§ 1. Alguém me pediu para comentar o filme De olhos bem fechados, de Kubrick. Pensando em fazê-lo, me veio a idéia de assistir todos os filmes mais conhecidos desse famoso diretor, o que me fez listar dez títulos. Começando pelo mais antigo entre esses dez, reassisti essa jóia do cinema e que já não via faz tempo, que é o Glória feita de sangue (Paths to Glory), com Kirk Douglas, de 1957.
§ 2. A história conta do destino dos infelizes soldados do 701º Regimento do Exército da França durante a Primeira Guerra Mundial. O ano é 1916. A frente ocidental é um moedor de carne. Ninguém avança. Nenhum ataque faz sentido, e de fato apenas em 1918 os Aliados conseguiriam contra-atacar com sucesso e acabar com a guerra. Mas os oficiais franceses têm a sua própria batalha de ambições e vaidades a travar. Não bastasse viverem em condições extraordinariamente melhores do que os soldados sob o seu comando na frente de batalha, os membros do alto oficialato desejam promover-se às custas do sofrimento e da morte de seus soldados. É assim que começa o nosso filme. O General Broulard, do Estado-Maior francês, pede que o General Mireau ordene um ataque de suas tropas à uma posição fortificada inimiga chamada de “Formigueiro”. Mireau imediatamente afirma que a ordem é absurda e não pode ser executada. É uma missão muito arriscada, para não dizer impossível de ser cumprida. Broulard oferece então uma promoção em caso de sucesso, embora de forma disfarçada, com um certo decoro repulsivo. Para Mireau o custo pessoal é baixo em caso de derrota, mas os ganhos são vantajosos. Isso porque a vida e a segurança de seus soldados já não vale mais nada para ele, é claro.
§ 3. Acontece que Mireau vai precisar da colaboração do comandante do 701º Regimento, o Coronel Dax (Kirk Douglas), para que este conduza o ataque na linha de frente. Dax está cético e relutante: não é um jogador com a vida de seus homens, como Mireau e Broulard. Mas Mireau simplesmente ameaça removê-lo do comando por motivo de exaustão. Dax aceita a ordem e lidera o desastroso ataque. O resultado é medonho. Os alemães trucidam os franceses. Uma parte da tropa mal conseguiu sair de sua posição inicial na trincheira. Possuído de ódio, Mireau ordena que sua própria artilharia bombardeie aquela posição, para forçar os soldados a se moverem. Seu comando é rejeitado: deve dar a sua ordem por escrito, o que obviamente ele não faz.
§ 4. O ataque falhou, como era previsível. Mireau pede algumas cabeças da tropa para uma corte marcial exemplar. Três soldados são escolhidos para serem acusados de covardia, julgados e condenados. Dax tenta persuadir Broulard a interferir no processo, ameaçando revelar publicamente a ordem de Mireau para bombardear suas próprias tropas, mas o General carreirista interpreta essa iniciativa como uma chantagem de Dax para que fosse promovido à posição de Mireau. Os homens são fuzilados, e então Broulard oferece a promoção para Dax, que fica completamente enojado. Na melhor cena do filme, Dax diz para Broulard: “você é apenas um velho degenerado e sádico“.
§ 5. Logo depois, na última cena do filme, Dax tem uma experiência maravilhosa ao observar a sua tropa se divertindo num café no tempo de descanso antes de serem enviados novamente ao front. Uma alemã é levada a se apresentar para os soldados. Alvoroçados, se comportam como os animais desprezíveis compatíveis com o tratamento dispensado a eles pelos altos comandantes. Mas então a bela jovem começa a cantar e aos poucos os homens se apaziguam e se comovem, como se tivessem voltado para a casa materna como meninos novamente. E assim eles acompanham a cantora e Dax os vê como os seres dignos de misericórdia que ele sempre acreditou que eles fossem. É a sua vitória moral depois de tantas agonias.
§ 6. O filme é humanitário, antes de ser humanista. A diferença é importante, para não dizer decisiva. Porque ele desperta compaixão, e não orgulho. Não há nada de que se orgulhar. Mesmo Dax, no fim das contas, se comporta apenas dignamente no meio da insanidade da guerra, como um ser humano normal na posse plena de suas faculdades. Isso já nos livra daquele engano fatal da romantização da guerra, para não falar da romantização da condição humana como um todo. Espiritualmente, temos duas questões importantes trazidas por esta obra de Kubrick.
§ 7. A primeira é o testemunho favorável ao dom de Vigilância. O Coronel Dax é uma testemunha privilegiada de como opera o Sistema da Besta, e também o Pacto Sadomasoquista. Vê nas ambições e vaidades de Broulard e Mireau a monstruosidade demoníaca do desejo de poder. E fica horrorizado que Broulard tenha lhe tido como um dos seus, e não como um defensor das vidas de três soldados. Eventualmente isso sempre acontece com lideranças de segundo escalão: são convidadas a tomar assento na mesa dos grandes servidores voluntários do inferno. Broulard e Mireau são Cavalos no Xadrez do Diabo. Dax se recusa a tornar-se um deles.
§ 8. Mas a questão vai além. Um dos soldados escolhido para ser executado agride o Padre Dupree, questionando o sentido da salvação que lhe é oferecida nesse momento de aflição. O religioso só diz que é preciso aceitar os caminhos de Deus, que são misteriosos. Mas nenhuma fé pode ser adquirida assim, e nenhum esclarecimento. Dupree poderia ter denunciado todo o mal do mundo e levado a Boa Notícia de que em breve os três estariam livres de todos os demônios da Terra, a começar pelo Papa e pelo Presidente da França. Mas ele não pode fazer nada disso. Sua Ressurreição é fraca, quase vazia, um eco morto. Seu papel não é o de levar o Evangelho aos pobres, mas de garantir que os prisioneiros se comportem bem durante a execução, que é um evento público. Está à serviço do mesmo Sistema da Besta, no papel de Bispo, associado com o Cavalo. E, não surpreendentemente, mais tarde o asqueroso Mireau dirá a Dax: “parabéns, seus homens morreram muito bem“.
§ 9. O tema mais relevante do filme, porém, é o da inevitabilidade da morte. Para ser justo, o Padre Dupree fala disso, mas é apenas uma consolação formal e protocolar bem superficial, dentro do seu papel social. Não há fervor, não há um testemunho digno de Jesus Cristo. Um dos condenados à execução pergunta, muito sincero: “por que preciso morrer?” A necessidade dessa experiência, a mais universal e unificante das experiências humanas (além apenas do nascimento), mostra que a disputa moral entre corajosos e covardes é um tanto fútil. Quem escapará da morte, depois de ter nascido? E se um homem tem o defeito da covardia, quantos defeitos não tinham também os que morreram corajosamente? O que importa é dar uma resposta universal à essa pergunta universal: por que precisamos morrer? E a resposta cristã é: não precisamos, e não morreremos. Nossos corpos, frutos das Obras da Carne, esses sim precisam morrer, e isso justamente para que nós possamos viver para sempre de fato. Se o grão que cair na Terra não morrer, não gerará o fruto para a Eternidade. Isto nos leva ao mais importante dos papéis do Sistema da Besta. Seria o do Rei? Ou da Rainha? Nada disso. É o do Peão. Sem o Pecado Original não há fonte de poder para os Mireau, os Broulard, ou para qualquer vilão que seja neste mundo. Essa é a fonte de poder para o Ouroboros e todos os seus associados no mundo, e continuará sendo até o fim do mundo. Mas como poderiam gozar da paz provinda desse entendimento aqueles pobres soldados que não só não receberam o verdadeiro Evangelho, como possivelmente também nunca o procurariam mais tarde, mesmo que fossem poupados e que vivessem longas vidas?
§ 10. A chave está naquela última cena. Digo, talvez esteja. A arte nos permite projetar idéias e sentidos com essa facilidade. Mas me parece muito viável pensar assim, e acho que me entenderão. Aqueles soldados brutalizados não foram apenas iniciados nos males da guerra, mas na própria essência perversa da Queda, da rejeição do Amor divino. Por isso parecem inicialmente animalescos. O Ouroboros os quer como animais ao seu dispor. Enquanto o Deus verdadeiro quer filhos livres, o Usurpador quer animais escravizados. E será como animais que eles reagirão inicialmente à aparição daquela jovem alemã no café. Mas então ela canta. E eles voltam aos poucos à inocência do seu paraíso perdido, ao seio materno de onde vieram antes de serem iniciados no Pacto Ouroboros e em toda malícia do mundo. Não eram animais. Só tinham se esquecido de que eram humanos.
§ 11. Convém-nos até reconsiderar esta última cena como a melhor de todas do filme, e certamente uma das mais belas de toda a história do cinema. E as repercussões espirituais dela são tremendas. A menina que canta é a mulher que pisa na cabeça da Serpente defendendo seus filhos. Por isso é tão relevante reconsiderar, urgentemente, o simbolismo do Puer Aeternus à luz da doutrina esotérica do Pecado Original. Ser humano diante de Deus é voltar à inocência que é incompatível com a pactuação da iniciação na malícia deste mundo decaído e amaldiçoado. Não surpreende que nem três décadas depois dessa exibição de bravura da parte dos franceses, eles decidissem desconfiar da inescrupulosidade de seus chefes militares e políticos, e oferecessem então pouca resistência ao ataque alemão na Segunda Guerra Mundial. E não surpreende também todo o pacifismo que permeará o Século XX, para não falar das liberações sociais, do reconhecimento dos direitos das minorias, etc. Tudo isso sai de um movimento em reação ao cúmulo das mentiras da Velha Ordem. Mas não quer dizer que o diabo não esteja produzindo já essa Nova Ordem que também lhe servirá no fim das contas. Não há salvação no belicismo ou no pacifismo. Só há Salvação verdadeira em Jesus Cristo e na renúncia individual a todo o mal, que é o sentido da Cruz para cada um de nós. Neste sentido o filme é positivo, não parece querer nos iludir, justamente por ser mais humanitário do que humanista.
Nota espiritual: 5,6 (Calaquendi)
| Humildade/Presunção | 5 |
| Presença/Idolatria | 5 |
| Louvor/Sedução-Pacto com a Morte | 5 |
| Paixão/Terror-Pacto com o Inferno | 6 |
| Soberania/Gnosticismo | 6 |
| Vigilância/Ingenuidade | 7 |
| Discernimento/Psiquismo | 5 |
| Nota final | 5,6 |