reconhece que a virtude superior é intelectual, e que a felicidade humana é uma atividade especulativa da alma. Aqui caberia a correção de que a questão não é praticar a filosofia, mas contemplar o divino, o que também requer uma disposição moral, até mais do que intelectual, mas isso escapa a Aristóteles. Ele está mais inclinado ao Gnosticismo e à Presunção do que à Soberania e à Humildade, infelizmente. Mas não faltava muito para ele entender a essência da felicidade humana. Chegou muito perto mesmo de decifrar as coisas, e estamos falando de um pagão do Século IV a.C., o que prova que Deus nunca deixa de instruir aqueles que o buscam.

O Livro X vai longe e muito bem, até se degenerar num certo Gnosticismo tipicamente filosófico e intelectualista, e então chega na deprimente observação de que a maioria dos seres humanos são incapazes de aprender o que é bom por virtude, e que devem ser governados por leis que os forcem ao bem. Nisto o autor lembra o seu mestre, o Platão da República e de As Leis. Claro que há uma contradição: se o que individua e realiza o sujeito humano é a sua intelecção pessoal, de que adianta criar um dispositivo político que o obrigue a ser bom? Ele pode até se comportar como se fosse bom, mas não vai se tornar isso, porque age por uma motivação externa, seja por temer punições ou desejar recompensas. A bondade só é escolhida livremente por aqueles que a amam por si mesma. Leis não podem criar a bondade. A bondade é livre, porque o bom ama o bem livremente. Leis só criam escravos.

Aristóteles volta-se para a Política, portanto, já que esta seria eminentemente a ciência da produção de Leis, e a boa filosofia seria assim uma produtora de bons estadistas, isto é, bons legisladores. O que escapa dessa visão é o governo divino e a perfeição da Providência que já dispensa a cada alma a provisão mais adequada de experiências de acordo com finalidades muito mais excelentes, voltadas para a Eternidade, em comparação com a importância dos Estados seculares.

Nota espiritual: 4,3 (Moriquendi)

Humildade/Presunção5
Presença/Idolatria5
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo3
Vigilância/Ingenuidade4
Discernimento/Psiquismo3
Nota final4,3

Da Alma, livro por ARISTÓTELES

Algumas coisas parecem ser ao mesmo tempo intuitivamente simples de se entender e difíceis de se explicar. Entre essas coisas encontramos com frequência aquilo que é metareferencial, como a consciência que é consciente de si mesma, ou o conhecimento que conhece a si mesmo. Nesta mesma categoria podemos encontrar a idéia de alma, que foi o objeto de um estudo de Aristóteles neste trabalho.

A alma pode se referir ao corpo como parte dele, ou como independente porém relacionada num composto, ou até como realidade totalmente separada do que é corporal. A alma pode se aproximar mais da idéia de mente (psique), ou da de princípio vital (anima), ou ainda da de intelecto ou espírito (nous).

Na Monadofilia não há a necessidade de fazer essa definição, pois tudo se relaciona à Mônada como sujeito ou objeto da Percepção e da Apetição, de modo que os diversos aspectos atribuíveis à alma podem ser localizados nas respectivas partes das propriedades da Mônada conforme o caso. A Mônada já tem substancialidade suficiente para justificar as experiências de alma e corpo, etc., sem precisarmos multiplicar esses entes que correspondem apenas a modos da Percepção.

Neste seu tratado sobre o tema da alma, o próprio Aristóteles admite a dificuldade. Além do problema da metareferência, o nosso filósofo também enfrenta o desafio da multiplicação dos entes. Mesmo que tenha já simplificado muito o sistema platônico do Mundo das Idéias, o Estagirita ainda lida com uma Natureza complexa ainda participante da idéia da Substância de algum modo. Isso sempre vai gerar dificuldades filosóficas. A realidade ou natureza ainda não reduzida à Multiplicidade como mero reflexo da Unidade como única ou simples substância sempre produz aporias filosóficas insolúveis. Dentro de seu escopo, porém, sua iniciativa é respeitável e merece a nossa atenção.

Ao tratar das propriedades mais elementares da alma, Aristóteles procede de modo escolástico e conservador, inventariando as opiniões dos filósofos anteriores sobre o tema. O autor expõe o que talvez tenha mais proximidade com as propriedades da Mônada: a sensação e o movimento. A partir desses rudimentos de base já poderíamos guiar a investigação num caminho monadológico. Ora, todo movimento pode ser interior, de passagem de uma Percepção para outra, bem como a sensação pode ser tanto um efeito quanto um componente ou aspecto da Percepção. De todo modo, aquilo que se move o faz diante daquele que o percebe porque se mantém fixo como aquilo que percebe o que se move, e nada de objetivo a seu respeito pode ser atribuído senão por uma instância diante da qual ocorre a Percepção. Igualmente, o que é sentido o é para quem o percebe, etc.

Para o âmbito daquilo que se chama de “alma”, a Relação entre o Uno e o Múltiplo se dá na experiência entre o que é Permanente e o que é Transitório, ou entre o Ser e o Vir-a-Ser, ou ainda entre o Fixo e o Mutável, o primeiro desses elementos representando o Uno como percipiente de uma experiência e cada objeto percebido considerado isoladamente no seu ideal, e o segundo representando o Múltiplo como o conteúdo da experiência percebida enquanto sucessão das percepções. O ser é o que percebe e o percebido, o Intelecto e o inteligiso, e o vir-a-ser é a sucessividade das intelecções. Observe-se que a integridade da alma está na sua fixidez ou unicidade. O que constitui e identifica o ser humano, por exemplo, como imagem e semelhança à Deus, não é o que normalmente indicaríamos, como com elementos de natureza ou ambiente, ou o conjunto de memórias, etc., mas a capacidade elementar e primária de experimentar quaisquer naturezas possíveis, em quaisquer ambientes possíveis, uma singularidade ou substância simples com a capacidade de perceber e escolher entre percepções diversas. Quanto mais a pesquisa a respeito da alma foge desse centro unitário, mais ela se perde nas propriedades dos objetos da alma e os confundem com a essência permanente e independente destes. Aristóteles tem seus méritos na busca da melhor distinção dessas sutilezas neste assunto, mas cá entre nós foi só com Plotino e depois Agostinho que a alma finalmente ganha o seu status mais digno, análogo ao da Unidade, e para sempre separado da Multiplicidade. Se até hoje muitos seres humanos se mantém alheios a esse conhecimento que já foi produzido na Antiguidade, isso apenas mostra como é a ignorância e a confusão que imperam sobre a terra, a reboque dessa grande tirania que é o Pecado Original.

Em dado momento (407b1) Aristóteles afirma que a intelecção se assemelha a um repouso, de maneira que o movimento seria de algum modo contrário à bem-aventurança da alma. E também afirma que é “penoso” ou “indesejável” a associação entre corpo e alma. Embora ele esteja ainda veiculando mais as doutrinas precedentes do que expondo a sua própria, não devemos deixar essas idéias passarem impunemente. São formulações obviamente gnósticas, e que devem ser inquiridas e glosadas pelos cristãos.

Sobre a oposição entre repouso na intelecção e o movimento, não pode haver em nenhum dado momento a não-intelecção. Do mesmo modo que o momento presente não possui duração, a intelecção é como uma fotografia retirada de um filme. O movimento, por sua vez, nada mais é que a alternância entre intelecções diversas entre si. O movimento não pode ser oposto ao repouso, neste sentido particular da operação intelectual, porque ele não impede a intelecção, mas somente realiza a sua alternância. Isso, aliás, num intelecto finito, é o único modo viável de expansão da intelecção, razão pela qual afirmamos que o Limite é um dos Cinco Conceitos Sinóticos fundamentais da Monadofilia, como Forma do Escolhido. O problema gnóstico, como sempre, é a Legitimação da Mistura ou a Rejeição do Limite. Neste caso das observações que Aristóteles propõe no seu Da Alma, o Limite é rejeitado, porque para que o Ser seja conhecido por um intelecto finito é necessário que as intelecções sejam sucessivas na sua parcialidade, ou seja, que haja o movimento do Intelecto (ou da alma, como queiram). Não estaria errada a afirmação de que a mais plena bem-aventurança pertence a um ser capaz da intelecção total, ou seja, Deus. Mas é equivocada a idéia de que somente Deus possa ser feliz, ou bem-aventurado, a não ser que seja por si mesmo. Porque a premissa de que o Limite é mau não é necessária, desde que o Ser divino na sua infinitude poderia sempre doar as percepções apetecíveis pelas criaturas finitas, bastando apenas que o quisesse fazer, ou seja, que tenha a natureza amorosa suficiente para beneficiar as mônadas criadas livre e gratuitamente (princípio do Sumo-Bem como a Condição do Escolhido). Por isso a crença gnóstica é maligna: sua premissa profunda é a negação do Amor divino, sempre. É uma doutrina luciferina, cheia de rebelião e falsidade a respeito de Deus.

Já sobre a suposta inconveniência da associação entre corpo e alma, basta reconhecer que a mesma trata de uma relação condicional e não necessária. Este corpo não deriva de uma criação puramente simpliciter e ex nihilo, mas de uma subcriação secundim quid já mediada pelo arbítrio de uma criatura decaída e falível, e não de um Deus criativamente perfeito. Que este corpo está destinado à destruição é algo decretado pela autoridade divina e reafirmado pelo aceite desse decreto pelo próprio Deus encarnado como homem, Jesus Cristo. Por fim, que outros corpos sejam possíveis, ou seja, convenientes em associação com o Intelecto, é algo também demonstrado pela Revelação, através da Ressurreição. O Evangelho nos liberta de condições que a filosofia aristotélica não poderia ultrapassar per se.

Vocês conseguem entender como o Evangelho é a Revelação mais perfeita? Jesus Cristo destruiu de uma só vez os dois braços da doutrina demoníaca, os dois lados do Gnosticismo: com a Cruz destruiu a Legitimação da Mistura, através do seu aceite voluntário e gratuito do Decreto de Gen 3, e com a Ressurreição destruiu a Rejeição do Limite, através da redenção do seu Corpo de Glória. Este é o Salvador, não apenas por pregação, ou por amostras de seu poder, mas por sua liderança com atos. Jesus literalmente nos liderou na direção da Redenção.

Em outro momento Aristóteles fará a crítica a Xenócrates, a respeito da idéia de que a alma seja um número. Em geral essa crítica procede, principalmente pelos ângulos da Geometria (o número como ponto, linha ou superfície) e da Física (o número como posição ou extensão). Porém, metafisicamente, a idéia da Unidade não é incomparável com qualquer descrição simples da alma. O filósofo se pergunta sobre qual seria a diferença entre uma e outra unidade. Não existe diferença formal, senão pela total analogia entre diferentes singularidades totalmente separadas. A solução desse problema requereria ainda outras soluções filosóficas futuras, como a esseidade de Duns Scot, e o Princípio da Identidade dos Indiscerníveis de Leibniz. Assim, cada mônada preservaria a sua igualdade formal e experimentaria ao mesmo tempo a individuação da sua singularidade, através da atuação de seu Intelecto e de sua Vontade. Seria demais pedir para que Aristóteles antecipasse tudo isso, por mais genial que ele fosse.

No desfecho do Livro I o nosso filósofo termina de mostrar como todas as doutrinas por ele então reconhecidas sobre a alma parecem insuficientes, razão pela qual ele se viu motivado a tentar a sua própria solução. Isto é um filósofo de verdade, alguém insatisfeito com as filosofias dos outros. Observem como isto é diferente de ser professor de filosofia, ou historiador de filosofia. É particularmente notável a observação de Aristóteles de que não pode ser o corpo que produza a alma, e nem o fator que a unifique, simplesmente porque a experiência mostra o que parece ser o contrário, ou seja, que a alma seja o princípio ativo do composto: na ausência da alma, o corpo se corrompe e suas partes perdem unidade.

Mas, pelo menos por ora, algo parece ter escapado ao atencioso Estagirita: nunca se percebe a morte do próprio corpo, por regra, mas somente a de terceiros. O corpo pode não existir senão como fenômeno. E mesmo as EQMs não contrariariam a hipótese da holografia e da Mútua Representação.

No Livro II, Aristóteles proporá a sua definição de alma. Ele começa por dizer que deve ser uma substância. E afirma que substância é o que se atribui à matéria (potência), à forma (atualização), ou ao composto. E finalmente definirá a alma como forma do corpo. Essa sua definição possui uma integridade maravilhosa quando se considera o corpus aristotelicum como um todo. Para nós não é necessário subscrever essa noção, porém, porque ela adquire uma complexidade excessiva pelo conceito do composto. O ideal é que entre o Uno e o Múltiplo haja a relação mais direta possível. Platão trazia muitas complexidades com a sua Díade e o seu Mundo das Idéias. Aristóteles, de maneira louvável, conseguiu simplificar muito tudo isso, mas as suas substâncias compostas ainda são complexas demais. É mais perfeito (simples) que o Uno produza a intelecção de si mesmo como um reflexo, que é o Múltiplo. Não é preciso ter forma, matéria, e nem composto e, portanto, nem alma e nem corpo, a não ser que estes sejam objetos para o Intelecto que é capaz tanto de Apercepção quanto de Percepção, respectivamente. Mas o brilhantismo de Aristóteles não pode ser negado: de algum modo sua definição da alma como ato primeiro de um corpo com a potência de vida dá testemunho da prioridade do componente formal, ou intelectivo, sobre o material enquanto potencial passivo. Ele é, afinal, herdeiro dessa formidável tradição metafísica dos gregos, de Platão, e também de Pitágoras e Anaxágoras.

À partir do Capítulo 4 do Livro II Aristóteles se afasta da essência primária e mais universal da alma e parte para uma investigação naturalista que perderá valor para o nosso objetivo. Isto não diminui a importância que esses elementos possam ter para a perspectiva da Biologia, ou das Ciências Naturais como um todo, afinal de contas o Estagirita foi o fundador de todas elas e sempre tem algo valioso a ensinar.

Não podemos deixar de observar, porém, que nessa visão naturalista se inclui a interpretação da excelência dos processos de nutrição e reprodução na consideração de que os animais preservam não somente as suas individualidades de maneira provisória, mas principalmente a unidade da espécie, o que constituiria o seu maior bem possível. A extrapolação dessa condição ao ser humano representará um grande perigo espiritual. Aristóteles ignora, e não por sua culpa, dois fatores que os cristãos não têm a permissão de ignorar: a teologia da Criação ex nihilo, e a filosofia do principium individuationis formal. Quem quiser interpretar a realidade, especialmente a da condição humana, com recursos exclusivamente aristotélicos, o faz por sua própria conta e risco, e deveria estar ciente do que isso representa tanto teológica quanto filosoficamente.

Sendo bom filósofo como é, Aristóteles não deixará de notar as dificuldades da interpretação naturalista da alma. Ao trabalhar no problema da unidade das percepções sensíveis ele encontrará os limites do seu método. A consciência que percebe os elementos na sua diversidade possui uma unidade inexplicável, maravilhosa, para não dizer miraculosa. Uma explicação totalmente intelectual, pela representação holográfica da reflexividade monádica, resolveria tudo: somente o Uno possui substância, e o Múltiplo é apenas o seu reflexo. Mas para Aristóteles a Natureza precisa ser uma coisa, ter ousia, e a consciência precisa ser produzida desde dentro dessa coisa. Ele jamais vai sair dessa situação enquanto continuar coisificando o mundo natural: “enquanto indivisível, o que discrimina é uno e discrimina os dois sensíveis simultaneamente; considerado como divisível, deixa de ser uno visto que se utiliza duas vezes do mesmo ponto no mesmo tempo. Desse modo, na medida em que assume o limite como dois, discrimina dois objetos separados mediante o que é, de algum modo, separado; mas quando assume o limite quando um, discrimina dois objetos num só momento“. Esse tipo de problema sempre existirá enquanto se insistir numa explicação que não considere apenas a mônada como verdadeira substância, e toda variedade manifestada como seu reflexo. Caso contrário algo sempre permanecerá contraditório: como pode uma alma unificada conhecer formas variadas? Exemplo: uma criança vê um gato branco. Sua consciência não é apenas de gato, e nem apenas de branco, mas dos dois, e ao mesmo tempo. Mas como isso seria possível, se o dessemelhante não pode conhecer o semelhante? Isto é, a consciência da criança, ou sua alma, precisa possuir essas duas formas em sua potência intelectiva ao mesmo tempo, ou o objeto, que é o gato branco, não seria percebido em sua própria unidade de essência e acidente. Como pode a consciência unificar o conhecimento de formas diversas de si mesma e entre si próprias de modo intuitivo e simultâneo? Em outras palavras: como o conhecimento do Múltiplo é possível para uma consciência unificada? Isso só pode ser feito com uma solução completamente formal, ou intelectual, que retire o problema a falsa substancialidade de qualquer coisa que não seja a própria consciência. Mas dizer que o mundo e a natureza não existem senão como impressões para um observador consciente era algo não só arriscado no Século IV a.C., mas até hoje, quem diria. Até Leibniz teve que esboçar a idéia de composições à partir das mônadas, para não irritar suscetibilidades. Mas isso desonra o amor e a busca pela Verdade. Não por acaso, no centro da questão está justamente o grande problema espiritual da Idolatria.

Na passagem que citei, do Capítulo 2 do Livro III, o filósofo compara a unidade da alma, enquanto percipiente de sensações, com a unidade do ponto na Geometria, quanto elemento que ao mesmo tempo separa e unifica na discriminação dos objetos da sensação. Platão já percebia essas coisas, e as dificuldades inerentes a essas observações. O ponto, assim como o Uno, é essa forma ideal pura, a mais perfeita, que revela todas as coisas, mas que não se deixa revelar por nenhuma delas. É, ao mesmo tempo, a intuição mais forte e inegável de todas, e a mais misteriosa e inefável. Quando essa idéia da Unidade é aplicada ao problema da alma, isso problematiza imediatamente toda a noção da unidade do mundo, ou da natureza, assim como a figura do Observador desfez a suposta virtude da integridade material do continuum do espaço-tempo na física quântica. Este problema sempre foi muito grande, talvez até o maior de todos, e Aristóteles não poderia resolvê-lo sozinho, até porque ele se ocupava com muitas investigações ao mesmo tempo. A solução requererá algumas dezenas de séculos, passando pelo Uno de Plotino, pelo animocentrismo de Agostinho, pela Haecceitas de Duns Scot, e pela Monadologia de Leibniz.

Mais adiante Aristóteles distinguirá totalmente as percepções sensíveis das intelecções racionais. Justificará isso pela observação dos animais irracionais, que percebem mas não inteligem, e também por notar que a sensação é sempre verdadeira em si, enquanto a intelecção pode errar. Ora, dos animais caberia questionar a sua substancialidade fora do ser consciente que os observa, de modo que seriam incomparáveis então os seus estatutos ontológicos. E da diferença entre os graus de veracidade entre as sensações e intelecções bastaria distinguir entre funções diversas do Intelecto que variam entre passividade e atividade, como Percepção e Apercepção, e especialmente, nesta última classe, do ato livre de estimativa da parte de um Intelecto limitado, ou seja, ignorante. Sem as premissas de que o ser humano seja comparável aos animais, e de que ele tenha que ser infalível nas suas estimativas a respeito do ignorado (o que aliás é uma premissa gnóstica), não é tão necessário separar as sensações das intelecções. Por outro lado, o desejo de separar esses dois aspectos do Intelecto vai gerar o dualismo gnóstico, a tentação da Idolatria, etc.

Aqui eu devo lembrar do alerta do Apóstolo Paulo contra as filosofias que julgam conhecer a verdade através dos elementos do mundo. O Aristóteles do Da Alma certamente entra nessa categoria. Isso não desqualifica toda a obra do Estagirita. Mas é preciso ter Discernimento. Alguns cristãos ficarão atentos: agostinianos, franciscanos, etc. Mas a força do messianismo de certo modo prevalecerá na história da Igreja, que dará preferência a autores mais favoráveis à “restauração do mundo” (tikkun olam), ao paraíso terrestre, entre outras idéias idolátricas, antiredentoras, antirressurrecionais e anticristãs.

Obviamente o uso que quaisquer pessoas tenham feito da filosofia aristotélica para essas finalidades não é de responsabilidade deste filósofo. Aristóteles é responsável por ser naturalista até certo ponto, mas sabemos, graças à sua Metafísica, que ele não é apenas isso.

Nota espiritual: 4,9 (Moriquendi)

Humildade/Presunção6
Presença/Idolatria4
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo4
Vigilância/Ingenuidade5
Discernimento/Psiquismo5
Nota final4,9

Charlie Kirk e a próxima fase da guerra contra o Irã

Passado um tempinho desde a execução do ativista americano Charlie Kirk, consegui começar a montar na minha cabeça um quadro um pouco mais lúcido a respeito do evento.

Obviamente, pelo dom de Vigilância, nenhum de nós teria a permissão de aceitar a versão oficial de que ele teria morrido pela ação de um fanático esquerdista. Isto é o mesmo que acreditar que o ataque de 11 de Setembro de 2001 às Torres Gêmeas foi feito por terroristas islâmicos. Uma parcela da humanidade vai continuar confiando nessas coisas, inclusive no pouso do homem na Lua em 1969, etc. Eu não estou trabalhando para essas pessoas. Infelizmente estamos no Brasil, e aqui ser de “direita”, ou seja, ser escravizado como parte do sistema dialético, já é considerado uma atividade subversiva o suficiente. Entendo que serei compreendido por poucos, como sempre.

Nos EUA ocorre algo um pouco diferente. Ainda há muito controle dialético, mas não apenas isso. Uma nova geração habituada com a circulação instantânea e sem censura de informações na internet começa a perceber que as versões oficiais dos fatos, assim como as versões mais comuns da história, são provavelmente falsificadas. Este meme, porém, não deve alcançar o Brasil em nenhum cenário futuro até o fim do mundo:

Nossa cultura predominante ainda é de origem católica, ou seja, não absorvemos coletivamente nem a reação mais básica de rejeição ao sequestro do Evangelho pelos poderes do mundo. Quando recebemos aqui os frutos do protestantismo, este já é o subproduto religioso corrompido que não só não resolve nada como até piora a situação de quem quer ser cristão. O brasileiro médio está muito mais pronto para aceitar o Anticristo sem grandes críticas do que outras populações mais acostumadas com o pensamento crítico, seja nos EUA, na Europa ou na Ásia.

Dito isso, vamos ao caso de Charlie Kirk.

Sua atuação sempre me pareceu ser a daquele típico americano que é inteligente e esforçado, e ao mesmo tempo extremamente ingênuo. Pois é, se coletivamente o americano médio pode estar um pouquinho melhor que o brasileiro médio, na escala do varejo das individualidades encontramos de tudo.

Desde bem jovem Kirk se engajou em debates públicos, no qual se destacou por uma certa habilidade retórica, para não se dizer sofística. Nem preciso explicar que esse tipo de procedimento nunca me agradou. Que ele tenha sido apoiador de causas políticas como a de Trump, é apenas um agravante maior ainda. Aos poucos ele cresceu na sua carreira, sustentado pelo lobby direitista que é, por sua vez, financiado por interesses sionistas via AIPAC. Sua atuação era particularmente relevante no front universitário, justificando a disputa por verbas federais de acordo com alinhamentos ideológicos, e principalmente preparando o terreno para o boicote intelectual de iniciativas anti-sionistas, sob o cobertor de combate ao anti-semitismo.

Essa trajetória da carreira de Kirk não surpreenderia em nada, seria mais um em muitos.

Acontece que nos EUA existe mobilização política de base nos movimentos chamados grassroots. Esse fenômeno, por praticamente não existir no Brasil, pode ser de difícil compreensão por aqui. Por lá é perfeitamente viável que uma base popular force certas lideranças a mudarem o rumo de suas posições e condutas públicas. E o fato é que a base política de Kirk, basicamente composta de pessoas bem jovens, começou a pressioná-lo a respeito de temas ligados a Israel. E o próprio Kirk passou a questionar coisas que normalmente seriam inquestionáveis por alguém que é sustentado pelo lobby direitista. Principalmente:

  1. A ligação da operação de Epstein com o Mossad;
  2. A narrativa oficial dos eventos de 07 de Outubro de 2023 e o subsequente apoio americano à guerra de extermínio em Gaza;
  3. O apoio americano à guerra de Israel contra o Irã.

Este último ponto provavelmente foi o decisivo para que Kirk fosse visto como persona non grata. Ingênuo, o serviçal de Israel não percebeu que se voltava contra a mão que o alimentava e que dava o seu poder político. Será que ele achava mesmo que seu sucesso se devia pura e simplesmente à sua capacidade oratória? Se achava, como foi ingênuo! Ele poderia ser mais um zé mané, um ninguém na fila do pão, se não fosse o interesse dos poderes do mundo em usar a sua atividade para fins de propaganda e mobilização das massas. Essa era a serventia de Kirk ao sistema: a legitimação de crimes de Estado, da Dialética do Ouroboros e do Sistema da Besta como um todo. Foi essa a origem real da sua fama, do seu prestígio e do seu sucesso.

Quando Kirk começou a questionar partes inconvenientes da narrativa oficial da direita política, ele foi chamado para mais uma rodada de negociações onde, no caso, Netanyahu entraria com muito dinheiro e influência, e Kirk entraria com o resto de sua alma. Kirk recusou o acordo e saiu da mesa. Achou que poderia ter vida própria e algum poder no mundo sem a ajuda de Satanás.

Mas quando a verdade pura se levanta para falar, o mundo literalmente a mata no tempo de uma semana. Foi o que já aconteceu uma vez em Jerusalém, para os cristãos que não perderam a memória.

O ingênuo Charlie Kirk achava que tinha autonomia para perseguir a verdade e a justiça com autonomia? Foi rapidamente corrigido pelos poderes do mundo, poderes que o usaram em vida e agora o usam na morte, para reforçar o sistema dialético.

Trump chegou a compartilhar essa imagem grotesca em sua rede social (Truth Social):

Mas resta uma questão: por que assassinaram o cara?

Não seria mais fácil e menos suspeito simplesmente desmontar a sua operação? Retirar as verbas, acionar o shadowban, praticar a espiral do silêncio, etc.?

Seria mais fácil, mas isso leva tempo. Para que uma operação dessas tenha efeito pode ser preciso passar no mínimo uns 6 a 12 meses, e talvez ainda mais no caso do movimento de Kirk, justamente por esse ter uma forte base grassroot.

E acontece que talvez Israel precise mobilizar a opinião pública americana para algo muito importante antes desse prazo, ou seja, logo mais, nas próximas semanas ou meses.

Qual evento justificaria essa emergência?

Ora, nada se encaixa mais no cenário do que uma nova fase na guerra contra o Irã.

É preciso soterrar os questionamentos sobre Epstein e a farsa do 7 de Outubro de 2023, e colocar o lobby para forçar o apoio dos EUA a Israel nesse próxima fase da guerra.

Possivelmente isso deva acontecer antes das midterm elections nos EUA, ou seja, até no máximo Março ou Abril de 2026.

Esse calendário favoreceria a opção pela eliminação física imediata de Kirk, com o bônus de que se os EUA guinarem para fora da zona de influência do lobby sionista antes da próxima fase na guerra, ainda se teria a vantagem de aumentar as chances de deflagrar uma guerra civil nos EUA para neutralizar a sua capacidade de interferência em assuntos internacionais. Afinal, se os EUA não estiverem comigo, o mínimo que eu preciso é garantir que eles não estarão contra mim por estarem, por exemplo, ocupados demais num conflito interno entre Direita X Esquerda, etc. É muito importante que a maior parte da população americana continue hipnotizada pela Dialética, e a própria morte de Kirk está sendo usada para essa finalidade. Vai funcionar? Não sabemos, mas não é difícil desestabilizar a economia americana, altamente alavancada, com uma crise econômico-financeira, bem como o sistema político, que é lotado de elementos comprometidos por operações de blackmail.

O incidente também está sendo usado para testar a lealdade de outros assets de inteligência influentes sobre a sociedade americana. Estes estão sendo orientados, senão mesmo ameaçados quando necessário, para insistir na narrativa contra a esquerda radical, os trans, etc. O recado foi dado da forma mais clara possível. Ao mesmo tempo os movimentos de base conseguem detectar facilmente quais influências e lideranças estão comprometidas com o sionismo. Figuras de grande relevo na mídia alternativa estão sendo rapidamente esvaziadas, como é o caso de Alex Jones e sua operação (Infowars).

O calendário foi a provável motivação para a execução de Kirk.

Sobre a pressa de Netanyahu que quer acelerar as coisas em todo o Oriente Médio, há uma interpretação geopolítica de que isso seria conveniente antes da mudança de ares políticos nos EUA, ou mesmo antes da queda do império americano, já que com China e Rússia o sionismo não teria o mesmo poder de influência (supostamente). Mas há que se considerar também a questão escatológica. Toda uma geração de rabinos messiânicos pressionam Netanyahu para que eles sejam os preparadores finais para a chegada do seu Messias triunfante, e muitos destes acreditam que apenas os construtores americanos (os maçons mais poderosos do mundo) poderão erguer o Terceiro Templo. Seria preciso então fazer tudo acontecer logo: comprometer os EUA com um conflito na região, jogar Esaú contra Ismael, destruir al-Aqsa, “descobrir” a Arca da Aliança, e construir o Terceiro Templo. É claro que essas possibilidades escatológicas escapam da análise geopolítica típica que ainda tenta compreender tudo em termos de interesses nacionais, políticos, econômicos, etc.

Do ponto de vista mais individual, no âmbito da alma do sujeito, Kirk abraçou a idolatria da família, mas não se comprometeu totalmente com os poderes do mundo. Ele pagou por essas decisões. Ele precisava ser vitorioso neste mundo. Não estava esperando pelo próximo, não repousava apenas em Cristo. Tinha que ter planos, vitórias, sucessos. Casou e teve filhos, então ele precisava que essa porcaria de mundo, destinado à destruição, fosse viável para seus descendentes. Isso o levou a se envolver com poderes malignos travestidos com o bom-mocismo direitista, conservador, etc., poderes que o dariam os meios práticos de crescer na vida e ter o sucesso e a vitória que ele precisava dar a si mesmo e à sua família.

Mas era um acordo espiritual com o mundo. Quando ele resolveu desfazer o acordo, as consequências vieram rapidamente.

Politicamente, ninguém vai escapar daquelas duas verdades supremas reveladas na Bíblia desde a antiguidade:

  1. Para os fiéis Deus já é o único rei legítimo, e todas as demais autoridades são no mínimo problemáticas, quando não são mesmo comprometidas, malignas e demoníacas;
  2. É a mentira e não a verdade que prevalece na terra.

O ser humano típico gosta de acreditar nas mentiras e escolher um lado da Dialética do Ouroboros porque não quer receber o dom da Vigilância que o Espírito Santo nos dá para suportar o fato de que nós todos nascemos como escravos, vendidos para o diabo pelos nossos ancestrais, e então crer que a nossa única salvação está em cumprir o Decreto de Gênesis 3 seguindo Jesus Cristo: aceitando a morte e recebendo a ressurreição.

Charlie Kirk, na prática, desprezou o exemplo de Jesus Cristo, assim como sua esposa desprezou o exemplo da Virgem Maria. Eles preferiram imitar Adão e Eva, e os poderes do mundo aplaudiram e exaltaram o casal, como sempre fizeram desde o princípio, e como farão até o fim.

Como Jesus veio pessoalmente revelar a verdade e ainda a revela a quem a quiser receber, a história de Kirk não é uma tragédia. É um drama que terminará como comédia, para aqueles que crêem.

PS: pode ser que estejamos muito perto da ativação de protocolos avançados de controle ditatorial dentro de uma tecnocracia totalitária. É possível que as coisas que eu expliquei aqui já sejam suficientes para não só uma censura futura, mas mesmo para sanções automáticas com efeitos transnacionais. Percebam que uma legislação aprovada no Congresso norte-americano pode ter efeito sobre cidadãos brasileiros, pelo simples fato de que o sistema financeiro já tem efeitos em escala mundial. A Marca da Besta pode mesmo não estar muito longe de nós na escala do tempo. Mas ainda parece ser inviável que tudo se resolva até Setembro de 2028. Veremos.

Marcial Maciel (O Lobo de Deus), série por Matías GUEILBURT

Para que não digam que a Religião em geral, ou a Igreja Católica em particular, é perseguida com alguma obsessão, a história de Marcial Maciel, o fundador da ordem dos Legionários de Cristo, serve para mostrar como o fenômeno da corrupção moral humana é universal e não só não escapa do âmbito da religiosidade, como parece se acomodar muito bem dentro desse tipo de ambiente. É como se identificássemos que num mundo inteiro que é governado por Satanás, parece que o diabo tem uma certa preferência e um carinho especial, entre seus vários domínios, pela Religião.

Este breve documentário da HBO em quatro episódios conta a história de Marcial Maciel, mais um monstro religioso travestido de santo.

Nasceu no México em 1920. Efeminado quando criança, Maciel sofreu bullying, abandono e abuso. Incapaz de carregar a sua cruz e seguir Jesus, de algum modo parece que ele quis se encaixar e participar profundamente do jogo do mundo que o mal tratou. E o fez com a excelência dos maiores perversos.

Maciel decidiu seguir uma suposta missão pessoal como católico, mas num sistema quase paralelo. Ordenou-se padre, mas interessava-se mesmo era em arregimentar quadros e acumular poder, especialmente na exploração da fragilidade alheia, oferecendo acolhida à crianças e jovens de famílias carentes, e ganhando doações de viúvas sentimentais, e de ricos com a consciência culpada. Com o máximo de autonomia e emprestando autoridade e prestígio da Igreja Católica, fundou a ordem dos Legionários de Cristo, inspirado na Ordem dos Jesuítas. Não se pode negar que Maciel tivesse grandes capacidades de organização, e que fosse um oportunista muito habilidoso.

Maciel se financiava com a ajuda de pessoas ricas, especialmente viúvas abastadas, e com o dinheiro abria institutos de educação para formar uma nova elite católica. Essa elite se contraporia ao modernismo do Vaticano II e aos avanços do marxismo da Teologia da Libertação na América Latina. Enquanto os idiotas se distraíam com essa fachada, Maciel concentrava poder e dinheiro, e se divertia com os abusos de menores e de drogas.

Maciel corrompeu a hierarquia da Igreja com dinheiro, e principalmente com o seu poder de arregimentar grupos sociais para o organismo religioso. Numa época de crescente liberdade religiosa, essas grandes e velhas instituições como a Igreja Católica são sedentas por renovações dos seus quadros, especialmente de lideranças capazes de trazer as novas vítimas necessárias à manutenção do sistema, a nova geração. Maciel foi extremamente bem-vindo como líder popular e carismático, trazendo de reboque uma vasta clientela e novos operários das engrenagens religiosas, além de um fluxo constante de doações. E para envernizar essa obra maravilhosa, Maciel vestiu os Legionários de Cristo com as roupas dos campeões contra o Vaticano II, contra o Comunismo, etc.

Mas aos poucos seus crimes se tornam conhecidos e isso cria uma situação problemática na Igreja Católica. Em 1956 Macial é afastado de suas atividades depois de uma investigação. Mas com a morte de Pio XII ele volta à ativa. Mais tarde Maciel encontra um grande parceiro em João Paulo II, esse santo que provavelmente foi o maior responsável por cobrir Maciel com um manto de legitimidade e autoridade.

Expandindo suas atividades, Maciel cria a Regnum Christi para atrair jovens mulheres para apoio aos Legionários, tomando seu dinheiro, seus serviços, etc., basicamente escravizando essas mulheres, inspirado na idéia da instituição dos leigos consagrados da Opus Dei. Observe-se novamente que, assim como aconteceu com os Jesuítas, Maciel não inventou nada: todo o esquema de exploração dos seres humanos em nome de Deus já estava pronto e em funcionamento nesses vários tipos de organização. Tudo o que Maciel fez foi repetir essas programações.

Maciel usava as vastas doações doações de dinheiro recebidas pelos Legionários para manter um estilo de vida luxuoso, e também para o suborno de autoridades políticas ou religiosas, estas últimas através principalmente de “obras de caridade”. Lavagem de dinheiro e desvios de recursos para paraísos fiscais se tornaram uma especialidade na ordem dos Legionários.

Eventualmente acusações mais graves e mais comprovadas são feitas, finalmente, quando algumas das principais vítimas de Maciel decidem que não aguentam mais mentir e esconder os fatos. As denúncias contra Maciel tiveram que ser feitas nos EUA, porque no México era inviável a acusação de uma celebridade como ele. Isso nos faz pensar: o quanto é inviável a denúncia dos famosos em geral, quando isso arrisca causar um grande escândalo e até o abalo da ordem social? Vejam como funciona o comprometimento moral da sociedade humana ao esquema de Satanás: emprega-se um tão grande alinhamento das consciências a esses esquemas mentirosos, que a desmoralização geral da comunidade torna inviável a revelação da verdade. É isso o que autoriza o procedimento do sacrifício ritualístico dos bodes expiatórios: uma vítima simbólica deve morrer como símbolo do mal, para que o próprio mal possa se perpetuar no governo de uma sociedade hipócrita e moralmente apodrecida. No fim, até com Maciel será este o caso. Vão-se os anéis, ficam os dedos: o líder morre, fisicamente e simbolicamente, mas os Legionários continuam, e principalmente a Sacra Igreja Católica Apostólica Romana.

Entre suas várias aventuras, Maciel teve esposa e filhos, tanto no México como na Espanha. Era um ator, um farsante, um grande mentiroso. E apesar de ter seus vários papéis no mundo, ele nunca quis realmente ser bom em nenhum deles. Abusou de seus dois filhos mexicanos. E conseguiu, sabe-se lá como, que o próprio Papa João Paulo II batizasse sua filha espanhola, Norma. Desculpem, mas se além do dinheiro e do prestígio de Maciel, se ele não tivesse também o poder de chantagem contra lideranças católicas, não sei se certas coisas seriam possíveis. Afinal, de que outro modo uma instituição tão poderosa poderia ter sua liderança maior submetida aos caprichos e desejos de Maciel? Entendem como isso funciona? O governante de todas as religiões é o Ouroboros, a grande e velha Serpente, desde o seu primeiro pacto com o primeiro dos homens, Adão. O que Maciel fez foi usar as ferramentas espirituais de conquista e concentração de poder, que é a moeda do diabo, e com isso Maciel ganhou controle até sobre a Igreja Católica. Este mundo está a serviço do diabo, com a exceção daqueles que são livres da busca pelo poder, aqueles que amam a Deus e ao próximo.

Já depois de muitas denúncias, o Vaticano ainda reconhecia e legitimava a posição de Maciel, inclusive num grande evento com o Papa no Vaticano para celebrar o aniversário dos Legionários de Cristo. Uma grande vergonha, e uma grande evidência para quem não tem medo de reconhecer a verdade.

Um novo processo interno de investigação é iniciado pelo então Cardeal Ratzinger. Esse processo continua depois da morte de João Paulo II, e é finalizado no papado do próprio Ratzinger, já como Bento XVI. Porém, qual é a resposta que a Igreja dá para o caso? Maciel é afastado da liderança dos Legionários e é recomendado a viver em oração e penitência. Obviamente Maciel ignora a recomendação e faz o que quer. Ele viaja pelo mundo, inclusive para a Tailândia, onde parece que se diverte com a exploração da prostituição de menores.

Com isso se vê que não há grande diferença entre este papado, ou aquele papado. Essa dialética imita aquela que vemos operar na política: é uma distração para enganar os imbecis.

Desde a época de Pio XII se sabia dos crimes de Maciel, mas ele nunca foi julgado nem condenado por nada. Maciel soube explorar muito bem a corrupção de pessoas e principalmente de instituições, com as massas de pessoas e as grandes riquezas dos Legionários.

Se a Igreja quisesse proteger os órfãos e as viúvas, que é a religião verdadeira que Cristo instituiu, ela teria impedido Maciel de agir. Mas ela não só não o impediu, como o autorizou e legitimou. Pelos frutos conhecereis a árvore. Foi isso que Jesus ensinou. Sai dela, povo meu!

Na maior ilusão, alguns dos acusadores de Maciel, querendo separar a religião ideal da religião real, acusaram Maciel de ser apóstata e ateu.

Mas foi justamente na condição de religioso que Maciel se realizou como predador, com a cobertura, leniência, omissão e negligência da própria Igreja Católica.

Como já dissemos antes, a Igreja Católica é um projeto messiânico igual ao Partido Comunista, apenas mais antigo e tradicional: quando falha, nunca perde o brilho da sua forma ideal que continua sendo acreditada como se Deus tivesse algo que ver com as ilusões humanas.

Quanta ilusão! Não foi enquanto apóstata e ateu que Maciel explorou suas vítimas, mas enquanto líder religioso consagrado pela Igreja Católica. Eis a força da mentira e da ilusão humana.

Pensando na pessoa de Maciel em si mesmo, o que ele poderia ter feito? Poderia ter carregado a sua cruz como vítima de abuso, e se quisesse poderia ter buscado a castidade e a virtude dentro da Religião, ou então, poderia ainda carregar a sua cruz como pessoa afastada da Igreja e do Poder do mundo, vivendo de forma privada da melhor maneira que pudesse.

Mas ele faz a pior escolha de todas, se tornou um lobo travestido de cordeiro, e usou do poder e do prestígio da Religião para abusar e explorar seres humanos vulneráveis.

O maior problema não é que existam tipos como Maciel.

O maior problema é que estes tipos sejam os líderes mais aplaudidos e reverenciados da humanidade.

Nota espiritual: 5,7 (Calaquendi)

Humildade/Presunção5
Presença/Idolatria5
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo7
Vigilância/Ingenuidade8
Discernimento/Psiquismo5
Nota final5,7

Retórica, livro por ARISTÓTELES

Neste trabalho o nosso filósofo tratará da arte do discurso persuasivo. Ainda estamos no território da imagem ou aparência da verdade (doxa, ou opinião). A diferença com relação ao que vimos antes, na Poética, é que lá a verdade era imitada sob o aspecto da impressão, como a gerada pelas sensações, enquanto aqui na Retórica a imagem da verdade adquire maior grau de abstração, como o que é gerado pelo discurso.

O Estagirita nos dá logo a sua definição da arte retórica:

Essa explicação está em linha com a prévia investigação socrática-platônica a respeito do objeto indeterminado da sofística. Que habilidade é essa que permite falar de tudo com maior poder de convencimento do que aqueles que conhecem melhor cada tema em particular? Isso gerava perplexidade e até antipatia da parte dos filósofos. Já Aristóteles, com um espírito mais frio e científico, não se preocupa tanto com a denúncia dessa prática quanto com o entendimento dos motivos da sua efetividade. O que é próprio do discurso retórico é a sua atuação sobre aquilo que é persuasível em qualquer caso. Assim, tanto quanto vimos, no Órganon, que a estrutura da lógica analítica é universal para todos os intelectos, do mesmo modo as propriedades daquilo que é persuasivo são universais para todas as psiques. Todos os seres humanos costumam ser convencidos daquilo que é verossímil do mesmo modo.

Aristóteles percebe que o discurso persuasivo orbita em torno de seu tema, sobre o qual pode conjecturar indefinidamente, mas se apóia em duas componentes alheias ao assunto em si: a credibilidade do orador (ou autor), e as emoções e inclinações do ouvinte (ou leitor), que é o árbitro e, portanto, o elemento “que determina a finalidade e o objeto do discurso“. O objeto da retórica não é a verdade, mas o movimento da crença do juiz do discurso. Um discurso que seja desqualificado por sua relação com a verdade sobre o assunto pode se tornar convincente apenas porque seu autor possui credibilidade suficiente, ou porque as emoções e inclinações dos ouvintes foram movidos na direção que convinha para que fossem persuadidos.

A verdade é convincente por si mesma, mas a aparência da verdade pode ser convincente por recursos alheios ao que é verdadeiro. A arte retórica explora esses recursos.

Como bom inventariante que é, Aristóteles logo começará a fazer listas de coisas, o que aliás parece ser algo típico de pessoas inteligentes, ou no mínimo curiosas. Sobre temas do debate político ele relaciona os assuntos fundamentais sobre os quais as disputas políticas costumam versar, quais sejam: recursos, guerra e paz, defesa nacional, importações e exportações, e legislação. Eu poderia penalizar este segmento por sua Ingenuidade, já que com a consideração do efeito do Pecado Original sobre todos esses temas políticos, estes restam vazios (res exclusae in limine) ou ao menos muito preteridos em face da conveniência do desarmamento moral generalizado em direção à idéia da Melhor Geração. Mas o filósofo apenas inventaria aqui aqueles assuntos políticos que são debatidos de acordo com o costume, e portanto não pode ser responsabilizado pelo que os outros entendem ser de maior importância. Se ele próprio produzisse um juízo de mérito a respeito, então poderíamos avaliar essa decisão, como deverá ser o caso na avaliação da sua Política, ocasião na qual poderemos confrontar as suas posições.

Algo diferente talvez ocorra quando o filósofo passa a listar os bens que produzem, por sua posse, a felicidade dos seres humanos. Ele não erra ao reconhecer que a felicidade e os seus componentes são universalmente desejáveis. Mas possivelmente erra na própria listagem desses bens, para não falar na omissão sobre a origem primeira de todos os bens, o que pode levar ao erro do Psiquismo. Vejamos o trecho:

Já Sócrates, e com ele Platão, afirmava a superioridade da virtude (arete) sobre todos os outros bens. Nós mesmos podemos ir além e afirmar a Graça como a fonte de toda felicidade verdadeira. Novamente me inclino à leniência, porque Aristóteles pode se referir, mais uma vez, àquilo que é acreditado pelo costume, como ele mesmo nos avisou que faria, e como aliás faz sentido que faça, já que reconhecemos que a retórica visa à persuasão e não à investigação da verdade. Mas há o erro, talvez, de não disputar ou ressalvar o quanto essa valorização pode ser prejudicial. Como ele enfatizou a origem axiológica dessas idéias, o que é muito apropriado e exato, de novo podemos deixar passar. É difícil glosar Aristóteles. Mas oportunidades não faltarão para um reexame das idéias por elas mesmas, como com o Da Alma, com a Ética a Nicômaco, etc.

Sua definição daquilo que é bom é excelente e possivelmente até insuperável:

Grande é a importância de dois componentes nessa definição: a característica da finalidade e a característica da racionalidade. A finalidade torna todos os meios dispensáveis todas as vezes em que isso for possível, e a racionalidade implica na falsidade dos bens que são considerados apenas pela sua natureza e independentes de finalidades. Ambos componentes são espiritualmente vitais. Aqui Aristóteles se mostra um legítimo e digno herdeiro do idealismo platônico, e se mostra também livre, pelo menos por ora, de qualquer Naturalismo.

Neste trecho do Capítulo 6 vemos como o nosso filósofo é exato em seus termos, razão pela qual sempre foi muito apreciado:

A chave está na expressão “a consideramos um fim“. Esse caráter subjetivo neste tipo de juízo mostra o grande perigo da capacidade e do interesse humano de perverter o senso da realidade das coisas. Pois o modo de proceder típico desses seres criados no cativeiro da Idolatria e na cultura do Pacto Sadomasoquista é o de fazer o valor dos esforços e sofrimentos dos meios das ações humanas emprestarem legitimidade, de modo artificial, às finalidades. É uma racionalização abusiva e falaciosa, a justificação das finalidades pelos meios. O fato de que quaisquer meios para a obtenção de determinados fins tenham sido custosos, especialmente em termos da impressão subjetiva causada por sofrimentos gerados por danos ou esforços deliberados, não servem para a qualificação dos fins. Qualquer fim deve ser bom por si mesmo, por definição, já que isto é o que qualifica e determina a essência daquilo que é uma finalidade. Aristóteles não se aprofunda nisto agora, mas seu testemunho é bom o suficiente para nos despertar um alerta: o quanto não pode ser conveniente a um ser ao mesmo tempo racional em potência e ignorante em ato a atribuição retroativa da bondade dos fins de suas ações pela consideração do valor subjetivo dos meios voluntariamente empregados? Numa alma predisposta à Presunção, especialmente, é mais fácil simular a Sabedoria do que ser Humilde, porque para o orgulhoso a Humildade é humilhação.

Ainda nessa matéria da prioridade dos fins sobre os meios, nosso filósofo tem mais observações interessantes e que merecem ser notadas, por mais óbvias que sejam:

Ora, não há causa mais primordial, mais benéfica, ou mais perfeita nos seus meios e nos seus efeitos, do que a Graça, que é a ação divina por excelência. Aristóteles não tem a obrigação de reconhecer isso, mas os filósofos cristãos têm. E isso especialmente em face do sentido do Pecado Original. Ninguém podendo restringir a potência da criatividade divina, resta como absurda toda ação que se presuma boa por livre deliberação sem o constrangimento das circunstâncias, principalmente quando implique em riscos evidentemente inapropriados.

Por uma razoável extensão o autor fará o inventário dos elementos mais convincentes para a persuasão, com ênfase nos âmbitos das disputas forenses e políticas. Aqueles que estão envolvidos nesses tipos de atividades podem encontrar instruções valiosas nesta Retórica.

Naquilo que nos interessa, que é o sentido espiritual, há uma passagem relevante sobre o amor e a amizade que vale a pena destacarmos, sem prejuízo de futuras manifestações da parte do mesmo autor em outras obras:

Esta definição de amor (philia), ou amizade, é perfeita. Essa noção mostra como todas as outras relações humanas, em contraste, refletem posições como de poder ou posse, e conflitos de interesses pelos bens relativamente a uma das partes em detrimento ou em indiferença aos interesses das demais. Sócrates, e com ele Platão, já havia notado isso, e Aristóteles subscreve.

Em outra passagem descobrimos um importante testemunho à favor da Vigilância:

Aqui novamente ressalvamos o destaque para a função técnica desses testemunhos, o que implica que não necessariamente o filósofo endossa essas idéias enquanto investigador ou na competência de pessoa particular que emite sua opinião. Mas, com o risco de que bons testemunhos não sejam reiterados em outra ocasião, prefiro fazer o destaque do citado.

E no que isso implica? Na corrupção e na decadência reconhecidas por efeito das inclinações naturais, de modo que a virtude e a bondade não são naturais, extraordinárias. A natureza não é boa e não inclina os agentes livres ao bem e à virtude.

Esse testemunho não só auxilia à favor da Vigilância, mas também favorece o reconhecimento da Presença, particularmente contra a Idolatria naturalista. Estamos falando de um filósofo pagão sem acesso ao testemunho revelado da Queda gerada pelo Pecado Original. Com qual subsídio operam então os medievais aristotélicos a exaltação da Lei Natural para além da sua justa medida, que é a da regulação dos entes submetidos à corrupção da Queda? Se os gregos já tinham produzido a Segunda Navegação e superado, assim, o naturalismo fisicalista das gerações precedentes de investigadores, de onde os medievais tiraram então a revalorização da Natureza acima do seu nível de direito? De outras fontes, como até certo ponto também Agostinho o tinha feito. O que está em jogo é a sanidade filosófica do escape da dupla armadilha da Dialética do Ouroboros: nem rejeitar o Limite, e nem legitimar a Mistura. Isto é: nem negar a bondade de alguma natureza simpliciter revelada como expressão do Limite, e nem a idolatria de uma natureza secundum quid já condicionada pelo mau uso da Liberdade.

A natureza amável é aquela mais pura e mais simples, gerada pela vontade divina e não pervertida ou deturpada pela agência de quaisquer outras vontades, e não aquela que foi arruinada pela ação humana.

Mais adiante, no Capítulo 21, ao tratar do emprego das máximas, Aristóteles mostra com clareza como a arte retórica tende à mentira e à corrupção:

É persuasivo, e isso não deveria nos surpreender, o discurso que não só confirma as opiniões que o público já possui, mas que usa de sua arte, como com o emprego de máximas, para tornar essa opinião valorosa com as formas da Sabedoria (principalmente através da pretensão de universalidade).

E também é persuasivo o discurso que versa sobre coisas nobres e qualidades virtuosas, porque se supõe que aquele que fala do que é superior possui em si próprio algo de superior.

Em suma, o ser humano está geralmente predisposto a enganar e a ser enganado, e cria até mesmo uma arte refinada com o propósito de conquista e dominação da vontade alheia, independentemente da bondade ou verdade de suas idéias.

Assim como o discurso poético tem o potencial, derivado de uma capacidade humana geral para a mentira, de produzir uma falsa imagem da verdade, também o discurso retórico possui este potencial, embora o desenvolva em outra direção, não por artes imitativas, mas por artes discursivas.

Dito isso, o componente mais crucial da arte retórica como um todo, e que a inclina para a malícia ou corrupção derivadas de algum grau de Presunção, é o fator da busca do verossímil à revelia do provável em face de uma decisão tempestiva. O discurso retórico quer persuadir um árbitro, ou juiz, a decidir em tempo hábil sobre o objeto em disputa, e portanto sacrifica o desejo pelo que é bom e verdadeiro em face daquilo que parece ser bom e verdadeiro, isto é, opera uma espécie de troca do Amor (pela verdade) pelo Poder (para agir).

Isso significa que qualquer situação que leve um agente a ser persuasivo não por força das circunstâncias, mas por Pretensão, constitui uma tentação para a malícia.

Igualmente, aqueles que são amantes do Bem e da Verdade agem como seres livres da necessidade da arbitragem em qualquer disputa a que não sejam obrigados a participar por força maior, e se dão o direito mais nobre de buscar o mais provável ou certo, podendo assumir em seu benefício o fato de sua ignorância, sem sofrer a pressão como fazem aqueles que se escravizam em busca do Poder.

Nota espiritual: 5,3 (Calaquendi)

Humildade/Presunção5
Presença/Idolatria5
Louvor/Sedução-Pacto com a Morte5
Paixão/Terror-Pacto com o Inferno5
Soberania/Gnosticismo6
Vigilância/Ingenuidade6
Discernimento/Psiquismo5
Nota final5,3

Sendo a Singularidade inefável senão para um Intelecto infinito (divino), a única relação possível do ser finito com o infinito é o de amor como contemplação, confiança e repouso, atos antes volitivos do que intelectuais (§2, Cap. I)

§ 2. Sendo a Singularidade inefável senão para um Intelecto infinito (divino), a única relação possível do ser finito com o infinito é o de amor como contemplação, confiança e repouso, atos antes volitivos do que intelectuais. A Singularidade, ou Unicidade, é a qualidade de Absoluto e Infinito que Deus possui e que só Ele mesmo pode conhecer. Que exista o Infinito e o finito e a relação entre os dois é uma necessidade metafísica derivada da Percepção de qualquer contingente, já que sem Limite não há Percepção de formas discretas (conteúdos formais cuja primeira qualidade é a de participação no Ser e de formalização pelo Princípio de Identidade), e sem o Infinito não há atualidade possível a qualquer ser informado por um Limite. A operação do Intelecto é sempre garantida, do contrário não há sequer a Percepção da relação. O Uno, que transcende infinitamente, na sua completude, a capacidade de apreensão de um intelecto finito, só pode ser objeto de Amor e não de Gnose. O conhecimento sempre pode se expandir, da parte do intelecto finito, mas nunca alcança aquilo que só a vontade completa por sua crença voluntária sobre a essência da Unidade, especialmente na qualidade da Bondade. Daí o moto da Monadofilia ser “Coram Uno Amor Tantum” (“Diante do Uno, apenas o Amor”). A Unidade plenamente cognoscível ao ser contingente perderia sua essência e integridade, e se reduziria apenas a uma imagem do Ser da Unidade, como ocorre com as idolatrias da Natureza e do próprio Homem, por exemplo. O Uno só pode ser conhecido adequadamente, assim, através do amor que completa por desejo voluntário aquilo que o intelecto finito alcançou no seu Limite. Essa é uma aplicação direta das súmulas do Evangelho: “Ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11:27), “Ninguém vem ao Pai a não ser por mim” (Jo 14:6), “A vida eterna é esta: que eles te conheçam, a ti, o único Deus verdadeiro, e àquele que enviaste, Jesus Cristo” (17:3), “Eu lhes dei a glória que me deste para que sejam um, como nós somos um: Eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e para que o mundo reconheça que me enviaste e os amaste como amaste a mim” (Jo 17:22) e “Eu lhes dei a conhecer o teu nome e lhes darei a conhecê-lo, a fim de que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles” (Jo 17:26).