Devemos ter, em primeiro lugar e sempre, a clareza da natureza e origem sobrenatural dos dons espirituais que sustentam a vida interior do cristão, a saber, a Fé, a Esperança e o Amor, que são concessões da Graça divina a favor daqueles que aceitam voluntariamente a sua formação pela comunhão com o Espírito Santo de Deus.
Dito isso, convém compreender como pode ser movida a vontade humana no sentido da aceitação dessa direção espiritual da Graça divina.
Não nos cabe questionar a dispensação da Graça aos fiéis, mas interessa o entendimento do concurso das faculdades humanas na direção da recepção da vontade divina.
Ora, o que cabe ao ser humano é o esvaziamento da sua pretensão, a renúncia, a fuga do mal, a abstenção na participação do espírito do mundo, um deixar de ser por si, em suma, o fim da idolatria em geral, mas em especial particularmente do antropoteísmo humanista.
Então o que o ser humano deve fazer é deixar de ser idólatra de si mesmo, especialmente na forma da sua razão humana, que é o psiquismo gnóstico, que foi a forma da traição originária contra a Aliança com Deus no princípio dos tempos. Se todos nascemos do pecado original que se consubstancia na mentira da salvação sem Deus através da emancipação gnóstica, é preciso fazer a renúncia que os nossos pais não fizeram a esta mentira. E a reafirmação da verdade traída da Aliança com Deus é a confissão da condição humana decaída e amaldiçoada, o que nos livra da mentira de ser orgulhosos e pretensiosos.
Numa palavra: a primeira chave da vida espiritual é a Humildade.
Não foi nada casual o testemunho do próprio Filho de Deus quando este nos ensinou: “aprendei de mim, que sou humilde.”
Este é o ponto mais alto da tradição cristã, quando grandes ou pequenas autoridades das igrejas reafirmaram o valor da virtude da Humildade em face de todas as outras, já que tudo é Graça de Deus, o que valida o tributo humano ao Amor divino que é o próprio reconhecimento da exclusividade da origem divina das virtudes, de modo que esta virtude é a mais propriamente humana, embora obviamente também sustentada pela Graça como fundamento.
Quem não puder se esvaziar da mentira não terá lugar para o abrigo da verdade que não lhe pertence. E em nada isso fica mais claro do que no questionamento da vida psíquica do ser humano como sede da consciência, que dá lugar ao reconhecimento da vida espiritual como a verdade da substância humana diante de Deus.
Isto quer dizer que a sede da alma é o coração e não a mente: não vivemos diante de Deus respondendo pelo que dominamos com o nosso intelecto, mas sim pelo que acreditamos com a nossa liberdade.
Nossa imagem e semelhança à natureza divina não só se refere ao dom intelectual, mas também e sobretudo ao dom do livre-arbítrio, já que este supera aquele quando se permite questionar dialeticamente qualquer verdade evidenciada pelo intelecto (ou seja, mentir), como também projetar a imagem da verdade sobre o que é desconhecido na forma da crença. Se a vontade não fosse superior, não teria soberania sobre o intelecto, tanto na forma do questionamento legítimo quanto na forma da mentira, e nem daria uma resposta de valor moral com base em princípios e valores autoevidentes que a própria vontade assente livremente e reconhece como premissas ao poder racional da mente humana. Assim, a vida psíquica parte de crenças e termina em crenças, ou seja, age sob o império da soberania da vontade: inicia sua atividade a partir do que é assentido como verdadeiro e termina formulando a razoabilidade daquilo que será proposto como o verdadeiro.
O aporte do Intelecto na vida espiritual certamente existe e se dá na autoevidência das verdades metafísicas que confirmam a condição humana, inclusive a da soberania do livre-arbítrio sobre tudo o que não é matéria de evidência intelectual. Abaixo deste nível de atuação noético, a potência intelectual se torna um recurso dialético que trabalha na produção da imagem da verdade, a convite da soberania da liberdade da vontade humana.
Perceba-se que até mesmo a evidência mais inquestionável, de natureza lógica e noética, aletheia apodeixis, é convidada pela vontade livre que assente com o reconhecimento da legitimidade do império da verdade que é evidenciada.
Assim, o psiquismo gnóstico deve ser derrotado na nossa vida interior, ao assumirmos que não obteremos nenhuma salvação pelas luzes dos nossos domínios cognitivos que são servos da vontade livre, e o que interessa é o condicionamento dessa vontade livre ao seu objeto mais perfeito, que é o Amor de Deus.
A Humildade vence o psiquismo gnóstico e aponta para o Coração, sede da vontade livre, único lugar onde pode habitar o Espírito Santo do Deus verdadeiro.
O Coração é a segunda chave da vida espiritual, porque é o instrumento da ação da consciência, da responsabilidade e do poder de assentimento ao Discernimento do Espírito Santo. Vencida a pretensão do psiquismo gnóstico, resta-nos a consciência e responsabilização da vontade livre em acordo com o dom divino que nos permite discernir o sentido do nosso viver.
O ser humano deve reconhecer que se define pelos seus termos, e deve tornar translúcido o seu segredo, de modo que saia das trevas o motor do viver que se escondia atrás do maquinário raciocinante. A segunda chave derrota o segundo nível de mentira. Primeiro, destrói-se a mentira de que o domínio do intelecto move a vontade, quando o contrário é a realidade. Segundo, destrói-se a mentira de que a vontade é movida por forças exteriores numa dinâmica causal independente, quando a realidade é que a vontade move-se por si mesma ao seu arbítrio, de modo que essa moção deve ser consciente e responsável.
Tanto quanto a verdade da Humildade levou à verdade do Coração, a verdade deste levará então à verdade do Amor, que é a última chave da vida espiritual.
Pois nenhum outro objeto é tão perfeito e desejável para toda a liberdade, como o confirma facilmente o recurso ao dom do Intelecto, quanto o Bem, de modo que a única crença verdadeira é a que se dirige ao Amor divino, como o Amor é o desejo do Bem, e a única vida plenamente vivida diante de Deus uma vida em que a consciência humana assuma a responsabilidade de crer no Amor de Deus, com todas as consequências que derivam dessa decisão.
Humilde, o ser humano se rende à verdade do Coração, isto é, da sua liberdade de mover-se, inclusive intelectualmente, na direção do objeto do seu desejo, e finalmente se rende à verdade do Amor que é o objeto mais perfeito da vida espiritual.
Quando finge que domina uma verdade que lhe transcende, o ser humano se incha da pretensão gnóstica, e a sua cura está na libertação dessa presunção assumindo que o que lhe move é o desejo da sua vontade, mas que então nenhum objeto é tão amável quando o Bem de Deus, provido pelo Amor do Criador. Esse é o caminho da rendição espiritual desde a soberba gnóstica até a humildade cristã.
Não é para ser senhor da verdade que o ser humano recebeu o dom do seu Intelecto, mas para ilustrar, com a Graça de Deus que lhe provê as luzes da razão natural, a necessidade da rendição ao Amor divino como solução exclusiva da condição humana, justamente pela sua fraqueza, e não por uma falsa força. A suficiência é mentirosa, é o erro básico da emancipação da idolatria, e a renúncia humilde a essa pretensão é a correção do erro dos nossos ancestrais. O que resta é o ser humano corrigido pela sua causa final, que não é a de sábio, mas a de vivente, amante e amado.
A Humildade é a chave do Coração, o Coração é a chave do Amor, e o Amor é a chave da Vida.