Aprendi com o próprio Jesus Cristo, com seus apóstolos João e Paulo, e com cristãos de outras épocas como Agostinho, que existe sempre uma leitura espiritual e uma leitura carnal das Sagradas Escrituras, determinada pelo grau de consciência e discernimento de cada alma, o que por sua vez é definido pela intenção livre de cada coração humano de aceitar ou não a instrução do Espírito Santo.
Jesus faz um alerta terrível que deve abalar muitas almas por aí até hoje, quando disse que há quem o chame de Senhor e até faça muitas obras em seu Nome, mas que no momento da salvação pedirão por sua intervenção sem sucesso, quando ele dirá: “nunca vos conheci, apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade“.
Isso é maravilhoso e bem em linha com a maturidade espiritual cristã que identifica na mentira da hipocrisia o verdadeiro mal contra a santidade de Deus, e não na fraqueza humana. Até aí tudo bem.
O problema vem quando Jesus diz que ao perguntarem sobre a razão dessas coisas, ele afirma que falharam aqueles que, ao pedido de pão e água pelos menores irmãos, negaram essas coisas.
Imediatamente pensamos nos miseráveis da Terra, na caridade do amparo material, etc., o que parece confuso porque o que Jesus dizia era que justamente esse tipo de obra exterior era espiritualmente vazia se não correspondesse a uma inclinação correta do coração, de modo que alguém que seja honesto, mesmo que fraco nas obras, ou até omisso, poderia ser tido como fiel verdadeiro, enquanto que alguém muito bem sucedido nas obras externas poderia ser tido como falso e mentiroso, se a essa atitude exterior não correspondesse uma honestidade interior, principalmente no sentido da compra da salvação, ou seja, em um desejo de fazer negócios com o Amor divino.
Como resolver esse problema?
Resolvemos pela leitura espiritual.
Toda confusão deriva da leitura carnal, que tenta voltar sempre ao poder que o ser humano quer ter de se salvar por si mesmo, ou seja, de forçar Deus a agir de forma “amorosa” não como emanação livre da sua natureza, mas como contrapartida de uma relação de troca.
O que Jesus realmente quer dizer é que se você é um religioso que se nega a dar o testemunho do Amor de Deus na sua pureza e simplicidade quando isso lhe é pedido, você está negando o pão e a água aos fiéis.
Estas espécies são sempre símbolos do testemunho da verdade na linguagem divina. Deveria ficar muito evidente que é disto que o Filho de Deus está falando, já que ele veio para salvar os pecadores não com uma panacéia socialista, ou com uma revolução militar contra Roma, mas com o testemunho do Amor do Pai. Nunca que a fraqueza derivada dos medos humanos, muito naturais, frutos da condição de encarnação num mundo amaldiçoado e decaído, seria usada contra os fiéis. Mas a sua omissão ao dar testemunho do Amor do Pai revelado pelo Filho e, principalmente, nem tanto na forma da pregação, mas pela vida amorosa na forma do perdão e da misericórdia, isto sim é condenável, porque é uma falsidade, não é o esperado de um seguidor de Jesus Cristo.
Lembrem-se que Jesus, tentado no deserto, respondeu ao tentador: “nem só de pão vive o homem, mas de toda Palavra de Deus“.
O Filho não veio emendar uma humanidade decaída e amaldiçoada que só poderá ter remédio com a destruição destas coisas velhas. Ele veio dar o testemunho do Amor do Pai, de modo que todo aquele que confie nesta promessa receba a herança a que está destinado. Isso é assim para todo que creia neste Amor e aja de acordo com esta crença, sendo sal da terra e luz do mundo, vivendo o perdão e a misericórdia. É uma obra muito mais excelente e santa, universal e poderosa.
Deste modo podemos parafrasear a sentença de Jesus, por exemplo, assim:
Apartai-vos de mim os que quiseram comprar a salvação diminuindo o Amor do Pai com seus próprios méritos, esforços, obras e virtudes.
Nunca vos conheci, pois vocês nunca quiseram ser salvos, mas só desejaram salvar a si mesmos.
Isso é o que condiz com a guerra de Deus contra a mentira da idolatria e da presunção, que é o único verdadeiro obstáculo que impede o trinfo do seu Amor: a recusa direta da salvação pela presunção do mérito espiritual.
Um avarento, um fraco qualquer, é apenas mais um pecador que pode a qualquer momento dizer “sim” para a salvação do Amor divino, a partir mesmo do reconhecimento de que não foi tão caridoso nas coisas materiais quanto poderia ou deveria ter sido. Este pode confiar no Amor de Deus que lhe salve de sua miséria espiritual.
Mas e o rico em obras aparentes, carnais, inclusive e principalmente com caridades materiais, especialmente as mais pirotécnicas?
Esse não sabe que precisa da misericórdia de Deus tanto quanto o avarento que se sabe pecador, e eis o seu grande engano, e a sua ruína: é um mentiroso que acha não não vive a mesma miséria espiritual do seu irmão mais fraco.
É assim que o pobre de espírito é um bem-aventurado, pois não se orgulha de si e assume a sua miséria, e por isso se diz que é na fraqueza humana que a força de Deus mostra todo o seu poder, pois sua força é o Amor para aqueles que desejam ser amados, e não recompensados por seus falsos méritos, já que diante de Deus ninguém se justifica, somente o Filho o faz diante do Pai.
Este é o testemunho cristão.