A Sagrada Família que a religião adora louvar e odeia imitar

Já falamos antes da grande diferença que há entre as Obras da Carne, personificadas no mito por Adão e Eva, e as Obras do Espírito, personificadas por Jesus e Maria. E já falamos que pelos frutos se conhecerá a árvore: quem segue Adão e Eva os imita e produz o mesmo que eles produziram, e quem segue Jesus e Maria os imita e produz o mesmo que eles produziram.

Essa diferença dos dois tipos de destino humano já mostra tudo o que precisamos saber sobre a essência da vida espiritual: a escolha humana se dá entre a obediência e a rebelião, entre a dependência do Amor divino e a busca do Poder de emancipação. De um lado aceita-se a exclusividade da santidade divina de criar, e do outro presume-se poder criar vida por procuração, e não qualquer vida, mas o tipo mais sagrado que pode haver na corporeidade da carne e do sangue.

A decisão humana de tomar o lugar de Deus sempre me parecerá assombrosa, por todos os lados em que eu a possa considerar. Não só espiritualmente, aliás, mas também psicologicamente: cá entre nós, como pode uma personalidade livre de qualquer narcisismo se achar boa o suficiente para criar uma vida humana? Eu SEI que não sou competente nem para cuidar de um cachorro, e que vou fazer injustiça ao animal. Mas de algum modo presume-se que eu deveria ter grandes pretensões, do contrário a minha vida não serviria para nada, afinal, de que vale uma alma fraca que é apenas capaz de glorificar o santo Nome do Eterno e confiar na sua Providência? Isso parece pouco.

Mas voltemos ao tema central.

Um fato igualmente impressionante, e que novamente corrobora a opinião muito razoável de que a nossa raça é cheia de traição e mentira, é o quanto se dissocia a virtude da Sagrada Família dos fatos que a sustentam espiritualmente. Será que toda a religião cristã é uma forma de esquizofrenia?

Senão vejamos: a religião cristã parece adorar o valor simbólico e totêmico, ou fetichista, da Sagrada Família, e ao mesmo tempo detestar a imitação do seu exemplo.

Pensemos nesta época do ano. É difícil entrar em uma galeria comercial, ou um shopping center, neste período natalino, e não encontrar presépios montados para mostrar a reunião da Sagrada Família. Nas escolas e em várias comunidades encena-se a Natividade, com o mesmo cenário e os mesmos personagens de sempre. E, é claro, nas igrejas celebra-se de várias maneiras o Advento, seguindo o calendário das festas. Tudo muito tocante, e não fosse o fato de que provavelmente Jesus não nasceu nesta época do ano (talvez tenha sido em Setembro, e há quem diga Março), já que a data de 25 de Dezembro foi uma escolha romana para substituir as festas pagãs com a mitologia cristã, não teríamos muito o que observar a respeito.

Mas eis que tudo o que a cena do nascimento de Jesus aponta espiritualmente é diretamente desprezado pelas massas religiosas.

Aquela Sagrada Família é composta de pessoas obedientes a Deus de uma maneira bastante peculiar e não acidental.

Em primeiro lugar temos José e Maria, que renunciam à realidade de um casamento ao modo convencional (a Tradição de Adão e Eva ensinada pelo Ouroboros) para obedecer a um desígnio divino. A tão venerada (ou até adorada?) Virgem Maria é, afinal, e não casualmente, uma virgem, e isso por alguma razão especialíssima. Maria faz o que Eva jamais quis ou conseguiu fazer: renunciar à sedução do Pacto Ouroboros, ao poder das Obras da Carne. Maria aceitou viver somente pela Graça do Altíssimo. Eva quis poder sobre o seu marido e sobre os seus filhos. Não lhe bastava amar a Deus como Pai e a Adão como seu irmão. Não, ela precisava ser esposa e mãe, e tudo por “amor”, claro. E pelos frutos conhecereis a árvore: da obediência e virgindade de Maria nasceu Jesus Cristo, o próprio Filho de Deus encarnado Filho do Homem; já de Eva nasceu a traição e o assassinato. E antes que digam que de Eva não nasceu apenas isso, atentem para a realidade de que a cada geração é o Espírito Santo quem converte as almas à adoração do Deus verdadeiro, e não o costume da carne, como Jesus mesmo declarou a Pedro quando este o reconheceu com o Filho de Deus, bendizendo-o porque somente o Espírito Santo do Pai o poderia ter revelado, e não a carne e o sangue.

Em segundo lugar, mas não por último, temos o próprio Jesus Cristo que viveu para realizar o crescimento e a multiplicação do Espírito, e não da Carne: ensinou, curou, perdoou, amou plenamente. E nos ensinou a amarmos uns aos outros como ele nos amou, como IRMÃOS que somos uns dos outros, e não como instrumentos de Poder. Jesus nunca casou e nunca teve filhos, mas cresceu e multiplicou no Espírito, e sendo o Caminho, abriu as portas da filiação espiritual ao Pai, a quem veio revelar. Ele dizia: a minha família são estes que acreditam em mim. E desprezou diretamente todos os méritos da carne e do sangue, humilhando os judeus ao afirmar que até de pedras Deus pode fazer filhos de Abraão. Jesus fez o que Adão jamais quis ou pôde fazer: renunciou a todo o poder sobre o mundo quando resistiu à última tentação da Serpente, poder o qual aliás ele tinha a autoridade real de reivindicar, bem ao contrário de Adão que fez pacto com a Serpente e traiu o Amor de Deus. A religião de Jesus era perfeita: não deixou viúva ou órfão, e amou até o fim quando deu à sua mãe o Apóstolo Amado como filho, e a este àquela como mãe.

Eis a Sagrada Família na sua virtude: Jesus, Maria e José, amantes verdadeiros e cheios do espírito de renúncia ao Poder ilegítimo.

Essa Sagrada Família é muito venerada na sua IMAGEM, já que como em qualquer religião, também na religião cristã o que se pratica é idolatria. Muitos “cristãos” louvam não o exemplo de virtude e santidade da Sagrada Família, mas a sua imagem de virtude e santidade, e para isso produzem todo tipo de arte humana que sustenta o poder da Tradição Primordial: esculpem, pintam, compõem músicas, cantam, atuam, etc.

Fazem tudo, tudo menos imitar a Sagrada Família.

O que importa é desprezado, isto é, a substância da vida espiritual, o viver na Presença de Deus com confiança na exclusividade do Amor divino.

Enquanto isso tudo o que tem a aparência e a imagem da santidade é adorado, venerado e louvado, como se por efeito mágico a conexão com esses ícones produzisse um efeito espiritual independentemente do sentido real da vida do crente, exatamente como ocorre com qualquer tipo de idolatria pagã, como com o totemismo, o fetichismo, etc., na total ignorância da realidade espiritual humana que diz respeito exclusivamente à crença livre no interior dos corações, independentemente das aparências das coisas.

Se aparecer uma pessoa pronta a viver de acordo com o exemplo real da Sagrada Família, enquanto desprezar o culto religioso de imagens, esta será considerada no mínimo estranha, senão mesmo como antagonista da vida cristã.

O que nos resta é amar a verdade e buscá-la incessantemente, desprezando as aparências e ligando-nos à realidade do sentido espiritual de tudo o que vivemos. Este é o meu conselho: saiamos dessa coletividade, desse grupo de mentirosos. Não temamos pela solidão.

Reparem bem: não estamos sozinhos quando confiamos no nosso Deus e nos movemos por amor à verdade. Os enganados são aqueles que se aglomeram, achando que sua imitação ao costume lhes empresta virtude por osmose. Estes estão muito mais sozinhos do que imaginam, e talvez suspeitem disso no fundo de suas almas, isto é, se não acreditam totalmente em sua própria mentira.

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