A escravidão do Poder e a liberdade do Amor

Talvez não haja maior genialidade na obra de Wagner do que a humilhação dos amantes do Poder em face da redenção daqueles que são fiéis ao Amor, conforme dramatizado na tetralogia de O Anel dos Nibelungos.

Enquanto Wotan e Alberich se engalfinham numa disputa mortal pelo governo do mundo, tendo que apelar para os estratagemas mais complexos e sofrendo as consequências mais angustiantes por sua perseguição ambiciosa do Poder, as Filhas do Reno são apresentadas como fiéis ao simples Amor representado pelo Ouro do Reno no seu estado ótimo, isto é, como potencial puro repousado no leito do grande rio.

O Rio Reno representa as Águas Primordiais, um símbolo da Possibilidade Universal, isto é, de tudo o que pode vir a ser desde o ideal. Wagner, alemão, idealista e romântico, não podia deixar de exaltar a possibilidade em face da realidade, e as Filhas do Reno, com seu canto e sua dança ao redor do Ouro do Reno, fazem homenagem ao puramente possível, em atitude de esperança confiante, na paz e alegria do repouso num poder superior que lhes trará a salvação.

Wotan e Alberich, por sua vez, são perseguidores do poder. Não podem repousar em nenhuma esperança num poder superior que os venha resgatar no futuro. Não: eles precisam salvar a si mesmos agora, obtendo poder e controle sobre o mundo. Embora Alberich seja tratado como um completo vilão, Wotan mostra-se tão escravizado pelo poder quanto seu inimigo. A única redenção que virá aos deuses será na justiça da sua própria extinção, quando Brunhilda realizará aquilo que seu pai jamais teve a coragem de fazer: a renúncia do poder na restituição do Anel às Filhas do Rio, para que se converta na sua forma original, como Ouro do Reno, de instrumento de dominação em objeto de louvor ao poder da verdadeira divindade.

Vejamos uma passagem bastante esclarecedora neste sentido, no Ato II da segunda ópera, Die Walküre:

Wotan: “Estou pego em minha própria armadilha e sou menos livre que qualquer humano. Esta vergonha merecida! Este merecido pesar! Os deuses estão em um perigo terrível! Nada resta senão raiva e lamentação! Eu sou o mais triste de todos. Se eu o disser em voz alta, não perderei então o comando da minha própria vontade? O que eu digo a ninguém exceto a mim mesmo continua não dito, e falando contigo eu estou apenas falando comigo mesmo. Quando os prazeres do amor de juventude se foram, eu desejei em meu coração o poder. Esse frenético desejo me impeliu a tomar o mundo para mim mesmo. Involuntariamente desonesto, eu agi deslealmente, fazendo tratados que me aliaram com enganosos e malignos poderes. Loge atraiu-me a tudo isso, e então ele desapareceu. No entanto, eu não podia abandonar o amor, e no meu poder eu o desejei. Embora Alberich tenha nascido uma criatura temível da noite, ele se libertou disso e ousou amaldiçoar o amor. Por sua maldição ele ganhou o brilhante Ouro do Reno, e com ele um poder incalculável. Eu o fiz perder o anel que criou com um truque, mas não o devolvi de volta ao Reno. Eu o usei para pagar por Valhalla, o castelo que os gigantes construíram para mim e a partir do qual eu governei o mundo. Erda, a mais sábia das mulheres, disse-me que deveria abrir mão do anel, e me alertou sobre o destino eterno. Eu queria que ela me dissesse mais, mas ela desapareceu silenciosamente. Então eu perdi toda a leveza do coração, e desejei apenas o conhecimento divino. Mergulhei nas profundezas da terra. Lá eu seduzi Erda com o poder do amor. Eu a fiz compartilhar sua sabedoria e me explicar tudo. Ela me deu seu conhecimento. Em retorno, eu lhe dei uma descendência. A mulher mais sábia do mundo me deu a ti, Brunhilda. Eu te trouxe com oito irmãs. Através de vocês Valquírias eu quis afastar o que Erda me ensinou a temer: um fim vergonhoso para os imortais. Desse modo nossos inimigos nos encontrariam fortes em batalha. Eu te enviei para encontrar-me heróis, homens que nós antes tínhamos mantido em servidão. Homens que nós subjugamos, e que prendemos com tratados para mantê-los em cega obediência. Você foi enviada para colocá-los uns contra os outros, para testar suas forças em furiosas batalhas, para que eu pudesse reunir os guerreiros mais bravos no salão de Valhalla. Há outra coisa sobre a qual Erda me alertou. Alberich nos ameaça destruir com seu exército. Ele me odeia com uma fúria invejosa. Mas agora eu não temo suas forças sombrias. Meus heróis me darão a vitória. Mas se a qualquer momento ele ganhar o anel de volta, então Valhalla será perdida. Ele amaldiçoou o amor, e através de sua inveja ele usaria o anel para trazer uma vergonha sem fim a todos os deuses. Ele jogaria meus bravos heróis contra mim e usaria a sua força para fazer-me guerra. Eu tentei encontrar um meio de manter o anel longe de meu inimigo. Um dos gigantes ao qual eu dei um dia o amaldiçoado ouro como pagamento pelo trabalho, Fafner, o gigante, guarda o ouro maldito pelo qual ele matou seu irmão. Eu teria que apanhar de volta o anel que eu o paguei como salário. Mas desde que eu fiz um tratado com ele, não posso atacá-lo. Impotente diante dele, minha coragem me falharia. Esses são os grilhões que me prendem. Eu me tornei governante do mundo através de tratados, e esses tratados agora me escravizam. Apenas um homem pode fazer o que eu não pude. Um herói, alguém a quem eu nunca ajudei, um estranho ao deus, livre de seus favores, voluntariamente e sem comando, e partindo apenas de sua própria necessidade, com suas próprias armas. Ele poderia fazer o que eu não posso, e o que eu nunca pedi que fizesse, ainda que seja a única coisa que eu deseje. Esse homem que luta contra os deuses, e que ainda assim lutará por mim, esse inimigo amigável, como eu poderia encontrá-lo? Como posso criar um homem livre a quem eu nunca protegi e que ao me desafiar se tornará o meu mais querido amigo? Como posso criar este Outro que já não é mais parte de mim e que, de sua própria liberdade, pode fazer o que eu sozinho desejo? Que destino desgraçado para um deus! Me repugna que eu me encontre apenas a mim mesmo em tudo o que faço. Esse outro que eu desejo, nunca posso encontrar, pois o homem livre deve criar a si próprio. Só posso produzir servos para mim mesmo.”

Fricka, a protetora dos contratos de casamento, foi quem imediatamente denunciou o autoengano de seu marido, para o grande desgosto deste que se viu então obrigado a pedir pela morte de Siegmund. Embora deteste a intervenção da esposa, por tudo o que isso representa, Wotan é escravo de si mesmo, de sua ambição de poder, que é o que lhe impede de realizar a sua vontade final, e que foi o que lhe impeliu em direção ao objeto de sua ruína em primeiro lugar, a construção de Valhalla, a morada dos “deuses” que ele mesmo desejará ver destruída.

A pista da liberdade não estava em nada disso, nem em Valhalla e nem no Anel de Poder, mas naquela bem-aventurança das Filhas do Reno, cuja suposta ingenuidade e tolice foi troçada pelos soberbos Alberich e Wotan, que no desprezo do puro Amor conseguiram apenas atrair a desgraça e a maldição para si mesmos.

A verdadeira arte divina de criar seres que livremente desejem amar é o que escapa a Wotan, o falso deus, ladrão e usurpador, mentiroso e tirano, que ao menos teve uma última lucidez ao decretar um desejo correto em face de seu fracasso espiritual: o desejo pelo fim, realizado finalmente por Brunhilda, a heroína fiel ao Amor.

Com Götterdammerung Wagner realiza uma profunda justiça na forma de sua arte, um grande alerta contra a ambição do Poder, e o elogio da confiança no Amor.

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