Ouvi recentemente, de certo tomista renomado no país, que a “história serve para a salvação dos eleitos”. Aliás, esta afirmação foi repetida mais de uma vez em circunstâncias diferentes, em conversas diversas.
Gosto da lógica do serviço da existência contingente para a realização de uma causa final superior, e uso o tempo todo esse tipo de lógica. De fato, tudo o que é material e eficientemente causado o é para a realização das causas formal e final, de acordo com a designação de um decreto transcendente. O Logos divino chama todas as coisas a existir para um propósito bem designado e dentro de uma ordem bem definida.
Dito isto, não posso concordar tanto com a colocação do referido tomista, ou pelo menos não totalmente.
Realmente há uma função soteriológica na história deste mundo presente, como na de qualquer outro mundo que exista em condição análoga, isto é, para a definição da liberdade de aceitação ou rejeição do Amor divino.
Porém, a história deste nosso mundo em particular não decorre somente do arbítrio divino que determinou o campo de ação da liberdade humana. Esta liberdade humana já se manifestou ancestralmente na forma de uma traição fundamental que já foi bem localizada até mesmo pela tradição religiosa: o Pecado Original. E em decorrência dessa ruptura com o gesto de Aliança a partir da vontade do Criador, foi decretada uma também muito bem definida e ainda vigente Maldição contra a usurpação do erro humano da busca de emancipação do Amor do Eterno.
E eis o nosso problema: do jeito que se propõe, parece que é Deus quem deseja que mais almas se encarnem neste estado decadente e amaldiçoado, e não justamente os descendentes daquela traição ancestral que reproduzem, com seus atos, e por sua responsabilidade, o mesmo gesto de desobediência de seus pais. Esse gesto é o que que sustenta a justiça do próprio estado de Queda do qual cada nova geração nascida sem defesa, inocentemente, é obrigada a participar.
Assim, quando ouvimos a justificação das coisas presentes neste mundo, isto é, das mais variadas formas de sofrimento humano, tal situação é colocada na conta dos planos divinos, como se Deus tivesse que fazer uso de toda a miséria e loucura humana para a salvação dos seus, quando a verdade é que é o ser humano que ainda requer a experiência da vida na traição e usurpação, como seus pais, para alcançar o completamento da sua experiência espiritual diante de Deus.
É preciso desmontar e desmoralizar completamente essa narrativa trágica e fatalista que entende como inevitável o presente estado de coisas neste mundo, pois esta é uma fuga muito conveniente e covarde da realidade de que o ser humano é o responsável, pelo seu arbítrio, pela produção e perpetuação de todo o mal. Isto não deveria jamais entrar na consideração de uma necessidade divina, o que é indigno e desonroso perante a santidade do Criador. Quem tem necessidade da experiência do mal é essa raça maldita de traidores e mentirosos que ainda hoje continua debitando da economia salvífica de Deus aquilo que deveria pesar apenas sobre as suas próprias costas, como aliás acaba pesando por força da justiça do decreto da Maldição.
Por idolatria masoquista do sofrimento, por exemplo no símbolo da Cruz cristã, ou na idolatria naturalista da animalidade humana, ou qualquer outra, nossos irmãos continuam omitindo seu dever de consciência e responsabilidade. Preferem se comparar a animais, escravos e mercenários, do que assumir o chamado à dignidade da eleição filial ao Amor de Deus. E no maior descaramento depõem contra o Amor divino, dando testemunho das Trevas que lhes são peculiares, confundindo propositalmente o que Deus quer com o que Deus permite.
Se questionassem a qualquer momento o que Deus quer mesmo, veriam no Filho de Deus, encarnado Filho do Homem, o seu exemplo de vida perfeito e acabado: uma alma humilde e mansa, despretensiosa, separada da mistura do mundo, ansiosa apenas para o retorno à perfeição no seio do Pai. Isso obviamente não tem nada a ver com as formas de poder neste mundo, seja familiar, econômico, militar, político ou cultural. Ao contrário, é a renúncia de tudo isto.
Não falta nada a um cristão que queira cair em si, ainda menos a um tomista cujas luzes da razão natural já lhe deram privilégio maior ainda para aproveitar a oportunidade de assumir a verdade das coisas.
Será possível que aqueles que se dizem amantes da verdade possam começar a desejar de fato o objeto do seu amor?
A História serve sim para a salvação dos eleitos, mas não porque Deus quisesse que esta História fosse assim, e sim porque não deram outra chance a Ele, e o traíram desde o começo, forçando o seu Amor ao gesto mais extremo de misericórdia, como fazem até hoje.
Desde a primeira geração a nossa raça errou, e não satisfeita com sua rebeldia, repudiou todo testemunho verdadeiro que viesse da Palavra de Deus, assassinou cada Profeta do Senhor e finalmente completou a sua medida com a injustiça contra o próprio Cordeiro de Deus.
Pois bem, o Cordeiro está voltando como Leão para praticar o último gesto de misericórdia que é possível para com essa humanidade que permanece lhe traindo obstinadamente, dizendo que essa traição é a própria vontade do Senhor: vai salvar o seu resto que lhe pertence, e então exterminar completamente tudo o mais que não lhe tem serventia.