De vez em quando convém revisar e simplificar as nossas idéias filosóficas, se possível de modo sistemático, ou no mínimo programático.
Já estou trabalhando na Monadofilia faz três anos, desde 2022. De lá para cá publiquei artigos, livros e vídeos explicando minhas idéias, e inclusive já produzi várias sínteses com o intuito de ajudar as pessoas a se orientarem, na medida do possível. Mas agora quero reiterar uma visão geral bem ampla e simples, tratando a minha filosofia como um Programa de Educação.
Como devemos proceder?
Primeiro, separando os problemas da vida prática dos problemas da vida teórica, ou contemplativa.
Se a Filosofia Cristã, qualquer que seja ela, é um meio de devoção e de testemunho da Glória de Deus, ela deve ser boa de modo integral e orgânico, considerando o ser humano na sua unidade real. Isso quer dizer que a disciplina teórica, de estudo e reflexão, se baseia numa anterior disciplina prática que permita a mínima paz e contentamento necessários para a experiência intelectual. Não adianta nada pedir que o estudante produza os melhores frutos cognitivos se ele está o tempo todo perturbado, irritado ou atormentado por questões externas. Como até a Bíblia diz: “A sabedoria se adquire em horas de lazer, e quem está livre de afazeres se torna sábio. Como se tornará sábio o que maneja o arado, aquele cuja glória consiste em brandir o aguilhão, o que guia bois e o que não abandona o trabalho, e cuja conversa é só sobre gado?”, ou “Eu quisera que estivésseis isentos de preocupações. Digo-vos isto em vosso próprio interesse, não para vos armar cilada, mas para que façais o que é digno e possais permanecer junto ao Senhor sem distração.”, e ainda “Meditar a Sabedoria é a perfeição da Inteligência; quem vigia por ela logo se isenta de preocupações; ela mesma busca, em toda parte, os que a merecem; benigna, aborda-os pelos caminhos e a cada pensamento os precede”. Eu poderia dar muitos outros exemplos.
Então o nosso Programa, até considerando o estado decadente da educação em geral, tanto da parte das famílias quanto da parte das instituições, deve considerar uma certa instrução mínima a respeito da vida prática, para que pelo menos as pessoas interessadas possam vislumbrar os requisitos existenciais para a atividade intelectual mais produtiva.
A parte do Programa dedicada à Vida Prática deve incluir, em ordem de importância (do mais ao menos importante): o contato inicial e mínimo com a Revelação, rudimentos iniciais da Vigilância com algum espírito crítico, evitar votos voluntários até a maturidade (deveres de estado artificiais), moderação e contentamento com as ambições, e o zêlo de guarda equilibrada do próprio corpo e dos bens doados pela Graça. Já a parte do Programa dedicada à Vida Teórica segue o programa filosófico da própria Monadofilia, por ordem progressiva dos conhecimentos: Liberdades Iniciais, Mônada Básica e Avançada, Guerra Espiritual (Sete Dons), Evangelho vs. Religião, Cinco Conceitos Sinóticos, Consciência Profunda, Tesouro do Céu, e O Crisântemo (M0, M1 e M2).
Com sua costumeira homenagem filosófica ao dom da Presença, nosso autor dará seus melhores testemunhos a respeito da qualidade do ser divino e de suas obras, de modo quase sempre impecável.
Contra o voluntarismo, Leibniz afirma que Deus conhece o bem que então deseja, como se uma coisa fosse posterior a outra, o que não existe em Deus. Mas essa é uma posição comum e respeitável, já que entre o erro de uma arbitrariedade irracional e o de uma instância determinista sobre a agência da liberdade divina, parece que o primeiro erro é pior, porque destrói o conhecimento. Se o filósofo quisesse, ele poderia desenvolver essas minúcias a favor inclusive do seu argumento, mas não foi o caso. Em muitas passagens deste Discurso de Metafísica a brevidade não permite tais aprofundamentos. Aliás, em muitas obras de Leibniz ficamos com a impressão de que ele estava com alguma pressa.
No Capítulo VII encontramos duas teses importantes da metafísica leibniziana:
Quais são essas teses? São: (1) que o que entendemos como natural é um costume e não uma Lei imutável, pois a natureza se submete ao império de uma Lei superior, que é o ordenamento divino com vistas ao bem maior; e (2) que o que é um mal em essência pode ser bom em acidente, desde uma Harmonia Preestabelecida que provisiona todos os futuros contingentes na melhor combinatória possível gerada pelo Intelecto divino. Entenda-se bem que este segundo item não é uma legitimação da Mistura. É uma tolerância permissiva em face do melhor resultado já calculado pela cognição de Deus, ou seja, o mal é tolerado temporariamente de modo processual, com vistas a um fim, e nunca de modo definitivo.
No Capítulo VIII localizamos uma evidência de como a Monadologia leibniziana foi herdeira e continuadora da filosofia Escolástica:
O total pertencimento do predicado ao sujeito ganhava novos contornos com o Principium individuationis formal de Duns Scot, algo que Leibniz aprende e ao que dá continuidade. A matriz ancestral do futuro Idealismo Alemão estava então embrionariamente contida na filosofia franciscana do Medievo.
Os pentelhos e amantes de discórdia poderão afirmar que se a Haecceitas de Scot foi uma base da mônada de Leibniz, que então a filosofia tomista foi preterida pelo alemão. Mas esse tipo de polêmica não resiste ao universalismo desses grandes filósofos que estão sempre conversando entre si acima das disputas tolas entre seus supostos seguidores.
O Capítulo IX já o prova imediatamente:
Não só não é necessário negar o tomismo, como é possível extrair dele, por inspiração da tese a respeito da individualidade específica das substâncias separadas, um modelo para a singularidade de todas as substâncias simples.
Essa ideia é uma das mais geniais de Leibniz, e a meu ver é a única maneira de se resolver a questão da Relação Uno-Multiplo sem negar o nível de entidade adequado a cada parte. O filósofo chega mesmo a afirmar que a mônada criada é equivalente em potência à divina (“traz consigo o caráter”), diferindo apenas que o que na criatura é virtual ou dormente na maior parte, é totalmente atual em Deus como infinito em ato.
Leibniz faz o que Descartes não pôde ou não quis fazer: justiça aos Escolásticos e uma ponte viável entre os dois mundos, o antigo e o moderno. O Capítulo XI é dedicado a isto:
Observem então como é possível que a divulgação da obra de Leibniz tenha sido prejudicada por preconceitos muito mais profundos do que se poderia imaginar inicialmente. Seu trabalho desmontava a fantasia iluminista da ruptura entre a idade das luzes e das trevas. E, se tivesse mais sucesso e influência, sua obra poderia ter servido como prevenção contra várias guerras e revoluções europeias, para não falar de todas as consequências derivadas do mito da ruptura. A verdadeira obscuridade, quem diria, provinha dos iluministas, e foi daí que saiu tudo o que haveria de caótico no mundo moderno de uma ciência sem Deus e sem metafísica. Alguns culparão Kant, mas estou mais propenso a desconfiar de franceses e ingleses, que aliás foram os maiores adversários ideológicos da filosofia de Leibniz.
No Capítulo XIV temos a doutrina da qual sou tão devedor na minha filosofia, a respeito da ontologia e epistemologia das mônadas, para não falar da Mútua Representação:
A simplicidade desse pensamento mostra como o mecanicismo de Leibniz às vezes parece artificial, ou ao menos divorciado da sua metafísica mais profunda. Talvez o filósofo fosse mais sitiado culturalmente do que imaginamos, e só por isso não pudesse romper de modo completo e ostensivo com todo o materialismo e dualismo. Quando lemos esta parte de sua obra isto nos parece claro: que a composição dos complexos é desnecessária, bem como o ser das mônadas irracionais. Talvez ele tenha experimentado certas ideias a um tempo (como aqui, em 1686, aos 40 anos de idade) e só depois tenha voltado com maior empenho na consolidação dessas coisas, como na Monadologia de 1714, já aos 68 anos de idade, não muito antes de morrer (e aliás sem publicar, pois a primeira edição veio em 1720, quatro anos depois de seu falecimento).
Conforme o autor se aproxima do fim de seu Discurso de Metafísica, sua linguagem se aproxima mais da teológico-mística, mostrando novamente que uma boa ontologia filosófica entra em acordo com a linguagem das coisas espirituais, pois tudo que sobe converge. No Capítulo XXVIII localizamos testemunhos poderosos:
A cognição das criaturas imita o Ato Puro divino, pelo qual a Substância Simples, ou mônada, conhece a si mesma por reflexo, de modo que em nós o Uno experimenta a si mesmo intelectualmente através da Percepção do Múltiplo. É importante frisar, porém: o intelecto agente é localizado, ao contrário do citado erro dos averroístas, pois somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Em suma, Deus sempre teve a felicidade de conhecer plenamente a Si mesmo, e o que faz ao criar mônadas limitadas é compartilhar da sua Glória mediante o processo da Percepção delas que relaciona sua Unidade de ser com a Multiplicidade das formas.
O mais importante, no que Leibniz aponta, é tanto a realidade da exclusividade da experiência de Deus através das coisas, quanto a dependência da Graça divina para a realização desta experiência. Isto destrói totalmente a Idolatria, e é por isso que a Monadologia é a ontologia mais espiritualmente conveniente de todas.
Quando escrevi a introdução da minha Monadofilia publicada em 2022, posso ter causado estranhamento ao afirmar que João amava João na forma de Maria, mas isto ainda era menos exato do que afirmar que, na verdade, João ama Deus pelo amor de João na forma de Maria. A linguagem é meio burra, porque dialogicamente parece multiplicar seres que na realidade são mais simples, e é isto que Leibniz está ensinando: só existe a mônada criada e a Mônada divina, como uma Lua e um Sol. A complexidade que parece derivar da Multiplicidade é desfeita ao se considerar que ela é apenas um reflexo. Igualmente importante, entretanto, como disse, é considerar que a Percepção não existe para a mônada criada, senão pelo ato divino que ilumina o Intelecto da criatura e atualiza nela o ato cognitivio.
Em breve: tudo o que conhecemos sempre foi Deus e sempre será Deus, e apenas através de Deus.
Se isto parece reproduzir diretamente uma idéia da mística cristã, não é por acaso. No Capítulo XXXII, corajosamente, o autor não se intimida a citar, como filósofo moderno no meio de uma cultura iluminista que chamava a Idade Média de “trevas”, um testemunho espiritual:
A pessoa citada é Teresa D’Ávila, Doutora da Igreja Católica. Não importa endossar culturas ou instituições, o que importa é a verdade. O amante da verdade se aproveita de tudo o que a evidencia para si. E o que está em jogo aqui não é uma razão católica contra uma razão iluminista. O que importa é verificar a autonomia e a integridade da Substância Simples que só pode ser modificada por si mesma ou por Deus. Vejam como chega longe aquele princípio que descrevi da vida espiritual como pura vida interior, algo que poderia ser erroneamente julgado como um tipo de psicologismo. Ora, não existe dualidade de corpo e alma, só existe a Substância Simples, e ela só pode se relacionar consigo própria e com Deus, evidentemente. Até mesmo Descartes sabia disso, até o ponto da sua segunda meditação, enquanto partia da evidência do cogito para chegar no infinito em ato com Deus. Como sempre, o que estraga é a atribuição de substancialidade ao que está fora justamente dessas duas realidades metafísicas, a alma e Deus, ou ainda, a mônada criada e a Incriada. Leibniz, ainda que seja racionalista e mecanicista até certo ponto, alcança ápices metafísicos que já significam uma liberdade total com relação ao dualismo cartesiano, que é uma forma de Idolatria. Talvez o autor só não pôde assumir integralmente o que acreditava a esse respeito, para não perder o respeito e prestígio, ou por alguma fraqueza desse tipo. Isso só ressalva mais ainda, para nós, a importância da independência de pensamento que requer uma certa indiferença à posse dos meios materiais de subsistência e à reputação social.
No Capítulo XXXVII, o último da obra, o autor parece finalmente ceder de vez à linguagem das coisas espirituais para dar um testemunho mais completo do seu pensamento metafísico, o que é muito louvável numa pessoa como Leibniz, cercado de principados e potestades, porque mostra que esse convívio com o poder e o prestígio não corrompeu a sua capacidade de afirmar as maiores verdades, por mais que fossem inconvenientes:
Só causa estranheza que um filósofo cristão consciente da noção agostiniana da diferença entre Cidade de Deus e Cidade dos Homens tenha perdido tanto do seu tempo e dos seus dons com a segunda. Mas não deixou de ilustrar a virtude da primeira, o que já é grande coisa.
Esta obra, que é na verdade uma coleção de opúsculos (impressos, escritos breves), é uma realização de estudiosos brasileiros de Leibniz que nos beneficiam com a divulgação de um filósofo não muito querido pela indústria editorial nacional. Junto com textos inéditos do alemão, existem estudos feitos por uma série de autores, nacionais e estrangeiros, que contribuíram com reflexões sobre a obra leibniziana. Nosso intuito, porém, será apenas a avaliação dos textos do próprio filósofo.
No primeiro texto, “Acerca da liberdade isenta de necessidade ao escolher“, nosso autor defenderá tanto a integridade da liberdade humana quanto a imunidade divina pela decorrência dos erros das criaturas.
Em certa parte diz ele: “Deus não quer o pecado, isto é, quer impedi-lo, na medida em que o permita a harmonia das coisas. A harmonia das coisas é aquele abismo de Paulo (Rm 11:33), que excede a capacidade da mente humana, embora a nossa mente saiba que existe“. Esse tipo de filosofar me agrada, como não deve ser difícil imaginar. É um pensamento que não tem nenhuma reserva no seu desejo da compreensão de toda uma metafísica à luz direta do Evangelho. E já reconhecemos de imediato um tema caro para Leibniz, que é o da Harmonia. Esta é uma razão misteriosa cujo conteúdo nos escapa, mas não a sua consistência geral, caso contrário seria preciso assumir premissas contraditórias, como as do niilismo, da cacolatria, etc. Se há uma ordem subjacente, àquilo que nosso intelecto limitado não consegue obter apreensão suficiente é reservado o conceito do que é misterioso, mas não irracional. Em outro momento, ao estudarmos sua Teodiceia, veremos tudo isto com maior detalhe.
No trecho a seguir vemos como Leibniz é um continuador da discussão da Escolástica medieval, e como discerne bem o quanto é crucial a discussão filosófica do tema da liberdade:
Que Deus seja livre na sua escolha do maior bem possível, é uma direta referência ao voluntarismo scotista, essa contribuição da filosofia franciscana que é até hoje tão atacada pelo gnosticismo católico de alguns. Como posso afirmar que a negação da liberdade divina é um gnosticismo? Já falei disso antes, mas convém lembrar o sentido desse problema. Se Deus não pode não ser bom, isto equivale a dizer que Ele não pode ser bom no sentido do óbvio mérito de sua Santidade, porque haveria uma instância superior, algum misterioso Logos mais transcendente, que obrigaria esse “deus” a ser bom sem escapatória. Que Deus seja bom este é um mérito seu, porque nada o obriga a ser bom além de sua própria Vontade. Se o Intelecto divino possui a perfeição do conhecimento do Bem, isto é equivalente a dizer que em Deus a perfeição da Sua Vontade é totalmente translúcida. Há dois erros na concepção deste tema. Um erro afirma que o Bem é uma arbitrariedade divina, ou seja, que se Deus escolhesse diferente, outras coisas seriam boas, e não as que conhecemos como boas atualmente. Este seria, supostamente, o erro do voluntarismo. E um outro erro afirma que o Bem é uma necessidade para Deus, de tal modo que se Ele é Santo, isso não é tanto um mérito, porque é algo inescapável. O bom fiel sabe que tudo isso é problemático. Que há algo de falso nas duas idéias. Nem Deus é arbitrário na sua escolha do que é bom, e nem Ele deixa de ser livre para escolher o que é bom. Ocorre apenas que o que em nós é separado, em Deus é unificado. A essência divina é perfeita porque sua Vontade é boa, e seu Intelecto possui o total domínio daquilo que constitui o seu próprio Bem. Leibniz lembra da variedade de possibilidades para afirmar que Deus escolheu a melhor combinação, a mais harmônica, o que é um modo elegante e menos polêmico de defender o mérito da liberdade divina sem entrar na áspera discussão da disputa entre tomistas e scotistas. Mas de todo modo ele dá o testemunho de que Deus é bom porque quer, e não porque é obrigado a ser. E isto é importante porque, dos dois erros possíveis, o que os críticos do voluntarismo não percebem é que a sua tese tende a um gnosticismo com perigosas repercussões, porque de modo correspondente ao Mistério divino da escolha do Bem sem necessidade corresponde, mutatis mutandis, em analogia e por imagem e semelhança, a escolha das criaturas livres de confiar num Bem misterioso cujas razões escapam ao seu intelecto limitado. Isto é, quem propuser que Deus é bom por necessidade tenderá a substituir o Amor pela Lei, porque nós também não podemos crer num Bem indemonstrado, mas devemos obedecer a um código revelado. Em suma, a escolha franciscana é mais mística e menos religiosa, mais apta a reconhecer o terrível fenômeno da liberdade espiritual, enquanto a escolha tomista é mais legalista e gnóstica, em busca de um conhecimento acabado que elimine o fenômeno da liberdade, ou pelo menos o seu significado espiritual.
Quando nosso autor diz que “estas coisas não impedem a certeza“, esta sua observação tem como objetivo justamente desfazer qualquer mal entendido por uma interpretação equivocada do que seria o voluntarismo: existe uma verdade objetiva imutável sempre dominada pelo Intelecto divino, e eventualmente conhecida pelo intelecto humano. A defesa da liberdade não tem como objetivo a destruição do conhecimento, nem da integridade da verdade. Apenas o contrário não pode ocorrer, isto é, o soterramento da realidade da liberdade debaixo de um código acabado que leva ao erro do necessitarismo. Em todos os casos o problema é sempre o mesmo: se o Bem é obrigatório por força de necessidade, ele não pode ser acreditado livremente, e não existe agência moral verdadeira, nem mérito, nem santidade, etc. O Bem é obrigatório num outro sentido, isto é, de que ele é inegável na veracidade do seu próprio valor imutável. Quando o que é bom é escolhido, isto é um acerto do agente livre que assim dispôs, justamente porque poderia negar essa escolha. O que confunde os críticos do voluntarismo é que, por confiar que Deus jamais nega a escolha do Bem, eles julgam que isto não seja mérito da Santidade divina, mas um mero efeito inescapável da natureza das coisas. Mas Deus não conhece o Bem como algo externo a Si, como uma realidade à qual deva obedecer, pois o Bem é justamente a essência da sua Vontade. Em outros termos: nós não sabemos que a Vontade de Deus é perfeita, nós confiamos. Porque senão qualquer desobediência seria impossível, e não só a nossa, mas mais ainda dos anjos caídos que sempre estiveram mais próximos e que possuíram um conhecimento do divino mais perfeito que o nosso. A rebelião é irracional por ser inconveniente nas premissas e decadente nas consequências, mas não é puramente irracional, porque a bondade do Ser divino não pode ser dominada nem garantida por nenhuma criatura, e é isto o que a torna livre para escolher confiar ou não. É por poder fazer o que quiser e sempre fazer o melhor que Deus é plenamente Bom, e é porque poderia escolher de modo diverso que a malícia é viável no coração das criaturas que decidem desconfiar da bondade do Criador. Não existe instância garantidora capaz de constranger Deus a ser Bom, exceto a sua própria Santidade. Isto é afirmado com muita ênfase no primeiro dos livros de sabedoria da Bíblia, o Livro de Jó. Em minhas seleções, como por exemplo em Jesus Alegria dos Homens, selecionei alguns trechos que exibem essa realidade: “Recorrer à força? Ele é mais forte! Ao tribunal? Quem o citará? Mesmo que eu fosse justo, sua boca condenar-me-ia; se fosse íntegro, declarar-me-ia culpado. Sou íntegro? Eu não sei, rejeito minha vida! Por isso digo: é a mesma coisa! Ele extermina o íntegro e o ímpio!“, e “Ele decide, quem poderá dissuadi-lo? Tudo o que Ele quer, Ele o faz. Executará a sentença a meu respeito, como tantos outros dos seus decretos“. Ora, o que desesperava os amigos de Jó era que eles ainda usavam essa lógica gnóstica de tentar racionalizar o que é divino, como se existissem razões suficientes para isso. Mas a Sabedoria de Jó é esta: Deus deve ser confiado porque nós queremos fazer isso, e não porque somos obrigados, como que por necessidade. É um mérito de Deus ser Bom, e é um mérito nosso confiar Nele sem garantias. A defesa de Leibniz à liberdade tem como pano de fundo essa realidade espiritual.
De todos os perigos relativos à negação da liberdade, os maiores são os que conduzem às duas espécies de gnosticismo que já estudamos amplamente antes: por um lado, o da Gnose da Legitimação da Mistura, se Deus não é livre para escolher o Bem, nós também não podemos ser, e tudo o que decorre da criação divina é necessário e bom até as últimas consequências, inclusive nos efeitos da agência moral das criaturas livres, de modo que todos os sofrimentos e todas as maldades que são experimentadas fazem parte de algum modo da bondade de Deus; por outro lado, o da Gnose da Rejeição do Limite, se Deus não é livre para escolher o Bem, nós também não podemos ser, e o que resta é o conhecimento da Verdade suprema que determina Deus de tal modo que só nos resta a contemplação perene dessa Verdade num modo que transcenda a condição humana carnal, etc. Em suma, a liberdade é insuportável para os gnósticos, porque o Bem como opcional nega a Mistura e aceita o Limite.
Com muitíssima razão o nosso autor recorda que o ato criativo divino deve conter esse sinal da liberdade divina do modo mais eminente:
Nenhuma realidade exibe com maior evidência a liberdade divina de agir de acordo com uma Vontade pura do que a criação de todas as coisas. Este ato criativo jamais foi necessário, caso contrário a natureza divina é que seria contraditória, por não ser suficiente. Aliás, não é esse o “deus” dos gnósticos? Um “deus” que precisa criar algo para conhecer e ser conhecido, para amar e ser amado? Se Deus só agisse por necessidade da sua bondade, ou não poderia criar nada porque isto seria arbitrário e externo ao necessário, ou não seria o Deus verdadeiro, mas algo como um Demiurgo, porque necessitaria de uma criação para ser uma divindade, etc. A gratuidade da Criação exibe a bondade da Vontade divina, totalmente livre de qualquer necessidade, agente apenas por um ato amoroso puro e perfeito.
Que o Criador deva ser o termo primeiro de qualquer série causal, infinito em ato, sem antecedente e portanto capaz de uma vontade perfeita, é uma evidência inescapável, como diz o nosso filósofo nesta brilhante passagem:
O que eu posso querer acrescentar a isto? Leibniz produziu uma filosofia que glorifica a Deus num tal nível que em muitas passagens suas a qualidade é irretocável como a de um salmo de Davi. Resta-nos citar e admirar, etc. Que a filosofia dele seja tão desconhecida só prova como a história da humanidade é desgraçada, e como o mundo é governado pelo diabo, como já sabemos, mas não custa lembrar.
O segundo documento, “Carta de Leibniz à Princesa Sofia“, trata de comentários do autor a respeito de sua Monadologia. O filósofo reitera a necessidade das substâncias simples e mostra as aporias das tentativas de atribuição de extensão material a elas, como na teoria dos átomos, assim como desfaz novamente as falsas impressões sobre a suposta objetividade de dimensões como Espaço e Tempo. Não encontrei argumentos originais ou interessantes o suficiente para fazer alguma menção. É sempre frutuoso lembrar, porém, da semelhança em idealidade que há entre a substância simples para tudo o que é extenso, com aquilo que é o ponto para o Espaço, ou o momento para o Tempo. A elegância, sutileza e simplicidade do idealismo de Leibniz parece não ter igual no contexto do seu tempo. Precisamos viajar alguns séculos e encontrar um Duns Scot, ou um Plotino, para alcançar algo semelhante. E depois de Leibniz? Veremos idéias promissoras com herdeiros do Idealismo Alemão, como os fenomenologistas, mas isto ainda precisa ser verificado com mais calma e detalhe em outro momento.
No terceiro documento, “Deliberação sobre o conhecimento da natureza“, nosso autor exibirá o seu otimismo em toda exuberância e, por isso mesmo, os traços inegáveis de Ingenuidade e de Psiquismo que envolvem este empreendimento particular, qual seja, o de refundar a ciência da Física com o objetivo do maior benefício possível a toda a sociedade humana. São quatro esboços diferentes produzidos com esse intuito, cada qual com sua própria característica. Leibniz definitivamente era um homem de ação, o que até explica porque a sua filosofia não tem uma forma sistemática que seria mais robusta no sentido da transmissibilidade. Ele estava preocupado com tudo o que envolvesse o bem-estar da sociedade humana, então nos espanta, como já observamos, que quase que casualmente fosse capaz, por exemplo, de produzir uma metafísica tão pujante, etc. Aqui ele vai sugerir a fundação de uma sociedade de homens ilustrados, o que será levado em conta na justificativa futura da criação de sociedades secretas, como a dos Perfectibilis (os futuros Illuminati) de Weishaupt na Baviera. A conexão é inescapável, porque essa era a época do triunfo do Iliminismo, e podemos mesmo conectar personagens no mínimo por inspiração, como Leibniz a Christian Wolff, e este como influente sobre Weishaupt, etc. O que importa é notar que de Leibniz ser um ingênuo a ser um dos fundadores da idéia maçônica, é um grande salto. Seu entusiasmo é grande e poderia ser ingênuo até demais, mas ele põe limites claros a esse movimento.
Primeiro, afirma que a prioridade absoluta é dos bens da alma, no que reconhece a prioridade da Teologia sobre a Filosofia, e mais ainda sobre a Física (e também a Medicina). Nisto está em linha ainda com aquele princípio da Escolástica medieval, da philosophia ancilla theologiae, o que certamente vai contra o intuito iluminista. O Auflklärung leibniniziano é possivelmente mais próximo ao de Kant do que ao de Wolff.
Segundo, ele afirma que a Caridade e a Justiça devem imperar como ideais e princípios supremos nesta sociedade de ilustrados, e determina isso de forma objetiva, clara e direta: todas as investigações e descobertas devem ser compartilhadas e publicadas, não só internamente, mas urbi et orbi. Se isto é mais do que ingenuidade como, por exemplo, um disfarce, cabe a cada um julgar como achar melhor fazer, que de minha parte prefiro ser generoso enquanto puder, e perdoar quando não puder mais, de modo que não faz tanta diferença assim que haja ou não uma conspiração. Afinal, quem escapa da ruína, senão pela Misericórdia?
No quarto documento, “Sistema novo para explicar a natureza das substâncias e a comunicação entre elas, bem como a união da alma com o corpo“, o autor mostra seu esforço em coerir toda a filosofia clássica e escolástica com a modernidade pós-cartesiana, exibindo assim a universalidade do seu espírito, e ao mesmo tempo a limitação da sua escolha por um mecanicismo racionalista. Vejamos:
Leibniz está obviamente querendo lidar com a realidade da filosofia iluminista da sua época, mas sem perder o fio da meada da metafísica precedente, especialmente na consideração da necessidade da Substância Simples (a Mônada). Sua solução física é o apelo a uma Dinâmica, uma Ciência das Forças, que explique a infraestrutura metafísica da realidade material por identificar o ato de uma substância imaterial como causa eficiente todas as coisas extensas. Não é preciso ir muito longe para compreender como isto antecipa de vários séculos a hipótese da física subatômica e a mecânica quântica. Esse é o gênio de Leibniz. Seu problema, porém, é ficar agarrado na necessidade da comunicação entre o imaterial e o material, ao invés de aceitar a representação, a reflexividade e a analogia. Ele faz isso enquanto ainda fiel a Descartes e a um certo mecanicismo racionalista, como já vimos. Não fosse isso, poderia estar alinhado com as futuras investigações de Kant e do Idealismo Alemão mais promissor, que culminaria na Fenomenologia. Vejam que a questão com os grandes filósofos é sempre a da sua escolha, e não da sua capacidade ou do nível de seu conhecimento.
Mais adiante vemos como ele próprio acaba confessando que seu problema seria a irrealidade de fenômenos materiais desprovidos de substancialidade, caso sejam uma mera representação para o Intelecto. Neste sentido Leibniz lembra muito a escolha de Aristóteles, outro monstro da História da Filosofia que só limitou o escopo do Idealismo precedente (o platônico) porque de algum modo se viu na obrigação de defender a realidade do Múltiplo atribuindo-lhe alguma ousia:
Leibniz sabe que só a Mônada, ou Substância Simples, pode ser real no sentido pleno da palavra. Se os corpos e tudo mais que seja material possuem alguma realidade, é necessário que de alguma maneira eles sejam feitos de mônadas. Sua escolha, porém, é a de que essa causalidade seja mecânica. O melhor Idealismo, não só desde Platão, mas também desde Plotino, requereria que a realidade do Múltiplo seja análoga à do Uno, e teria de haver uma pureza total, como num reflexo ou uma imagem, mas Leibniz não aceita isso, porque quer ser mecanicista ao seu modo, com o dualismo cartesiano. Sua solução, que não deixa de ser genial, é a atribuição de uma certa mutualidade entre as mônadas sem janelas, que as permitam se comunicar de algum modo por algum sistema analógico que produza a realidade dos compostos como realidades internas, especialmente nas mônadas providas de razão. Isto é quase perfeito, porque já exibe uma mecânica refletora, mas gera uma multiplicação que viola o princípio econômico de Ockham, e mais algumas dificuldades desnecessárias. O que faltava ao modelo de Leibniz era uma simplicidade maior que alcançasse o Idealismo Transcendental, que seria o sistema kantiano. E neste sentido não é preciso dizer que não existe substância corpórea, basta afirmar que isso é literalmente indiferente, porque de qualquer modo o Intelecto só conhece a representação dos seres, nunca a coisa-em-si. E não haveria nenhum absurdo nisso. Como poderia ser de outro modo? A matéria-prima simpliciter é tão incognoscível quanto o próprio Uno.
Leibniz sabia de tudo isso melhor do que qualquer um de nós poderia saber. Novamente, o que se impõe acima de tudo é a escolha do filósofo. Mas ele possui todos os elementos necessários, e talvez, se apenas quisesse se dedicar a metafísica, e se abrisse definitivamente mão de ser compreendido pela sua época (o que aliás ele nunca conseguiu realizar muito bem, por sinal), pudesse ter ligado os pontos e desenvolvido uma filosofia mais perfeita ainda do que produziu. Ele referencia a Relação entre Uno e Múltiplo ao reconhecer a infinitude em potência da unidade monádica, e também antecipa a Mútua Representação no seu sistema de “correspondências”, de modo que a comunicação entre as suas substâncias já é idealista e puramente intelectual. Vejamos:
Se pensarmos bem, essa materialidade já não tem nenhuma substância fora da representação fenomênica. Minha opinião é que Leibniz já sabia muito mais do que podia dizer, pois ele era um diplomata por temperamento, e não queria ferir suscetibilidades. Existencialmente, aliás, ele dependia de ser bem recebido entre pessoas ilustres e poderosas, etc., e isso sempre tem o seu custo. Se pudesse ser mais sincero, talvez o filósofo diria, como Jesus: tenho muito mais a vos dizer, mas agora não podeis suportar…
De todo modo um grande mérito da filosofia leibniziana é a preservação dessa noção teológica da Harmonia Preestabelecida que organiza todas as criaturas em vistas ao máximo bem possível já dadas todas as suas imperfeições eternamente antevistas pelo conhecimento dos futuros contingentes do Intelecto divino. Podemos afirmar que a profundidade da ação da Providência divina nunca foi tão bem defendida por uma filosofia moderna como foi na de Leibniz. E não foi por acaso que ele era reconhecido como um otimista ingênuo pela elite ilustrada da época, fosse em Paris ou em Londres, entusiasmada com a ideologia iluminista. A vingança viria com a surra que o Idealismo Alemão daria em todo mundo, com Kant e Hegel, e depois novamente na Fenomenologia, com Husserl e Heidegger. Sabem como é, quem ri por último ri melhor, e essas coisas acabam virando piada, como aquele negócio do Nietzsche dizendo que “Deus está morto”, e no fim das contas quem morreu foi ele mesmo, o idiota.
No quinto documento, “Sobre a natureza da verdade, da contingência e da indiferença, assim como sobre a liberdade e a predeterminação“, o autor analisará a lógica das proposições. A premissa é a de que a verdade de uma afirmação depende de que o predicado esteja sempre contido no sujeito, embora a demonstração só seja possível nos casos em que a análise não abarque o infinito, razão pela qual o intelecto criado só possui o poder de postular proposições demonstradas sobre poucas coisas, o que chamaríamos entes de razão, ou a produção de juízos analíticos, quando o oposto implica contradição. O que é contingente, porém, por mais que possa ser afirmado numa proposição, não poderia ser demonstrado senão por um intelecto divino que dominasse a intuição de todos os termos ao infinito. Os juízos sintéticos, ou de fato, são portanto probabilísticos e se referem a uma representação das existências conforme as suas essências, mas nunca podem atingir a intuição pura que só um intelecto divino poderia alcançar. Leibniz antecipa algo da crítica kantiana, e dá um testemunho da Humildade.
O objetivo desta investigação é o de postular a agência das criaturas livres apesar da eterna predeterminação divina na composição da melhor série causal possível. Isto decorre de que a análise combinatória do Intelecto divino consegue antever todas as possibilidades e os correspondentes decretos seus aplicáveis a cada caso, e então quando determinada série se concretiza há a atualização daqueles decretos que correspondem a essas possibilidades na série temporal real. Na Bíblia se diz que Deus sempre conheceu todas as coisas antes de as criar, e que depois de as criar as conhece novamente, significando essa dupla agência da liberdade divina, no âmbito das possibilidades prevendo as melhores determinações, e no âmbito das atualidades as realizando.
É louvável o esforço do tradutor e comentador, Raphael Zdebsky, para tornar mais claras as noções deste opúsculo, fazendo as intervenções necessárias para manter a inteligibilidade do documento como um todo.
Da parte do autor, vale a pena citar a sua afirmação de que a chamada Lei Natural é subalterna e dependente de determinações de tipo superior. Por indução afirmamos algo banal, como é mencionado no texto, que uma pedra arremessada tende a cair como ocorreu todas as vezes em que se observou tal efeito dada essa determinada causa. Mas isto é indutivo e incerto, porque o que sustenta a reiteração do ordenamento da natureza é uma vontade divina que pode a qualquer momento decidir diferente quando isto convier a uma ordem de razões superiores, como por exemplo ocorre no que chamamos de “milagre”, de tal maneira que todas as pedras tendem a cair, mas isto não implica uma necessidade. Leibniz, neste sentido, é um cientista livre do fetichismo naturalista, e nos ensina essa liberdade que é relacionada à consideração do império da vontade divina que instituiu as leis naturais em primeiro lugar, não porque estas fossem obrigatórias, mas meramente por terem sido convenientes dada uma certa sequência de fatos.
Mas mais importante ainda, como dizíamos, é a defesa da liberdade da criatura com agência moral, no que vale a pena citar o que o autor diz ao final deste documento:
É conveniente que Leibniz tenha escolhido o caso de Judas para ilustrar seu pensamento sobre a liberdade das criaturas em face da predeterminação divina, já que esta liberdade em particular é condição para que se compreenda outra tese importante, de natureza teológica, que é a de que Jesus não tinha que morrer (problema no qual já trabalhei e que expliquei antes).
Voltando, porém, à sua filosofia, isto convém à sustentação da sua Teodiceia, onde todos os erros, pecados, privações e imperfeições das criaturas estão contidos dentro de um cálculo combinatório perfeito da parte do Intelecto divino. Não existe compensação posterior, nem quid pro quo na tempestividade de uma série causal particular, mas Harmonia Preestabelecida. Daí que uma Fé firme, ou esclarecida, não se angustia na esperança de um bem incerto, mas conta com o que já foi determinado desde a Eternidade. Por isso Jesus ensina a orar dizendo “seja feita a Tua vontade”, de tal modo que é absurdo presumir que a oração da criatura seria capaz de alterar a vontade divina (um dos erros mais espetaculares e danosos da psicologia religiosa), servindo apenas para adequar a vontade e o intelecto da criatura ao governo da divina Providência, ou seja, para reforçar a Fé e a vida na Presença.
No sexto e último documento, “Sobre o órganon, ou grande arte de pensar“, encontramos um breve exemplo do tipo de reflexão que animava tanto o empenho de Leibniz, que era de encontrar o simples por trás do complexo, refazendo aquele antigo percurso das melhores filosofias precedentes, que é o encontro do Uno no Múltiplo. No decorrer de suas considerações, casualmente o autor inventa a linguagem binária a partir da intuição de que tudo pode ser reduzido a uma relação entre o Ser e o Nada, ou entre o Um e o Zero. Já falamos da grande fertilidade desse pensamento com mais cuidado no comentário àquela biografia do filósofo.
Mas vale a pena citar, até por sua brevidade, este sexto e último documento por inteiro:
A redução de todos os complexos ao que é mais simples, que é a Relação Uno-Múltiplo, mantém-se fiel às melhores filosofias de todos os tempos, desde Pitágoras até Ockham. E Leibniz é esse filósofo que conversa com todo mundo procurando o que há de melhor. Digo por mim mesmo, com a exceção de Aristóteles e Plotino, nenhum outro filósofo teve o poder de me incentivar a buscar a verdade no simples como Leibniz. É uma alma amiga da verdade.
No prefácio à epístola enviada aos doutores de Teologia da Faculdade de Paris, a Sorbonne, Descartes pede o aval destes às suas teses a respeito de Deus e da alma. Este será o objeto de suas Meditações metafísicas. O autor escreve depois da publicação de seu Discurso do Método, e no mesmo contexto de precaução. Diz que quer defender a evidência de Deus e da continuidade da alma após a morte do corpo, com demonstrações que façam justiça tanto à Escritura (da qual faz três citações) quanto ao Concílio de Latrão. Ora, estando nessa tão católica França de seu tempo, como poderia ser de outro modo? Nossa esperança de ver a filosofia livre do jugo teocrático da religião está na capacidade que o filósofo pode ter de desenvolver suas ideias apesar de suas limitações, principalmente sendo criativo com a linguagem. Logo neste prefácio aos doutores da Sorbonne ele diz, por exemplo, que é preciso reconhecer que a alma difere do corpo, ou que é distinta dele. Isso resolve o materialismo tosco de heresias do tipo ateístas, e preserva a possibilidade de dizer algo distinto da pura imortalidade. Em outros termos: assim é possível dizer que a alma não morre com o corpo por diferir dele, e só nesse sentido qualificar a sua “imortalidade”, com uma condição bem localizada.
O problema de Descartes aqui, como já vimos na obra anteriormente analisada, é sua excessiva crença no Racionalismo. Ele se propõe afirmar que essas matérias são demonstráveis com o recurso apenas da Razão Natural, tanto a de Deus quanto da alma, embora isso contrarie a noção de que as verdades sagradas são reveladas através do dom sobrenatural da Fé. Duas coisas lhe faltam: primeiro, a noção que a própria Razão Natural é iluminada pela Graça divina e, portanto, disponível apenas com a permissão de Deus; segundo, que as glosas bíblicas que ele menciona a respeito dos estudiosos da natureza que ignoraram o Criador não se referem a uma filosofia deficiente, mas justamente à falta de Fé, uma decisão exclusivamente moral com repercussões espirituais. Sua proposta, portanto, de estabelecer de uma vez por todas essas demonstrações para toda futura filosofia ou ciência, é na melhor das hipóteses um testemunho de Ingenuidade, e na pior uma pura dissimulação.
Não só por generosidade, mas com alguma base em evidências, é preferível optar pela hipótese da ingenuidade. No Prefácio aos leitores encontramos uma indicação disso na sua lógica:
Ora, se os ateus continuam livres para negar o que não poderiam se a Razão Natural produzisse verdades apodícticas, é óbvio que não é possível superar esse nível da agência moral humana com discursos filosóficos. Se os ateus querem tornar Deus explicável, ou a mente humana divina, essa escolha vem antes do assentimento a qualquer filosofia. Por outro lado, se ele sabe que se dirige a poucos, porque se preocuparia com os outros muitos, e porque se proporia a criar proposições incontestáveis que só vão ser aceitas por quem não tem o desejo de contestá-las? Esse tipo de confusão dá uma ideia de como a alta cultura fora das instituições medievais se torna rapidamente caótica. Um escolástico medieval jamais experimentaria esse nível de desordem, porque tinha um papel social muito bem desenhado dentro de uma estrutura poderosa, de modo que lhe restasse apenas se concentrar nas suas tarefas e disputar questões apenas com seus pares especializados.
Na confirmação de que a linguagem cartesiana é precisa, e que é o principal meio de que o autor dispõe para avançar sua investigação sem fazer polêmica, encontramos numa nota de rodapé uma menção a um questionamento sobre o postulado da imortalidade da alma:
Descartes está certíssimo, e bem subsidiado escrituralmente inclusive. A vida e todos os seus bens pertencem à Deus. Uma imortalidade predicada à criatura é uma noção contraditória diante do império divino: o que significa ser imortal diante de Deus? Que Ele não pode extinguir a vida de uma criatura? Se sim, o resultado é absurdo (e ainda assim, serve de desculpa para a justificativa da doutrina do Inferno), e se não, então a predicação é tão relativa que perde o sentido.
Nesta obra o autor desenvolverá com maior cuidado as mesmas teses do seu Discurso do Método, com a intenção de conseguir o aval, ou no mínimo a consideração, da elite ilustrada de sua época.
São seis meditações, a primeira sobre o método da Dúvida Total. Para além da desconfiança dos sentidos e da vida de vigília, Descartes traz a hipótese de um novo grau de desconfiança que lhe permite negar a integridade até de entes puros de razão:
A concepção da hipótese do gênio mau é necessária considerando-se a liberdade que tanto Lúcifer quanto Adão tiveram. Que ela seja incompatível com a essência divina, isso o próprio Descartes mencionará logo em seguida, mas a razão da confiança em Deus não é mandatária para a vontade de fazer o oposto, caso contrário a rebelião seria impossível, ou ao menos inimputável. O que o autor busca, entretanto, não é resolver isto de imediato, mas antes alcançar aquele nível de certeza que nem essa hipótese pudesse negar.
É claro que essa novidade no método cartesiano sugere no mínimo que Descartes tenha sido de fato oprimido por fantasias do tipo gnóstico. Não direi que sua filosofia é gnóstica, mas convém considerar que ele tivesse sofrido alguma influência de cogitações desta espécie. Olavo foi alguém que tomou os sonhos cartesianos, que sugeriram a hipótese do gênio mau ao filósofo francês, como sinais sombrios de uma personalidade perturbada, mas isso me parece inconcluso.
Na segunda meditação o autor retomará a investigação a partir do método da Dúvida Total e alcançará a evidência da res cogitans:
O filósofo toma o cuidado de se afastar da ideia de alma e emprega noções mais adequadas ao incorpóreo, como mente, espírito, ou intelecto. Isto é adequado e excelente. Alma denota o movimento autônomo de um corpo, uma instância capaz de causar isto, como primeiramente observamos nos animais. Não se implica então nada, neste sentido, que denote o que é característico do humano enquanto tal. Na definição aristotélica de “animal racional”, que aliás Descartes menciona, já existe a necessidade de uma composição que justifique a espécie dentro do gênero. Mas e se o ser humano possuir um outro gênero, ligado ao Intelecto? E se o movimento de seu corpo for análogo ao animal, mas não semelhante como explicado desde o mesmo gênero? Todas estas questões são viáveis, e a filosofia cartesiana ajuda a fazer essas perguntas.
Nosso filósofo afirma finalmente que nenhum conhecimento particular pode ser atestado sem a prévia necessidade do Eu que propõe qualquer determinado conhecimento. A substância pensante tem prioridade ontológica total sobre qualquer conhecimento possível, porque é o sujeito permanente da experiência de qualquer conhecer. Quando na Física, por exemplo, se reconhece os diferentes estados da matéria conforme ela é ou não conhecida por um observador, isto parece estranho desde uma concepção materialista isolada do fenômeno inescapável do conhecimento, mas este isolamento nunca acontece senão em abstrato, justamente como produto da mente humana. Já observamos isto desde a análise da Metafísica de Aristóteles: é sempre problemático atribuir substancialidade à matéria, porque ela nunca pode ser identificada senão como componente da experiência de um sujeito intelectual. Quando o ser humano quer sair da sua experiência psíquica, ele finge que faz isso, mas nunca o poderia fazer, e todas as atribuições de realidade fora da alma são sempre abstraídas por ela mesma. Kant dará as indicações definitivas a respeito disso, continuando Descartes, mas tudo isto é derivado da antiga questão da relação entre o Uno e o Múltiplo, entre o Ser e o Devir, etc. A unidade do Ser e do Intelecto desafia a visão de uma realidade heterogênea e submetida a processos de vir-a-ser. O grande tema da Filosofia universal sempre foi e sempre será este.
Na terceira meditação encontramos um salto importante da evidência da substância pensante para a dos seus objetos interiores de conhecimento e vontade:
Isto quer dizer que só pode haver erro dentro da alma quando ela deseja atribuir ser ao que lhe é externo, conforme suas atividades interiores: seja a realidade do que idealiza, ou a bondade do que deseja. O autor reconhece que todo erro que pode se instalar na alma, sugerido por uma ação maligna qualquer, ou pelo mero engano por fraqueza ou incapacidade, depende de que a alma se pretenda sábia ou boa o suficiente. Indiretamente, este é um tremendo testemunho da Humildade, e mesmo da Presença, pois não por um acaso essa terceira meditação servirá para reconhecer o ser divino como garantidor da veracidade dos seres, caso contrário só nos restaria a Presunção e a Idolatria, atribuindo-nos sabedoria sobre o ser e a sua realidade fora de nós.
Na sua argumentação sobre a evidência de Deus o autor não consegue terminar sua descoberta com a mesma simplicidade com que realizou a evidência da alma. Ele precisa adotar muitas noções aprendidas da filosofia precedente, o que é uma prova fácil de como não existiu ruptura entre o tempo das “trevas” e o das “luzes”, apenas o espírito humano pôde se ver livre de tributar ao dogmatismo, como Kant avaliou. Vejamos um segmento relevante:
Se Descartes fosse mais profundo ele poderia estranhar a intuição da ideia do Bem, que é a mais primária de todas e que subsidia a noção da perfeição. De todo modo ele não escapa das categorias clássicas a respeito da necessidade do ente divino, a necessidade do infinito em ato como termo inicial da série causal sendo a principal de todas, que remonta às formalizações das metafísicas platônica e aristotélica. Descartes vai bem, apesar das suas limitações. Que isso sirva de lição: bons filósofos nunca mudam muito de assunto, e estão sempre evocando os grandes acertos dos precedentes de algum modo, por mais que queiram praticar uma tabula rasa.
Logo adiante Descartes sumariza sua descoberta nos seguintes termos:
Existem raciocínios mais simples e diretos que este, mas entendemos que o autor precisou conectar, como que numa demonstração em imitação ao método geométrico –algo que ele mesmo enfatiza bastante–, a nova evidência sobre Deus àquela sua primeira evidência sobre a alma. Então, porque a alma, ou a substância pensante que é inegável, concebe o que lhe transcende, isto só pode ter como origem uma outra substância infinita que possua em sua essência essa qualidade transmitida, porque o menor não causa o maior, nem o menos ordenado o mais ordenado, etc. Isto está bem assim, mas o que Descartes não esclarece é que essas categorias lógicas das necessidades metafísicas são intuitivamente autoevidentes, mas não são demonstradas. Como podemos ter esses conhecimentos, como o de que o menor não produz o maior, etc.? Esse se tornará o tema principal de Kant em sua Crítica da Razão Pura, isto é, a questão de como são possíveis os juízos analíticos a priori. De certo modo Descartes precisaria de um Kant mais cedo ou mais tarde, como Platão precisava de um Aristóteles, digamos assim.
Na finalização da sua quarta meditação, onde o autor concluirá que a ideia de Deus é incompatível com a de um gênio mau, encontramos os maiores exageros da argumentação, com a melhor das intenções mas o afrouxamento do próprio método:
Não criticarei como um ateu talvez o faria, contra o espírito do testemunho, mas contra o modus operandi. Para mim fica evidente dois defeitos no procedimento cartesiano aqui citado: (1) a menção a evidências trazidas das luzes naturais como se essa categoria fosse compatível com a do cogito que o próprio autor quis usar como método. Isto não só estraga a intenção do autor, como faz descaso com a dispensa da Graça divina que é a única capaz de sustentar o que o autor dá por evidente pela razão natural. Pode-se dizer que a racionalidade humana não faz oposição lógica por não encontrar contradição interna nas ideias intuídas, mas jamais se pode afirmar que estas ideias sejam inatas à inteligência humana senão por um recurso divino; (2) ele cria a contradição entre o que são as ideias atuais que temos do divino com um conhecimento de tipo espiritualista (e gnóstico) do tipo religioso, na experiência do que ele chama de Majestade divina. Isto é compatível com o seu dualismo, e tem o traço característico do gnosticismo que empesteia toda a história da filosofia.
Na quarta meditação o filósofo investigará a origem do erro e a encontrará no descompasso entre o nosso ser e o nosso bem, aquilo que podemos apreender e aquilo que desejamos:
Há rudimentos de Humildade nisto, mas não há clareza suficiente. Nossa Apetição envolve alvos para além da nossa capacidade. Buscamos ainda assim nos salvar ou nos realizar, aceitamos o espírito de Presunção e optamos por desmedidas na Arbitragem do Excesso de Mistura. Isto é arbitrário e imputável, porque Deus sempre poderia ser confiado como o provedor de todos os bens que nos aparecem pela Eternidade. A coerência de Descartes está na beira de alcançar tudo isso, mas por ora alcança somente o descompasso entre o bem realizável e o possível.
Nosso filósofo termina sua explicação sobre a origem do erro nos seguintes termos:
Esse testemunho é denso e complexo, e de valor espiritual ambíguo. Por um lado é um testemunho de Humildade, de Presença, mas por outro lado atesta um tanto de Gnosticismo e de Ingenuidade. Descartes acerta ao identificar o erro no abuso da Presunção humana e no reconhecimento não só da nossa limitação, mas na bondade dessa condição. Deus não criou nada defeituoso, nós é que passamos da medida correta na operação da nossa arbitragem. Por outro lado, ele tem uma confiança racionalista indevida na nossa capacidade de sempre operar na medida do conhecimento, como se não fosse necessário crer e estimar para além do conhecido. Talvez a condição do seu isolamento no momento de seu exercício meditativo, para não falar do seu estilo de vida nessa ocasião, tenha permitido conceber um tipo de vida prática que é inviável. Para a maioria dos seres humanos a necessidade de arbitrar sem conhecimento é continuamente enorme. Seu racionalismo, neste sentido, é inviável. O que se pode sempre afirmar é que os juízos podem ser separados entre os condicionados e parciais dos absolutos, e os desde uma posição de poder por dever de estado dos derivados de cumprimentos de votos, etc., ou seja, é possível uma prática sempre ajustada ao conhecimento, além da imunidade da ignorância invencível, e do cuidado com a AEM. Na melhor das hipóteses o que o autor afirma é um tanto ingênuo, sem todas essas distinções, ou talvez a brevidade do trabalho não lhe tenha permitido separar as coisas, então deixemos estar assim por enquanto. Por outro lado é bom que ele reconheça que a privação constitui o erro só da parte da criatura, mas que isto não é defeito criativo da parte de Deus, faltando apenas a explicação do mais importante: por quê isto é assim? Descartes não diz. Nós temos a Eleuteriodiceia, etc.
Na quinta meditação Descartes diz que vai buscar alguma certeza a respeito da realidade das coisas materiais, mas tudo o que ele faz é revisitar a ideia da evidência do ser divino por um novo ângulo. Sua nova abordagem não é tão original assim. É apenas o empréstimo da credibilidade dos entes puros de razão, apriorísticos, para a noção do ser divino. Nosso filósofo diz que se qualquer raciocínio do tipo matemático ou geométrico é evidente, mais evidente ainda é a ideia da essência divina que contém a perfeição da existência, como já foi dito.
Um problema que já vimos antes se repete novamente, isto é, que novos tipos de evidência são constatados sem o mesmo tipo de validação do método originário da primeira meditação. Ademais, alguém poderia dizer que já fazia então alguns séculos que essas ideias circulavam na filosofia escolástica, seja pelo Proslogion de Anselmo da Cantuária, ou pelo O Ente e a Essência de Tomás de Aquino, etc., e que não seria necessário uma nova reformulação das mesmas ideias sem grandes novidades metodológicas (visto o defeito posto).
O autor se vê obrigado a voltar para a questão de Deus porque precisa de um garantidor para a validade das experiências materiais. Isto pode ser psicologicamente aceitável, mas não filosoficamente. Ele mesmo insiste que por si não pode afirmar que nada exista fora de sua alma. Por que então seria necessário, por Deus, que as coisas tivessem substância em si, especialmente como coisas materiais? Parece que o gênio mau, esse Demiurgo, assustou muito nosso filósofo. Mas se isto foi um problema tão grande, a solução não seria uma Fé mais robusta e assumida, no lugar de uma filosofia racionalista?
Partindo para a sexta e última meditação, encontraremos o nosso filósofo justificando a composição de corpo e alma com uma lógica parecida com a da meditação anterior. Vejamos a sua argumentação:
Que o atributo mais direto do que chamamos de “realidade” seja aquilo que resista ao nosso desejo, isto é sabido faz muito tempo e não traz nenhuma novidade. Mas o autor fala de não poder sentir um objeto “se ele não se achasse presente ao órgão de um de meus sentidos“, e que “não estava de modo algum em meu poder não o sentir, quando estava presente a ele“. Essas expressões são problemáticas. Novamente, não há desvio no curso psicológico, porque entendemos imediatamente que ele está descrevendo a experiência comum que todos temos das coisas e do nosso próprio processo de sensibilidade. Mas se ele quer fazer uma filosofia racionalista baseada em evidências inegáveis independentes das impressões do tipo psicológico, ele não poderia fazer o salto necessário para atribuir, à representação psicológica do fenômeno, o conceito de presença. O fato é: tem coisas que não percebo quando quero, só quando algo aparenta estar presente, e tem coisas que não consigo não perceber quando algo aparenta estar presente. Isso é fato, ou seja, a aparência da presença de algo cuja substancialidade pode ser questionada filosoficamente. Aliás, não é esse o expediente inteiro destas Meditações metafísicas? Questionar a aparência das coisas? De onde se pode tirar que, da falta de controle ou correspondência entre desejos e realidades, se possa atribuir substancialidade ao que parece estar presente? E o que significa, aliás, estar presente? Não é ter uma percepção? Descartes quer nos dizer que a substancia extensa (res extensa) existe por si mesma e independentemente da substância pensante (res cogitans). Mas ele não pode sair da sua experiência de substância pensante para conhecer, fora dela, a tal da substância extensa, assim como o físico não pode observar o campo quântico em seu estado puro sem produzir o colapso da função de onda, ou do vetor de estado. Em outros termos, não se pode afirmar um conhecimento senão a partir da perspectiva de ser quem conhece. Isto é inviolável. Podem juntar milhões de filósofos cartesianos, ou o que mais vocês quiserem, ninguém vai mudar isto, porque o ato do conhecer sem o ser do conhecedor é impossível. Nosso autor não nota isso (ou não quer notar), e começa a fazer saltos inviáveis.
Vejamos onde vai chegar a reflexão do autor:
Que jeito estranho de pensar. E um tanto quebrado também, novamente. Ao afirmar que possui faculdades que dependem de um ser externo ao seu ser pensante para se realizar, seja a faculdade dos movimentos ou das sensações, ele continua reconhecendo apenas que não é o produtor direto de suas próprias percepções, o que já tinha sido observado faz tempo por ele mesmo. A atribuição, porém, de corporeidade, ou extensão, a essa fonte externa que corresponde às suas faculdades subjetivas, é novamente um salto desnecessário e não justificado. Não há nenhum elemento corpóreo ou extenso identificável por qualquer caráter cognoscível. Tudo que é conhecido, é conhecido por ter qualidade formal. O puramente corpóreo ou extenso não pode existir como objeto de conhecimento. Aqui Descartes denuncia a si próprio como mau aluno da Escolástica, para não falar até da filosofia clássica, porque já Aristóteles afirmava que a matéria-prima era incognoscível, e isto foi sempre reiterado no decorrer da filosofia medieval. A atribuição de substancialidade à matéria depende de uma dessas duas qualificações: (1) que seja pura função da abstração enquanto matéria-prima simpliciter, que é pura potência; (2) que seja cognoscível apenas enquanto matéria secundum quid, assinalada pela quantidade, isto é, já mediada por algum elemento formal. Se isso fosse notado pelo nosso autor, ele não poderia fazer essas acrobacias e sair falando de corpos e extensões, etc.
Digo isso para nem entrar no rolo cartesiano do suposto problema das privações do nosso conhecimento, como se Deus fosse indesculpável caso tivesse nos provido objetos defeituosos como percepções diretas. Mas se Deus é soberano, ele não teria criado aquilo que é corporal e extenso, que pode nos confundir ou enganar, de tal modo que se mantivesse como causa primeira do nosso erro? Me parece que o Deus de Descartes não é o Senhor dos cristãos, mas a divindade falível dos gnósticos, que não teria nada a ver com as subcriações de um demiurgo. Afirmo que este é um “suposto problema” porque o Limite em si não possui defeito (como querem crer justamente os gnósticos), e a nossa falibilidade é uma condição temporária apenas para o exercício do livre-arbítrio a respeito da comunhão com o Espírito Santo. Vejam que se um filósofo é cristão, livre para assentir às premissas evangélicas como princípios do seu pensamento, é muito mais fácil resolver os problemas da metafísica cartesiana, sem nem por isso abrir mão da racionalidade.
Para sermos justos com o autor, Descartes afirma ao fim do §19 da sexta meditação que a substância por trás do fenômeno da percepção deve ser um corpo ou “então é Deus mesmo, ou alguma criatura mais nobre do que o corpo, na qual isso mesmo está contido eminentemente“. Essa sua ressalva lhe ajuda a escapar da armadilha gnóstica que se proporá logo em seguida, isto é, de que deve haver corpos responsáveis pela percepção eventualmente enganosa, caso contrário Deus perderia sua confiabilidade. Seria preciso que ele voltasse a esta consideração anterior.
Primeiro, reconhecendo que os seus corpos extensos são uma improvisação para se evitar o constrangimento de ter que revisitar a hipótese do gênio mau. Implicitamente ele mesmo admite isso. Ora, se a falibilidade humana tem uma função espiritual, não há problema que Deus seja o gerador das percepções de modo direto, ou “alguma criatura mais nobre que o corpo”, como ele mesmo diz. Até porque, como já expliquei, a responsabilidade divina é inescusável como Primeiro Princípio ou termo inicial de todas as causas. Porque Leibniz e tantos outros trabalhariam numa Teodicéia futura à filosofia cartesiana, senão porque essa sua arrumação é inegavelmente incompetente? Então ele teria que recuar e reconhecer um outro tipo de solução. Fosse qual fosse a sua resposta, eu me dou por satisfeito com a Eleuteriodiceia e com a Razão Singular de Mistura Mínima.
Segundo, seria necessário ele reconhecer que a percepção do ser divino por um intelecto limitado requer exatamente esse tipo de percepção parcial que ele identifica como a razão para a atribuição de existência objetiva ao que é extenso. O que é necessário para a alma, portanto, é a percepção limitada do ser, adequada ao limite do intelecto. Reconhecido isto, é mais fácil afirmar que o ser divino cria um ser feito à sua imagem e semelhança para o conhecimento parcial de seu ser por um reflexo. Lembremos que as coisas mais firmes que Descartes reconhecia desde o princípio, no seu Discurso do método, e reiteradas nas primeiras das suas Meditações metafísicas, são as evidências da alma como substância pensante e de Deus como o infinito necessário em ato. O modo mais simples de conectar essas evidências para a explicação de todo o universo do Múltiplo, que para ele é o problema do ser do corpo, do mundo, da natureza, etc., é afirmar que a própria alma possui a potência ilimitada de conhecer que é parcialmente atualizada conforme recebe o influxo do ato divino que ilumina o intelecto criado. E ela possui esta potência porque é uma mônada criada, feita à imagem e semelhança da Mônada Incriada, que é Deus. Tudo o que achamos que é real só o pode ser, de algum modo, como o próprio Descartes admite, porque Deus é real em primeiro lugar. Essa dependência que a alma tem de Deus seria naturalmente reconhecida pelo fenômeno da reflexividade monádica. Estaria aí a descrição do que é essa “criatura mais nobre do que o corpo” que ele buscava para explicar as faculdades da percepção: é a mônada.
Esta obra é estranha, porque se por um lado contribui trazendo uma linguagem simples para uma nova filosofia, por outro lado perde o rigor mínimo para fazer uma demonstração com a firmeza que pretende. E não serve muito bem como filosofia cristã, porque o autor se nega a reconhecer os efeitos da Graça santificante sobre o intelecto. Seu racionalismo é imanentista, para não dizer já humanista. O projeto do Discurso do método era mais interessante do que o que foi entregue nestas Meditações metafísicas.
O traumatizado Teddy, abalado pela doença de sua mãe, empregou sua inteligência para entender as razões últimas da sua condição, pelo que conseguiu identificar na origem do problema a ação de alienígenas atuando no planeta Terra. Influenciando seu primo Don, de capacidade intelectual reduzida, Teddy decide sequestrar Michelle, uma poderosa CEO da empresa responsável pela doença de sua mãe, convicto de que ela é uma agente extraterrestre envolvida num plano de dominação da humanidade, com a intenção de afazer algum tipo de acordo com os alienígenas a respeito da sobrevivência e independência da humanidade.
O filme não reconhecerá a verdade da descoberta de Teddy senão no fim, o que permitirá que fiquemos durante duas horas especulando a respeito da loucura dele. Os sinais são evidentes: ele foi traumatizado, sofre de paranóia, e tem aquela combinação terrível de ceticismo com credulidade que só lhe permite reforçar cada vez mais suas próprias crenças. Porém, apesar de tudo isso, sempre seria possível que Teddy tivesse razão. E de fato ele tem, embora tenha falhado moralmente, como veremos. É a mesma idéia do roteiro do filme Rua Cloverfield: um paranóico, ou até mesmo um psicopata, pode conhecer mais a verdade do que as pessoas mais sãs e bondosas.
O roteiro evidentemente brinca com a própria condição do ser humano contemporâneo que vive nas grandes cidades e sob a influência de décadas do amplo acesso à Internet e a uma cultura generalizada de Teorias da Conspiração. Depois de tantos Séculos de descredibilização das instituições e autoridades humanas, a questão de Pilatos nunca foi tão viável como hoje: Quid est Veritas? O que é a Verdade?
Ora, a verdade é aquilo que o ser humano encontra no seu próprio coração. E a estória de Bugonia prova isso. Senão vejamos.
A escolha que Teddy tinha, mas que não percebia, era a de optar por estar certo e sofrer mesmo assim. É a escolha moral de alguém que confia num Sumo-Bem transcendente a todas as realidades possíveis.
Mas Teddy estava tão preso na lógica da disputa natural pela sobrevivência e pela supremacia política, por exemplo de um conflito entre espécies de diferentes galáxias, que ignorou a possibilidade de que alguma instância de valor moral pudesse transcender essa dimensão do conflito com alienígenas. Que ele tivesse descoberto o grande segredo da presença e da conspiração de alienígenas na Terra já era uma conquista suficiente da sua inteligência para que ele presumisse que suas intenções morais fossem perfeitas daí em diante. Vejam como o referencial de uma mente pode ser isolado e dominar dialeticamente e massacrar a psique de um ser tão limitado como o ser humano: Teddy teve que lutar contra a incredulidade do mundo inteiro que negaria a veracidade da existência e atuação dos alienígenas, e isto o prendeu à lógica da necessidade de vencer nessa dimensão que sua psique reconheceu. Sua consciência teve que lutar tão arduamente contra a negação daquilo que ele evidenciava como certo, que ele ficou psiquicamente preso na dialética de ser aquele que precisa negar os padrões de veracidade e também de moralidade da humanidade, para ter sucesso no seu empreendimento. Sua disputa não alcançava a luta contra um mal superior à dimensão da disputa intergalática entre espécies. Teddy confiou demais no seu tino moral, supondo que se tinha razão a respeito de algo importante que a humanidade negava, seria igualmente infalível na bondade de suas intenções. Esse foi seu erro mortal.
Teddy é vítima do excesso de segredos e conspirações no mundo real, mas também vítima do isolamento da sua credulidade afunilada na direção somente daquilo que confirmasse determinadas premissas morais do seu pensamento. Por um lado é verdade, sim, que o excesso de mentiras no mundo torna um ser humano normal e consciente um tanto paranóico e tendente à dissonância cognitiva. Por outro lado, também é verdade que Teddy, como qualquer outra pessoa, sempre poderia confiar num Bem transcendente a todas as dimensões de disputas. Graças à Soberania, portanto, o ser humano só é vítima da dialética quando quer ser.
O filme termina com uma mensagem semelhante àquela do filme Prometheus: a espécie humana falhou e foi descartada num juízo de espécies alienígenas mais inteligentes e evoluídas. Michelle, que era inclusive a autoridade maior dos alienígenas da galáxia de Andrômeda, decide eliminar os humanos. Ela não está certa? Teddy não ignorou um bem superior à própria Humanidade? Não foi extremamente violento e implacável na sua ação, desejando mais o poder do que a verdade?
Isso evoca a idéia do Especieísmo (“speciesism“), que é a idéia de que é moralmente errado considerar a humanidade melhor que qualquer outra espécie, seja terrestre ou alienígena. Isso está correto espiritualmente, com a ressalva de que a instância metafísica transcendente deve superar todas as espécies contingentes possíveis, caso contrário uma pode se colocar diante das demais como portadora de uma verdade que não lhe pertence, como Lúcifer fez com sua Pseudoeuergesía (que Adão também praticou com sua descendência), e em linha com o Apóstolo Paulo que inclusive alertou contra aparições angélicas. Se nem anjos de luz devem ser obedecidos e acreditados a despeito da autoridade direta de Deus, muito menos alienígenas da galáxia de Andrômeda.
Teddy poderia alcançar e até superar a lógica de Michelle, se o seu foco fosse o Deus verdadeiro, e não uma suposta vitória da espécie. O que é a verdade? No coração de Teddy (e de todos os humanos, pelo que o filme apresenta na sua conclusão), é a luta pela sobrevivência e pela supremacia, ou seja, é um tipo de Naturalismo, que é por sua vez um tipo de idolatria. Talvez no coração de Michelle, e dos andromedanos, a verdade fosse algo melhor do que esta crença de Teddy e dos humanos, mas o que é garantido é que jamais seria uma verdade superior à do Sumo-Bem, ou da Noesis Noeseos, etc., ou do que chamo de a Condição do Escolhido nos Cinco Conceitos Sinóticos da Monadofilia.
Descartes, tido às vezes como um Sócrates moderno reinaugurando a Filosofia no seu tempo, partiu da certeza da própria dúvida, análoga à ignorância socrática, para fundar seu método filosófico. Cético contra a sabedoria alheia e a própria, ganharia mais pontos de Vigilância se não fosse o seu testemunho de Ingenuidade a respeito do ideal racionalista da evidência que não pode justamente ultrapassar entes de razão e ser aplicado aos objetos mais gerais da Filosofia a partir dos conhecimentos obtidos por experiência. Assim como ocorreu com aqueles gregos antigos, os conhecimentos exatos dos entes de razão lhe animaram a buscar uma verdade científica para além da opinião. O peso da ainda forte teologia herdada do império milenar da Igreja Católica requeria a busca de novos ares, mais frescos e livres. Mas seria necessário ainda um Kant para mostrar os limites da razão humana com sua Crítica da Razão Pura, inspirado pelo anti-racionalismo do empirismo de Hume, que revalorizou a experiência contra a pura abstração. Descartes ainda não consegue desenhar o quadro completo desde o seu racionalismo.
As precauções do ceticismo de Descartes servem como testemunho da Vigilância, com a ressalva do cuidado com o excesso da sua confiança no racionalismo. Para além disso, a favor da Soberania, nosso autor ensina que o pensamento a respeito das crenças é diverso do pensamento a respeito da sua posse:
Na verdade, o benefício deste testemunho é duplo. Por um lado auxilia no reconhecimento da possibilidade da Soberania na crítica da origem, credibilidade e viabilidade das crenças, e por outro lado auxilia no cuidado com a recepção das opiniões alheias, justamente porque é excepcionalmente raro encontrar seres humanos que sejam críticos com relação ao pensamento sobre suas próprias crenças. Já no início do Discurso do Método, Descartes já foi irônico (lembrando desde este ponto Sócrates) afirmando que o bom senso deve ser a coisa mais bem distribuída no mundo, já que todos pensam não precisar de mais bom senso do que já possui. Essa precaução é muito valiosa e conveniente.
Lembremos que a obra se separa em seis partes, das quais a Quarta Parte é de longe a mais importante, profunda e decisiva. A filosofia cartesiana partirá para todas as suas futuras explorações com base nesse fundamento metafísico originado neste segmento desta obra, que diz respeito à necessidade do ser da alma e de Deus.
Na sua consagradíssima e imortal sentença a respeito da incontornável existência da coisa pensante, “cogito ergo sum“, o filósofo seguiu a pista do método da Dúvida Total até encontrar a evidência do inegável:
Quem conhece a filosofia antiga, e mesmo a medieval, sabe que a prioridade do imaterial, ou metafísico, sobre todo o resto é uma noção clássica e básica na história das idéias, consolidada desde o idealismo platônico, o que G. Reale chamou de “a segunda navegação”. Algo, porém, complicou a transmissão das idéias de tal modo que Descartes se viu no papel de ter que resgatar esse tipo de evidência como premissa para a sua própria investigação. Como pode uma noção tão elementar não ser imediatamente evidente na cultura européia já experimentada em dezenas de séculos no idealismo? Essa questão exige uma investigação que não temos tempo de fazer agora, e talvez nem as condições, para dar uma resposta digna.
O que importa é que o nosso filósofo está afirmando que a sede da consciência é inegável por trás de qualquer experiência possível, inclusive a mais regressiva e cética de todas, que é a de seu método da Dúvida Total. A persistência da entidade que nega qualquer certeza perdura e por fim não consegue negar a si mesma na sua instância intelectual. Descartes redescobre assim a alma como substância pensante (res cogitans), que é um modo de conhecer o ser da Mônada pela via da evidência da operação intelectual. O que importa é reconhecer que esta substância não possui materialidade ou corporeidade na sua simplicidade, pois qualquer experiência fora da Apercepção da Mônada pode fazer parte daquilo que é condicionado por uma causa externa e questionável, mas nunca a própria noção de sua identidade e integridade.
Em seguida o autor reflete que se sua substância pensante é inegável, outra mais perfeita e plena é necessária, do contrário a sua estimativa do Bem seria inviável, pois não teria origem:
Monadofilicamente, afirmaríamos que a Apetição exige a instância do Sumo-Bem que não pertence à entidade da mônada criada. Só Deus poderia explicar nossa agência moral no desejo de um Bem que nunca foi realizado plenamente. Outro modo de alcançar o mesmo resultado e mais comumente usado é reconhecer que o finito requer o infinito, ou ainda que as causas intermediárias requerem uma causa primeira não causada que a tudo move sem ser por nada movida.
Reparem que Descartes não está inventando nada. Mas seu breve Discurso do Método é uma espécie de redescoberta das coisas essenciais que deveriam mover a Filosofia a se tornar um discurso mais simples e direto a respeito do que é essencial. Ele vinga, de certo modo, os críticos da filosofia medieval que anteciparam futuros problemas com a excessiva aristotelização da cultura filosófica, como a oposição de Bernardo de Claraval contra Pedro Abelardo. A Lógica por si jamais será antifilosófica, mas ela pode ser empregada num tal nível de sutileza e abstração que a hierarquia das noções mais relevantes fica perdida no meio de montanhas de discursos, demonstrações, provas, etc. A geração de Descartes atua no contexto de uma reação dialética contra os excessos da Escolástica.
O autor prossegue afirmando algo que ecoa a Metafísica aristotélica e as lições de comentadores como Tomás de Aquino, Duns Scot ou Francisco Suárez, isto é, que o conhecimento sobre o ser divino deve ser mais necessário e certo que o de qualquer outro tipo:
Psiquicamente, diríamos que todo assentimento com a integridade da estrutura da realidade requer uma crença prévia na bondade de uma fonte coerente que provisione essa firmeza. Esse objeto primário de crença nunca foi e nunca será provado. E nem os gnósticos escapam disso: sua Gnose, afinal, é uma suposta verdade infalível por trás de vários véus de mentiras e ilusões, etc. Simbolicamente encontramos referências como na Alquimia, onde não se pode obter nenhuma estrutura apenas com o solvente mercurial, bem como na ficção o iniciado nos mistérios gnósticos também sempre tem que descobrir alguma verdade que aceitará como definitiva sem garantias, como Neo tomando uma pílula azul no “deserto do mundo real” que lhe é apresentado por Morpheus, em Matrix, pois a continuidade indeterminada do efeito pílula vermelha teria apenas um efeito destruidor cada vez maior, até enfim dissolver e eliminar a coerência interna da identidade do próprio Neo. O que Descartes afirma é o seguinte: é necessário um Primeiro Princípio, ou um termo inicial, que nos garanta a veracidade da realidade que experimentamos. Por esta razão não importa tanto descobrir em qual nível de Simulação ou de ilusão nos encontramos, mas somente reconhecer que sempre vivemos diante da instância máxima que domina e governa todos os níveis de realidade possíveis, ou seja, que sempre vivemos na Presença de Deus.
Na Quinta Parte da obra o autor detalha alguns entendimentos sobre a alma, com a finalidade de distinção entre os homens e os animais, como ele mesmo explica no último parágrafo:
Ora, isto não seria necessário, e nem mesmo a defesa da imortalidade da alma, se o corpo ou a matéria não possuíssem substancialidade suficiente de modo que o composto tivesse que ser justificado. Essas dificuldades surgem já de uma certa traição ao próprio método cartesiano: intuída a alma pensante, sabe-se que ela experimenta algo que se manifesta como percebido, mas isto não é mais que um fenômeno. Kant diria: você representa essa realidade exterior, mas não poderia conhecê-la em si mesma. E depois a Fenomenologia avançará numa especulação a esse respeito. Descartes tem problemas análogos ao de Aristóteles com uma alma que forma um composto com um corpo que tem que ser algo além de um objeto de percepção. Embora, cá entre nós, a definição aristotélica da alma como forma do corpo é mais perfeita do que a dualidade cartesiana, porque facilita o recurso da analogia.
Na Sexta Parte, a última da obra, Descartes se mostra uma pessoa pequena diante de suas próprias capacidades como metafísico, o que novamente reforça o que já tantas vezes observamos antes: que a Vontade é muito mais determinante da ação humana do que o Intelecto. Vejamos um trecho significativo:
Para quem queria ser tão livre de preconceitos e limites artificiais, nosso filósofo até que se mostra bastante dócil e submisso às noções gerais de legitimação do Sistema da Besta. Ele quer participar e quer ser reconhecido socialmente, embora tema assumir isso francamente. Mais nobre seria afirmar seu desejo de glória do que mentir. É a velha vaidade das vaidades.
Por suas afirmações na última parte da obra o autor perde um tanto do valor positivo de testemunho da Vigilância que tinha alcançado. E também se justifica a glosa de religiosos contra as intenções do autor, o que é uma pena, porque sua metafísica poderia se tornar uma excelente filosofia cristã. O que não impede que outros tenham seguido melhores caminhos inspirados por Descartes, graças a Deus.
Este filósofo espanhol do Século XVI (nascido em 1548), intitulado Doctor Eximius pela Igreja Católica, atuou no contexto cultural da chamada “escolástica tardia” na história da filosofia européia, e é considerado um percursor da modernidade, um pensador que trabalhou a ponte entre o Medievo e o futuro.
Jesuíta e totalmente integrado na instituição eclesiástica, Suárez como tantos outros foi um bom filósofo cristão e um bom católico por resolver problemas nos dois escopos do seu trabalho, de modo paralelo e complementar. Por um lado era necessário fazer combate teológico no contexto da Contra-Reforma, e por outro lado era conveniente usar e aperfeiçoar a melhor filosofia disponível na época.
Este volume que apresentamos agora, das Disputas metafísicas, números I, II e III, foi produzido nesse intuito de continuar a noção medieval da philosophia ancilla theologiae. O autor é primeiro cristão, e depois filósofo. Por exemplo, ele dedica sua obra à glória de Deus, especificamente de “Dei Optimi Maximi“, traduzido como “Deus Ótimo Máximo”, o que aliás é um termo muito conveniente para a minha própria filosofia, já que na Monadofilia um dos Cinco Conceitos Sinóticos é o da Condição do Escolhido, o Sumo-Bem que é totalmente compatível com essa designação de Suárez.
O próprio autor inicia este trabalho explicando a sua motivação originada na vida da Fé:
E ainda:
Isso tem que ser tratado de forma muito cuidadosa. Se alguém tiver a mínima impressão de que a Filosofia colaborou na intuição da Fé ou na recepção de quaisquer dons espirituais sem o recurso de um dom divino, não só fica frustrada a intenção do autor, mas o resultado se torna extremamente contraproducente. Esse perigo existe, é enorme, e está totalmente qualificado pela advertência do Apóstolo Paulo em Colossenses 2:8 onde ele diz: “Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganosas especulações da filosofia, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo.” Na dúvida, todo empreendimento filosófico é dispensável para a vida cristã. Somente com essa segurança é possível, apenas no intuito de “elaborar seus discursos”, como diz o autor, fazer uma filosofia cristã competente. Mas observem como na mesma sentença Suárez afirma algo no mínimo de mal gosto, quando fala de “iluminar as verdades divinas”. Ora, não só as verdades divinas são ilustradas pela Graça, mas também as verdades “não-divinas”, ou naturais, muito embora esse tipo de distinção já é problemática e leva por si a muitos erros. Com Agostinho nós tínhamos uma epistemologia muito mais segura: todo o conhecimento de qualquer verdade é produzido pela iluminação divina. Se era necessário separar e distinguir Teologia e Filosofia, isso não modificou o processo gnosiológico real que se refere a qualquer verdade. Em outros termos: toda verdade é divina, porque se Deus não nos dá o conhecimento, nós não o podemos possuir por nós mesmos. Ora, não podemos nem sequer existir por nós mesmos. A diferença entre Teologia e Filosofia é o objeto de sua ciência: o Ser divino revelado, por um lado, e o Ser possível por outro. De fato essas duas ciências se encontram no estudo da metafísica, onde se compreende a essência do Ser necessário em contraste com a essência dos seres possíveis, mas isso não modifica a estrutura e a hierarquia das coisas: toda verdade é conhecida através da infusão da Graça, e tudo o que o psiquismo humano produz com sua razão natural é uma especulação sobre a possibilidade de Ser. Deus revela o que o Ser é, e o ser humano por si apenas produz uma estimativa e uma especulação sobre o Ser possível. Se não fosse assim, nenhuma intuição seria viável, nem portanto nenhuma premissa seria autoevidente, e nem o próprio Princípio de Identidade seria seguro, e todo o edifício da Lógica seria destruído. Não quero afirmar que Suárez não soubesse disso tudo. Mas entendo que sua terminologia não teve o cuidado de precaver leitores futuros a respeito dessas distinções, leitores que seriam muito mais tentados à uma visão idolátrica naturalista do processo do conhecimento. O conhecimento como um todo é afinal misterioso o suficiente independentemente da abstração. Que possamos abstrair as essências das coisas concretas e concebê-las separadamente é algo maravilhoso, mas pensando bem o próprio conhecimento das coisas na sua concretude é miraculoso e revela o contato humano com algo de eterno. O foco de Suárez é a ciência metafísica em específico, e a justificativa da Filosofia para o auxílio da Teologia. Não se questiona a origem divina de todos os conhecimentos, inclusive os naturais, porque o entendimento é o de que tudo se sustenta na Graça divina de todo modo. Para um teólogo do Século XVI isso poderia parecer óbvio. Mas e para um leitor do Século XXI?
Suárez trabalhará na justificação da Filosofa em geral e da Metafísica em particular mergulhando detalhadamente no escopo desta ciência, através da definição precisa do seu objeto. Não precisamos acompanhar todo o seu raciocínio para aceitar que a Metafísica seja viável e conveniente, embora convenha observar que o conceito de matéria continua sendo problemático desde Aristóteles até esta época. Em suma, a Metafísica afirma o conhecimento do que é imaterial como precedente e mais excelente do que o conhecimento do material, porque o que possui mais ousia é o abstraído pelo pensamento, e não o composto (ou sínolo). Qual é, realmente, a novidade nisto? A experiência sensível revela de imediato o concreto como composto, mas o pensamento revela que a prioridade ontológica é da essência como Substância por excelência. Daí, como diz Aristóteles, o primeiro na ordem do conhecer é o último na ordem do ser, e o primeiro na ordem do ser é o último na ordem do conhecer. Quem lembrar bem do meu próprio estudo da Metafísica de Aristóteles recordará como é óbvio que o conceito de matéria é uma abstração em face do conceito de forma, idéia ou essência. Assim, quando se afirma que de um ente concreto se abstrai a forma da matéria, na verdade a operação separa o ser mais real, que tem mais essência –isto é, a forma–, do seu veículo de manifestação aos sentidos, que é a matéria que possui menos ser. A abstração aristotélica explica o processo gnosiológico do conhecimento teorético como derivado de uma suposta substância composta, mas o resultado da reflexão filosófica mostra o oposto, que na verdade o conteúdo formal abstraído da experiência é anterior, não só temporalmente mas ontologicamente, do seu elemento material que, por ser privado de qualquer qualidade, não passa justamente de ser apenas uma abstração conjeturada para a explicação da experiência sensível das formas. Bem entendidas as coisas, a Metafísica estuda a verdadeira realidade que é a das essências, do Ser pelo que ele é em si mesmo, enquanto as outras ciências estudam propriedades derivadas da experiência da manifestação dessas essências, como a matemática que considera o Ser apenas pela noção da quantidade, ou a física que considera o Ser apenas pela noção do movimento, etc.
O conhecimento imediato do composto, ou sínolo, através das sensações, é a experiência da intuição da unidade da essência no contexto das funções da Percepção de um intelecto limitado, isto é, na compressão das funções dimensionais adequadas ao nosso modo de conhecer. O Múltiplo, assim, ou o devir, é um reflexo do Ser conhecido de modo limitado por intelectos finitos que não poderiam conhecer a Unidade do Ser de outro modo, porque somente um intelecto divino, infinito em ato, tem a virtude do domínio intelectual do Ser. Dito ainda de outro modo (e digo tudo isto apenas para alinhar as coisas na direção da justificativa da Metafísica, que é o empreendimento inicial de Suárez nesta obra das Disputas), a Relação Uno-Múltiplo em Deus é de perfeita identidade, porque sua entidade e sua essência são idênticos, como diria Tomás de Aquino. Em Deus, o Reflexo manifesta perfeitamente o Ser, de modo integral, total, acabado, simultâneo e eterno. Deus conhece e ama eternamente a Glória de seu próprio Ser, por isso é dito a seu respeito que é Feliz, ou Bem-Aventurado, etc. O intelecto criado, limitado e finito, não pode conhecer o Ser senão por um Reflexo adequado ao seu modo de cognição. Isto é: a Glória divina é conhecida pela criatura através da manifestação limitada do Ser do Uno no Reflexo do Múltiplo. O limite da simultaneidade gera a função dimensional do espaço, enquanto o limite da sucessividade gera a função dimensional do tempo, etc. A prioridade da Metafísica se justifica porque se requer o conhecimento do princípio original, ou causa primeira, que explique a experiência do Ser tanto no incriado quanto no criado, e que também explique a analogia entre estes. Esta deve ser a ciência das causas primeiras e, como entendo, da Substância Simples, ou Monadologia, e do Reflexo Uno-Múltiplo como estrutura fundamental o ser e do conhecer.
No que a contribuição de Suárez se destaca eminentemente? Como um precursor dos desdobramentos da futura filosofia, e em linha com as contribuições anteriores dos já por mim citados filósofos franciscanos, pela qualificação mais perfeita da Metafísica que abre de modo franco e inevitável a possibilidade do subjetivismo e, através deste, do idealismo alemão e da fenomenologia. Ademais, Suárez trabalha com atenção também no problema da Unidade como matriz ou forma essencial primária, no que provavelmente inspirou filósofos como o próprio Leibniz, e na diferenciação entre a Substância incriada e as criadas, uma noção que é cara por exemplo ao meu próprio sistema. Suárez foi um filósofo importante para a consolidação e transmissão dos melhores avanços da filosofia medieval para as futuras gerações. Se há, portanto, um autor cuja obra serve de prova direta da falsidade da suposta ruptura entre a “Idade das Trevas” e o “Iluminismo”, este autor é Suárez. Note-se, porém, que nem todos os modernos reconhecem as luzes medievais mediante o estudo de autores como Suárez. Justamente os pensadores mais imbuídos da pretensão da ideologia iluminista rejeitaram esse legado. E cabe a esses últimos a falsidade da suposta superação da filosofia medieval pelas luzes modernas. Os danos que essa farsa geraram são experimentados até hoje na cultura acadêmica e científica. Com frequência observa-se a ignorância de pensadores como Wolfram, por exemplo, que teriam um enorme potencial a ser desenvolvido se apenas descobrissem as filosofias que foram injustamente desqualificadas pelos preconceitos da tradição analítica, anti-idealista e anti-fenomenológica, herdeira dos vícios iluministas. Por nenhuma outra razão as interpretações mais convenientes das implicações da física quântica são inviáveis, senão por essa estúpida restrição cultural aos limites da filosofia analítica e às imaginações pueris da ideologia orientalista da Nova Era. A melhor filosofia medieval, como a de um Suárez, é capaz de integrar as descobertas da física quântica numa explicação robusta do Ser, bem como suas herdeiras modernas, em especial a filosofia leibniziana.
O objeto que Suarez determina para a Metafísica é o ente, o Ser do modo mais universal, que supera a Substância que sob este aspecto é apenas uma espécie de ente cuja diferença específica é o de subsistir por si mesma. O ente inclui o ser dos acidentes que possuem entidade embora somente por predicação da Substância. Isto quer dizer que o conjunto dessa realidade ou entidade dos acidentes constitui aquela pluralidade do idealismo platônico? Não, porque devem ser somente realidades abstraídas pela razão, como diria Aristóteles. Mas não deixam de ser verdades objetivas para a Metafísica, que as diferencia e classifica para fazer suas distinções próprias. Não seria possível, por exemplo, afirmar a diferença ontológica entre incriado e criado se a Metafísica só estudasse as Substâncias enquanto tais, já que a diferença entre o incriado do criado está na entidade, e esta diferença só pode ser compreendida pela Metafísica. Monadofilicamente, compreenderíamos assim: uma ontologia geral, com o critério único da Substância, compreenderia apenas o que chamamos de “mônada indiferenciada”, mas uma Metafísica pode discernir entre as mônadas diferenciadas justamente porque distingue os graus de entidade dessas realidades que são ontologicamente idênticas na sua forma substancial. Sendo sincero com vocês, acho que esse tipo de distinção é viável, mas não é muito produtiva. É o tipo de sutileza que começou a irritar a mentalidade moderna, e talvez em parte não sem alguma razão.
Da já falada abstração da matéria como função do entendimento metafísico da realidade, encontramos uma passagem significativa a esse respeito:
Novamente compreendemos que o que interessa, metafisicamente, na matéria é o discernimento de sua função para o entendimento daquilo que não é material. Quando a ciência sobre a matéria se torna produtiva tomando-a como objeto próprio, já falamos de uma matéria secundária, “assinalada pela quantidade”, como diriam os escolásticos, o que importa apenas para compreender as causas inferiores do ser, quais sejam, a material e a eficiente (e esta última apenas nos níveis intermediários e mais próximos do efeito, desconsiderando a imaterialidade das causas primordiais).
Em certo momento Suárez finalmente arrisca sua definição da ciência metafísica, embora o faça quase que de maneira banal e descompromissada, apenas para produzir um outro argumento. Diz ele: “a metafísica é a ciência que considera o ente na medida em que é ente ou na medida em que abstrai da matéria de acordo com o ser“. Uma conjunção alternativa nunca cai bem numa definição rigorosa, mas vamos tentar esmiuçar. O ente na medida em que é ente é o ser independente da substancialidade, ou seja, o ser por si e o ser por outro, tanto a essência quanto o acidente. Já o ente que abstrai da matéria de acordo com o ser é aquele que subsiste independente do material, e isto vai bem de acordo com as definições mais clássicas da Metafísica: simplesmente, o que é além do físico, ou independente do físico. O que convém lembrar para justificar o cuidado com essa terminologia, porém, é que se o que é metafísico considerasse apenas o ser imaterial, isso não implicaria no reconhecimento da prioridade ontológica do que é metafísico. Se o imaterial fica “ao lado”, no mesmo nível, do que é material, isso começa a gerar as implicações que produzirão todo tipo de dualismo futuro, como o maior erro consequente da filosofia cartesiana, por exemplo. O que “abstrai da matéria” seria o simplesmente imaterial, o não físico. Mas o que “abstrai da matéria de acordo com o ser” é o que subsiste independentemente do material ou físico pela sua própria forma substancial. Isso poderia parecer uma distinção prosaica ou mesmo inútil, mas não se lembrarmos que o material não pode existir sem o formal senão como aquela pura abstração que é a matéria-prima na ontologia. Ou seja, o metafísico como imaterial supera o material ou físico de todos os modos, porque quando a matéria é cognoscível ela recebe substancialidade da forma, e quando ela prescinde totalmente de qualquer elemento formal, ela se torna justamente incognoscível a tal ponto que sua existência só pode ser cogitada. Em suma, e para resumir, Suárez trabalha numa linguagem necessária para manter a hierarquia da realidade na sua devida ordem, onde a forma ou essência atua como princípio anterior ao físico ou material. Seria impossível eu afirmar, por exemplo na minha Monadofilia, que a sensação é produzida pela experiência do reflexo do Ser, se o caráter intelectual da realidade tanto do sujeito quanto do objeto não fosse eminente, e o sensível não fosse o mero produto manifestado dessa relação intelectual entre o Ser e o seu reflexo. Eu não teria aprendido a viabilidade do subjetivismo do Idealismo Transcendental sem o trabalho prévio dos filósofos que herdaram por seu turno essa lógica da filosofia de pensadores como Suárez.
Tratando-se de distinções valiosas a respeito dos objetos mais elevados da especulação humana, nosso autor nos fornece o seguinte insight:
Podemos pensar, assim, no que diferencia a Filosofia da Metafísica e da Teologia, por um ângulo diferente do habitual: a Filosofia trataria de tudo o que é universal de modo indiferenciado e por princípios gerais aplicáveis a quaisquer ciências particulares; a Metafísica trataria do Ser (ou ente) enquanto tal, tanto pelo essencial ou pelo acidental, abstraída a matéria; e a Teologia trataria do Ser da causa primeira. Como já disse antes, Suárez acerta com sua ênfase na importância da diferença entre criado e incriado, diferença essa que explica, como vimos acima, porque a Metafísica é a ciência do ente, e não da Substância.
Tratando da finalidade da Metafísica, entre suas várias observações muito apropriadas, Suárez nos lembra que a realidade dos objetos de todas as demais ciências não pode ser atestada senão por esta ciência suprema:
Não é incomum que isto seja esquecido ou mesmo dispensado das considerações daqueles que professam a ideologia cientificista. Todos os princípios e as primeiras premissas de todas as ciências particulares são garantidas por algum tipo de filosofia metafísica, pois sua justificação não pode, por definição, compor o estudo de sua própria ciência, já que esta só estuda o que é definido como posterior ao princípio assumido como premissa. Isto quer dizer que mesmo que de modo omisso, ou pouco refletido, há sempre algum pensamento do tipo metafísico sustentando todo o empreendimento das ciências naturais. Os juízos que atestam a realidade da entidade dos objetos das ciências particulares o fazem de modo acidental, como juízos de fato (Leibniz), ou sintéticos (Kant), e reconhecem a sua veracidade por aplicação de algum princípio herdado de outra fonte, que deve ser algum tipo de Metafísica. Em outras palavras, é a Metafísica que pode afirmar a verdade dos objetos de todas as ciências.
Vamos explorar um pouco mais este conceito, para deixar claro como esse plano de reflexão é inevitável. Usemos exemplos mais acessíveis para as pessoas em geral. Quando assistimos filmes que questionam a natureza da realidade, por exemplo, lidamos com o mesmo referencial que Suárez usa para justificar a Metafísica. Quando no filme Matrix o personagem Neo imobiliza as máquinas no mundo que os personagens entendem ser uma realidade não simulada, isso gera a reflexão de que seria possível que esta dimensão fosse apenas mais um nível da Simulação das máquinas. Ou então, no filme A Origem, quando Cobb gira o seu peão, que tem a função de totem, e se distrai com as imagens de seus filhos e não vemos se o peão pára de girar ou não, também reflete-se se aquela experiência seria apenas o produto de um novo sonho, ou se seria uma realidade. Por que podemos questionar a natureza da realidade? Porque a veracidade dos objetos da experiência pode ser ilimitadamente questionada e é preciso que um outro tipo de conhecimento forneça os meios de aferição da verdade da estrutura da realidade. Esse outro tipo de conhecimento só pode ser do tipo metafísico, pois dispensa qualquer experiência particular por governar todas as experiências possíveis. Isso porque o objeto da Metafísica é justamente o Ser enquanto tal. É disto que Suárez está falando quando explica que a finalidade da Metafísica é a justificação dos objetos de todas as ciências.
Este assunto não é de menor importância no plano das questões espirituais, porque a experiência da Dúvida Total, que toma a forma de uma malícia nas doutrinas luciferinas e adâmicas, só é possível quando a necessidade da filosofia Metafísica é dispensada. Como é que primeiro Lúcifer, e depois Adão, puderam questionar a veracidade da divindade do Criador, se não fossem livres para reconhecer justamente o termo inicial, ou Primeiro Princípio, como uma necessidade de tipo metafísico e, junto com isso, a admissão de sua ignorância terminal com relação ao domínio gnóstico desse termo inicial? Em outros termos: estes personagens só puderam duvidar, como nós hoje também podemos, porque são livres para reconhecer ou não, em primeiro lugar, que algum termo inicial na série causal é necessário (mesmo com a eternidade do movimento, como com o Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles), e em segundo lugar, que nós não possuímos o domínio cognitivo a respeito da essência e da natureza desse termo inicial, cuja natureza só pode ser estimada e confiada.
O nosso autor tratará da Metafísica como uma ciência própria e digna, suficientemente diferenciada e justificada, e fará isso de modo bastante exaustivo e na verdade único na História da Filosofia, desde Aristóteles. Parte a parte ele monta a sua argumentação bastante completa sobre esta ciência, fornecendo idéias instigantes, fazendo observações frutuosas, e sempre honrando o legado do Estagirita e respeitando os seus mais importantes comentadores.
Quando versa sobre o grau comparativo de certeza que a Metafísica possui em comparação com as demais ciências, Suárez se vê obrigado a reconhecer que a excelência do objeto da Metafísica como que toma emprestado de dons sobrenaturais para a consideração da sua prioridade:
Nesta sua linha de raciocínio o nosso autor dá um testemunho suficientemente valioso do dom da Presença para que seja notado como relevante. Ele reconhece que a perfeição do que é divino leva a ciência humana que tem por objeto o grau mais universal de entidade, isto é, a Metafísica, a se tornar milagrosamente mais certa e infalível justamente sobre o que seria mais obscuro, distante e misterioso, e isso só poderia se dar por um aporte sobrenatural ao intelecto humano.
Quem requeira uma evidência de que a Filosofia de Suárez é serva da Teologia, em acordo com toda a tradição escolástica, pode encontrá-la nesta passagem, por exemplo:
A Sabedoria é dom divino, concedido por iluminação tanto quanto os dons que sustentam a razão natural, mas capaz de produzir intuições que superam tudo o que o intelecto criado é capaz de demonstrar e explicar por seus recursos. Sustenta-se, assim, com Suárez, tanto o dom de Soberania quanto a integridade e prioridade da vida espiritual em face de qualquer Gnose possível. Primeiro vem o amor a Deus, o Primeiro Mandamento, e depois vem o filósofo cristão dar suas melhores explicações para honrar e glorificar a Sabedoria divina a qual recebeu acesso e participação previamente, por efeito da Graça santificante. Diante de Deus só se sustenta a santidade do Amor, nunca a Gnose, seja de qualquer criatura que seja (Coram Uno Amor Tantum, como diríamos).
A Disputa II é enfadonha e pouco produtiva para o nosso ponto de vista, isto é, para a produção de um testemunho espiritualmente conveniente a um público em geral. Como já vimos desde o começo das análises a respeito da Filosofia Escolástica, esta é uma literatura destinada a um público tecnicamente especializado, treinado por gerações dedicadas no âmbito da cultura da Universidade medieval. Toda essa leitura é árdua para nós hoje, no Século XXI, com a exceção daqueles que estudam esse período em específico de modo mais profundo. A Disputa I identificou o ente como o objeto da Metafísica, e qualificou esta ciência de modo exaustivo. A Disputa II qualificará o objeto da ciência, digamos a “entidade”, com nuances e sutilezas que são espiritualmente inócuas, como fazendo a distinção entre noções de vários tipos, conceitos formais e objetivos, etc. Podemos dispensar uma análise desses argumentos. Quem se interessar por isso pode consultar a obra diretamente, fazendo inclusive uso de um recurso que por bondade o Editor forneceu no trabalho publicado, ao fim deste volume, que é um “Roteiro do parecer se Suárez sobre o conceito de ente (Disputa II, Seções I e II)“.
Só voltamos a encontrar algo mais interessante para o nosso uso na Disputa III, quando Suárez fará uma afirmação sobre as afecções do ente:
Isto nos convém porque confirma a Analogia Trinitária que já postulei como observação dentro do escopo da Monadofilia, de que ao Pai corresponde o Ser, a Substância ou a Mônada, ao Filho o Conhecer, o Intelecto ou a Percepção, e ao Espírito Santo o Amar, a Vontade e a Apetição. Pai, Filho e Espírito Santo são as Pessoas divinas qualificadas para a integridade da suficiência do Deus único; Ser, Conhecer e Amar são os modos de entidade que correspondem à Substância, que é a Mônada (simples, sem partes), ao Intelecto que gera a Percepção, e à Vontade que gera a Apetição. Tudo isso identifica a perseidade do Ser: sua substancialidade, sua veracidade e sua bondade. Como isto é realizado? No ser divino, que é a Mônada Incriada, pela sua infinitude em ato e identidade de essência e existência (ou entidade). No ser criado, pela Relação entre o Uno e Múltiplo: o ser reconhece na parcialidade da sua finitude a sua subsistência, a sua veracidade, e a sua amabilidade, isto é, que possui ser intuído como Unidade, que o ser é veraz para o Intelecto, e que é apetecível para a Vontade. Estas distinções todas, porém, lembremos sempre, não separam o Ser na realidade, mas apenas no nosso entendimento, que é a função da abstração. Como a forma do Ser é a Unidade, convém recompor a sua integridade depois da abstração de suas propriedades, tanto quanto convém reconhecer a integridade da Unidade divina concomitantemente à consideração das Pessoas da Trindade.
Quando Suárez afirma essas afecções do ente, em particular na passagem abaixo, ao afirmar as faculdades universais ligadas à Unidade do ente, podemos perceber claramente que isto inspirou a Monadologia de Leibniz:
Se alguma ruptura pode ser afirmada entre a Filosofia Medieval e o Iluminismo, ela pode ser encontrada talvez com mais acerto em germe na obra de Descartes e muito mais ainda entre outros pensadores futuros, mas não por toda a modernidade. Desdobrados os Séculos, encontramos uma continuidade da pesquisa metafísica aristotélica (que por sua vez herdava o problema da Relação Uno-Múltiplo de Platão, Parmênides e Pitágoras) no neoplatonismo plotiniano, e depois na pesquisa medieval que chegou até Suárez e foi continuada por filósofos como Leibniz ou, até certo ponto, mesmo Kant, gerando as noções que animaram tanto o Idealismo alemão quanto a Fenomenologia, entre outras produções da filosofia européia continental. Onde se encontrou alguma ruptura? Provavelmente na tradição da Filosofia Analítica, a herdeira mais legítima da tabula rasa iluminista, e isso com imensas repercussões na cultura moderna a nível mundial, em virtude da vasta influência do Império Britânico e de sua mais poderosa filial, os chamados Estados Unidos da América. A Metafísica não foi, assim, tão perdida no princípio da Europa moderna como um todo, mas muito mais do outro lado do Canal da Mancha. O quanto, por exemplo, os físicos quânticos se atrapalham para significar filosoficamente as conclusões retiradas dos seus estudos mostra como sua a cultura é pobre de recursos metafísicos como consequência dessa etapa da História da Filosofia. O resultado prático observável da vitória colonial de uma certa cultura iluminista a partir da influência da Filosofia Analítica foi a proliferação de uma subcultura cheia de superstições e misticismo barato, e a importação de supostas sabedorias orientais no bojo do crescimento desse constrangimento intelectual que é a Nova Era. Sobretudo contra a ideologia cientificista vale a pena ler Suárez e observar como é integrável a sua visão já quase moderna da Metafísica a todas as demais contribuições das investigações posteriores de todas as ciências naturais.
Nesta obra do Doutor Sutil encontramos mais uma expressão da filosofia cristã medieval alternativa ao programa dominicano e tomista.
O objetivo é uma revisão de termos essenciais da metafísica unindo os melhores legados tanto da filosofia antiga, em especial de Aristóteles, quanto da teologia cristã, porém com uma ênfase maior na submissão do racional ou filosófico ao espiritual. Esse programa já vinha de antes, com o próprio Doutor Seráfico (Boaventura), também franciscano, e foi continuado por gerações frutuosas inspiradas nessa orientação, sem esquecer a influência mais remota mas não menos poderosa de Agostinho.
Tratando da terminologia das causas, encontramos essa passagem:
Já falamos muito da prioridade das causas formal e final em face das causas material e eficiente, mas a expressão aqui lembrada e reforçada pelo autor é muito feliz, tratando-se da causa final: “causa das causas“. De certo modo isso é um produto da causa formal, mas é pela finalidade que se movem as demais causas, principalmente em vistas ao bem. A vantagem da posição dos franciscanos provém de sua liberdade de usar o Amor como categoria filosófica com maior liberdade do que Aristóteles faria, já que o Eros grego possuía um caráter menos ideal do que o Caritas cristão. Embalados pelo neoplatonismo plotiniano através da doutrina agostiniana da qual são legítimos herdeiros, esses franciscanos medievais produzem uma linguagem filosófica a meu ver excelente, muito mais direta e pura. Se o mais elevado dos Cinco Conceitos Sinóticos da Monadofilia é o Escolhido, isso não poderia se dar sem essa história do uso dos termos em busca da expressão mais fiel da realidade, especialmente do ponto de vista cristão.
Esse legado terminológico é determinante para o futuro da filosofia ocidental. No número 37 (Conclusão 15) o autor diz “nunca se deve admitir pluralidade sem necessidade“, repetindo Aristóteles, o que é uma óbvia inspiração para o que será a futura doutrina da Navalha de Ockham. Essa intenção é reiterada muitas vezes no decorrer da História da Filosofia, e de modo muito explícito desde pelo menos da obra do Estagirita, ao tratar dos excessos do idealismo platônico.
A estrutura formal da ordem das essências requer o Primeiro Princípio de tal modo que nenhuma circularidade, como num sistema fechado, é viável:
Com isso se exclui as ideias de eterno retorno, e a circularidade imanentista do Ouroboros: neste último caso o que há é uma farsa em que se pretende não depender do Primeiro Princípio, isto é, do influxo da Graça, para a experiência dos bens contingentes supostamente perpetuados dentro do sistema fechado. Se Deus me permitir expandirei a ideia de Usurpação para a de Pseudoeuergesia, a “falsa beneficência”, para deixar mais claro o entendimento de como isto é perverso e como constitui uma insídia típica e replicável em várias escalas e níveis.
Voltando ao tema da economia ontológica, que é um princípio tão vital para a Monadologia, para não falar, por óbvio, da Monadofilia, o autor volta ao seu ponto:
A linguagem já está pronta para o subjetivismo e para a fenomenologia modernas. Nesse sentido as acusações dos tradicionalistas procedem na matéria, embora falhem no mérito, porque afinal de contas ainda está para ser provado porque é necessário que exista uma ontologia determinada como diferente desta, ou de qualquer outra tão ou mais econômica, para que se mantenham firmes todos os princípios da experiência espiritual cristã de Deus, da vida e do mundo. É claro que para um certo fetichismo idolátrico a manutenção da qualificação de algumas entidades é vital, mas nós devemos nos perguntar a respeito do que é necessário para a integridade da vida espiritual diante de Deus somente, lembrando que tudo foi feito por Ele e para Ele.
Normalmente essas considerações metafísicas contribuem sobretudo no testemunho do dom da Presença, porém eventualmente encontramos alguma elaboração que ajuda no entendimento de outro dom, como o do Louvor na seguinte passagem:
A amabilidade da finalidade última contém todos os bens que compõem o campo completo da Apetição dos amantes. Não existe separação, composição, e muito menos relação de dependência, entre o Bem da última finalidade (que é o que classificamos de Escolhido, ou de condição de Coruscância da mônada criada, isto é, a vida paradisíaca), e quaisquer bens particulares como produtos de quaisquer causas separadas. Fica óbvio que a integridade desse sistema funciona com muito mais simplicidade e perfeição sob uma ontologia monádica, e é por isso que esse tipo de metafísica é preferida sobre outros. Esse é um ponto que eu talvez nunca tenha deixado tão claro quanto deveria: a escolha da ontologia monadofílica não é um capricho ou uma preferência primária, mas é uma decisão tomada com o desejo de reproduzir na descrição da realidade a simplicidade da finalidade última conforme o que é revelado pela Boa Notícia. Algumas filosofias impedem que essa simplicidade seja assumida por hipótese, mas o sistema scotiano já no Século XIII tinha a flexibilidade suficiente para isto, para não se mencionar o neoplatonismo plotiniano, e até certo ponto inclusive a filosofia de Agostinho. Em resumo, em Deus nenhum bem particular pode ser perdido, porque todos estes já estão Nele por definição, e já são experimentados como reflexos da sua Glória imediatamente, como sempre foram, pois não há Percepção senão do reflexo do Ser da Unidade.
Num outro ponto encontramos uma passagem que implica no problema da voluntas ordinata no âmbito da idéia do Voluntarismo de que Scot já foi acusado várias vezes:
Com clareza o nosso autor aponta que a realidade do imperfeito ou do mal requer que a vontade divina tenha deliberado sobre a possibilidade do menos perfeito por alguma razão excelente (que é a Bem-Aventurança dos salvos), caso contrário o mal seria realizado necessariamente, o que é contraditório com a essência divina. A liberdade para o mal contingente, por sua vez, produz o maior bem possível através do dispositivo da Eleuteriodiceia, já que os amantes não podem escolher o amado se não forem livres para não fazê-lo, daí a necessidade de uma experiência com algum grau de imperfeição, ou como dizemos, com algum grau de Mistura. Sidney Silveira afirma na sua introdução ao trabalho de Scot que o argumento do autor provaria a inviabilidade da hipótese do “melhor mundo possível” de Leibniz, mas a meu ver a sua leitura foi equivocada justamente desconsiderando esse bem mais perfeito ao qual a Vontade divina move todas as coisas. Se a liberdade é requerida para esse maior bem, então um mundo contingentemente imperfeito para a realização daquilo que Deus ordena para o maior bem futuro é o melhor bem possível na sua condição de meio para uma finalidade. E um cristão não deve encontrar neste mundo justamente um meio para um fim? Como meio, portanto, este pode ser o melhor mundo possível, e se não fosse o erro não seria do pecado da desobediência humana, mas da Providência divina, o que é absurdo.
Revalidando e consolidando o entendimento a respeito da Onisciência divina, o autor afirma:
Há um subsídio teológico escritural onde se afirma que Deus sempre conheceu as coisas antes de tê-las feito, e que depois de as ter feito as conhece também, ou de novo, isto é, como futuros contingentes contidos na dimensão temporal que são simultaneamente intuídos no plano da Eternidade. Os dois conteúdos são plenamente dominados, mas de modo diverso: a priori há o domínio das essências e dos acidentes possíveis no campo da Possibilidade Universal, e a posteriori há o domínio dos futuros contingentes atualizados no tempo.
Em outra passagem o autor trata de tema que já tivemos a oportunidade de estudar quando comentei a sua outra obra A infinitude de Deus, isto é, a total independência da causa primeira na sua ação criativa, e aqui com ênfase no detalhamento de todos os aspectos da Criação:
Isto é mais relevante ainda na consideração da suposta exclusividade do efeito de alguns acidentes, como a caracterização genética na geração dos corpos corruptíveis. Ora, qual é a fonte primária de todas as possibilidades de variações do acervo genético completo da espécie humana? Não é o mesmo Logos divino? Se as informações genéticas, inclusive nas suas inumeráveis possibilidades combinatórias, não estivessem presumidas de antemão no campo da Possibilidade Universal dominada pelo Intelecto divino, de onde suas potências seriam extraídas para que existisse alguma atualidade? Então o fato é o seguinte: a única coisa que depende da ação humana, ou de qualquer criatura, para que venha a ser de modo que sem essa ação não poderia ser de modo algum, é o erro. Isto por definição e sem exceções, caso contrário se destruiria a integridade da essência divina.
Por fim convém citar integralmente os números do 157 até o fim (XI Conclusão) que trata da Unidade do Primeiro Princípio, que corrige o erro de multiplicação típico de alguns sistemas gnósticos:
Que isso baste sempre para a memória dos cristãos que podem ser injustamente acusados de idólatras de uma pluralidade de deuses, quando muitas das melhores, senão mesmo as mais infalíveis, entre as afirmações da Unidade de Deus foram testemunhadas por cristãos em todos os tempos, e até de modo mais firme com a idéia da suficiência da Trindade, como já tivemos oportunidade de falar.
Particularmente é preciso rejeitar os erros gnósticos que foram importados de fontes diversas e que replicam todas as falsidades a respeito da suposta dependência entre uma pluralidade de princípios, como já vimos na história mais antiga. Isso inclusive desde Platão com a idéia de que o Uno dependeria da Díade para gerar o Múltiplo, etc., algo que só foi corrigido de certo modo com Plotino com a noção das processões hipostáticas, o que ainda é algo complexo demais em comparação com a simplicidade e elegância da reflexividade monádica, por exemplo.
Duns Scot se insere nessa história com uma contribuição honrosa, instrutiva e inspiradora.
Este livro foi feito a partir de um trecho da Lectura de Duns Scot, Livro I, Distinção 2, Parte 1, Questão 1: “Se entre os entes há algum infinito em ato“.
O autor, franciscano, intitulado “Doutor Sutil” pela própria Igreja Católica, que depois inclusive o beatificou, fará os contrapontos ao aristotelismo dominicano conhecido através dos trabalhos de expoentes como Alberto de Colônia e Tomás de Aquino, revalorizando noções caras aos estudiosos de sua ordem, como as aprendidas pela filosofia agostiniana. Duns Scot está, no âmbito da filosofia franciscana do Medievo, entre Boaventura (o “Doutor Seráfico”) e Guilherme de Ockham (o “Doutor Invencível”), e sua obra certamente faz uma ponte entre esses pontos de entrada e saída do período.
Entre essas noções encontramos a da limitação dos intelectos criados diante de verdades mais acessíveis (ou até exclusivamente) por um ato de Vontade, inclusive e principalmente pela iluminação da Fé. Por exemplo:
O conhecimento da verdade “per se nota” dos termos é obrigatória como hipótese, mas não como realidade. A proposição sobre o Ser divino, ou sobre a sua infinitude, não pode ser negada como possibilidade, pois não possui contradição interna; mas só pode ser assentida como verdadeira por um ato de Fé, ou por demonstração. Não nos esqueçamos, porém, como o próprio autor nos lembra, que mesmo na demonstração a premissa maior é presumida como evidente ainda que não o seja, por ser intuitiva em si mesma ou porque resultou como conclusão de outra demonstração. Ora, a maior desse tipo de proposição “Deus É” ou “Deus é infinito em ato” contém uma essência indemonstrável por definição, que é o próprio Ser divino. A evidência intuitiva disso é um produto da Fé, e não do raciocínio e da demonstração, porque pelo pensamento sempre se poderia considerar de outro modo, como ocorre aliás com a dúvida maliciosa dos sistemas luciferianos e adâmicos. Assim, mesmo que esse tipo de proposição possa ser demonstrada racionalmente, sem o recurso à evidência produzida pela Fé, o mesmo não pode ser dito da premissa maior do raciocínio, a não ser por hipótese. Sem a Fé, a psique pode afirmar que algum ser divino com tal essência poderia possuir o ser ou a infinitude por necessidade formal, mas não poderia assentir a isso para além do nível hipotético, ou seja, meramente de que isto seria possível. É a Fé que dá a intuição de que as coisas são assim. O mesmo se pode afirmar do argumento ontológico de Anselmo da Cantuária em seu Proslogion: sua “prova” serve como evidência para quem já tem a intuição gerada pela Fé a respeito da verdade da premissa maior do argumento. Se não fosse assim, qual seria o mérito humano de aceitação da iluminação divina? E qual seria, mais ainda, o mérito do Espírito Santo de conceder o dom sobrenatural de conhecê-Lo? E a própria pregação não seria nem produzida e nem aceita por força da vontade humana, mas como um processo pedagógico como o das ciências em geral.
As luzes naturais, que também são um dom de Deus por sinal, não podem violar a sacralidade da liberdade humana. Caso contrário o próprio Pecado Original e a Queda de Adão não seriam possíveis, pois o primeiro homem possuía essas luzes naturais do modo mais eminente e perfeito possível, e nem por isso ele resistiu à malícia de desconfiar da natureza divina. Ora, nem Lúcifer resistiu. Então há um ato de vontade que move o intelecto para aceitar intuições de verdades que superam as capacidades racionais naturais de qualquer criatura. As criaturas são livres para escolher, e todos são livres para atualizar sua realidade espiritual diante de Deus, e para tomar suas decisões com relação ao seu destino eterno. Deus fez assim. Duns Scot foi um filósofo cristão que quis mostrar isso, mesmo que isso custasse, por exemplo, a perda de um poder dogmático e magisterial totalitário como o da Igreja medieval. E é claro que os totalitaristas teocráticos até hoje não o perdoam por isso, chamando-o de “voluntarista”, etc. Se condenam tanto um defensor da liberdade humana, porque não dão mais um passo e condenam também o Criador dela? Sejam íntegros e coerentes. Eu amo a liberdade porque amo o seu inventor, e amo tudo o que Ele faz, porque tudo que Ele cria é bom. Duns Scot também amava. Nós não temos que prestar contas para tiranos, humanistas, ou idólatras.
A Igreja Católica perdeu autoridade porque perdeu carisma e legitimidade moral, e não porque alguns filósofos franciscanos inventaram doutrinas como o Voluntarismo ou o Nominalismo. É tão mais fácil acusar do que assumir erros. Se não me engano Jesus ensinou algo sobre isso, não foi?
O que tradicionalistas e conservadores católicos deveriam observar é que o título de Mater et Magistra não é um privilégio. É um encargo. Quem mais quiser se exaltar mais deve servir, e não ser servido. Ser sal da terra e luz do mundo não é um poder mágico concedido por participação em rituais religiosos. É um dever moral de dar o testemunho por atos. Por séculos e mais séculos A Coisa se envolveu com corrupção, tirania e crueldades, e a culpa do declínio católico é de alguns filósofos franciscanos? Façam-me o favor…
Nos números 45 e 48 encontramos distinções importantes entre causas essenciais e acidentais que nos ajudam a entender porque Jesus afirma “a ninguém na terra chameis de pai” (Mt 23:9), do ponto de vista da filosofia cristã:
Em sua nota, Sidney Silveira diz: “Um filho insere-se numa série causal acidentalmente ordenada. Para que ele viva não é necessário, por exemplo, que os seus tataravós –causas distantes do ser do filho, na série– estejam vivos“. Aí pergunto eu: e os pais carnais diretos, são necessários vivos por serem causas mais próximas? O pai só é necessário até a fecundação, e a mãe até o parto. E isso em se tratando apenas da causalidade acidental, é claro. Sem a causa primeira, porém, o filho não poderia existir jamais, e nem subsistir de nenhum modo, nem por nenhuma duração. Quem, portanto, é pai?
Já falamos disso. Abraão é pai de Isaac? Digamos que seja, como é o costume que se diga. Mas não é pai de Sarah. Então como podemos dizer que Abraão é pai? Ele é e não é ao mesmo tempo. É por acidente, numa circunstância. E apenas por um tempo, porque nem é mais: Abraão já morreu, então nem dizemos que Abraão é pai de Isaac, apenas que ele foi isso e já não é mais. Mas Deus é pai de Isaac, como sempre foi e sempre será, tanto quanto foi, é e será sempre pai de Sarah, e do próprio Abraão, etc. Ou seja, Deus é Pai de modo essencial e eterno. E não se pode dizer que Deus dependeu de Abraão para ser pai de Isaac, como se existisse dependência, porque um Deus que depende da criatura em qualquer medida ou sentido não pode ser Deus de modo absoluto. Foi isso que Jesus ensinou quando disse que só Deus é Pai. Foi o Pecado Original que introduziu confusão e idolatria na história humana. Mas o Filho de Deus veio nos libertar de todas essas trevas, para que triunfe a Glória do único e legítimo Criador para sempre.
Continuando no número 48, Scot afirma:
É óbvio que os pais carnais não podem produzir a Mônada, ou a Alma. A Substância Simples não pode ser gerada nem corrompida, pois não possui partes. Só pode ser criada e aniquilada por um ato divino. O que as causas acidentais produzem é a experiência da interface persistente da Percepção, isto é, um corpo, para uma mônada criada por Deus, e o fazem imperfeitamente desde a sua condição, gerando o que é corrompível e perecível, destinado à morte, enquanto a criação divina é perfeita e destinada à imortalidade.
Nestes próximos parágrafos encontramos mais noções interessantes sobre o problema da relação entre as causas:
Diga-se do exposto o seguinte: que a causa primeira perfeita e infinita não depende de nenhuma causa segunda, senão para a produção daquilo que é imperfeito, mas de modo não essencial, só pelo acidente –e só do nosso ponto de vista– da volição da causa imperfeita. A Deus não pode faltar o que lhe permita criar qualquer ser do nada e de modo perfeito. A criação de imperfeitos depende de causas segundas, como a vontade de Adão e Eva, mas Deus não dependia disso para qualquer finalidade, inclusive para a criação de um ser livre para errar, porque o Limite não é um defeito do ser criado, como crêem os gnósticos, mas condição da sua forma substancial. Só pelo acidente da vontade imperfeita de subcriadores contingentes existe a criação de seres imperfeitos, como se observa com o Pecado Original. Mas até último ser criado sob a condição da imperfeição ainda é criado por Deus de modo eminente e primário, ou não teria substância verdadeira. Daí a virtude criativa de Deus alcançar toda a ordem de seres criados por quantas causas secundárias existam, por possuir virtude infinita.
O livro aborda apenas uma parte bem limitada da obra de Scot, de modo que não há mais o que apreciar para nosso proveito além do que foi visto.
Mostra-se o suficiente assim, porém, para percebermos que nem o aristotelismo e nem o tomismo foram filosofias definitivas para o Século XIII, nem para qualquer outro período imediatamente posterior. Foi só no tempo moderno, quando os efeitos mais longos da separação de teologia e filosofia foram sentidos, que a Igreja, ou uma parte dela, resolveu retroagir seu entendimento e revalorizar essas doutrinas vencidas à época. Mas pelos frutos históricos sabemos o que teve mais sucesso de fato, e os motivos, e as consequências, etc.
Finalizamos a avaliação das obras do Estagirita por aquela que deve ser a mais importante de todas. Usamos os serviços de três tradutores no estudo de Aristóteles: Edson Bini para o Órganon, a Poética, a Retórica, o Da Alma, a Ética a Nicômaco e a Ética a Eudemo; Nestor Silveira Chaves para A Política; e agora Giovanni Reale para a leitura da Metafísica.
O objeto deste estudo é a ciência do Ser enquanto tal, no seu sentido mais universal. O autor inicia sua explicação afirmando que ter um conhecimento qualquer é algo menos que ter ciência, pois conhecer as coisas é saber o que é particular, enquanto que ter ciência é saber as causas universais dos conhecimentos particulares. Neste ponto, se Aristóteles parasse por aqui, ele poderia ser apenas mais um pensador engajado no projeto da gnose adâmica. Mas ele vai além. Afirma que entre as ciências das causas, existem algumas que são superiores: aquelas ligadas à essência e à finalidade das coisas, em vez do saber sobre o de que ou o de como as coisas são feitas. Traduzindo em termos aristotélicos, o conhecimento das causas formais e finais é superior ao conhecimento das causas materiais e eficientes. Por quê? Porque essas ciências são mais terminais por si mesmas, isto é, mais adequadas para a atividade intelectual de homens livres que conhecem os seres de modo mais livre. O objeto dessas ciências é mais puro e simples, e portanto mais ligado aos primeiros princípios, que são as categorias mais universais do saber. Ao distinguir entre ciências superiores e subordinadas, e identificar entre estas aquelas destinadas ao atendimento das necessidades e dos desejos práticos do ser humano (isto é, ao problema da Maldição e do Poder), o filósofo já busca um grau de liberdade que supera a escravidão da Legitimação da Mistura, isto é, a ideologia da Religião de Adão.
Imagine-se uma cadeira onde sentamos para obter repouso e descanso, seja para contemplar uma paisagem, tomar sol, assistir um espetáculo, etc. As suas causas material e eficiente, ou seja, a madeira, o tecido, e a cola ou os parafusos de que é feita, ou ainda o processo de fabricação da mesma, seja artesanalmente ou por manufatura industrial, nos dão um conhecimento sobre o ser da cadeira, mas este tipo de conhecimento é inferior ao das causas formal e final, já que mais me importa saber o que é uma cadeira e para o que ela serve, de modo que eu possa admirá-la na sua bondade e fazer uso dela para sua finalidade, do que saber de quê ou como ela foi produzida. Sem a forma e a finalidade nem existiria razão para a reunião dos materiais necessários à produção da cadeira, e nem a atuação do processo de criação da mesma. Por outro lado, conhecendo a forma da cadeira e a sua finalidade, posso fazer bom uso da mesma ainda que jamais venha a tomar conhecimento da origem dos materiais que a compõem, ou do seu processo produtivo. Tudo o que é ligado à forma substancial e à finalidade é mais puro e simples, pois é mais ligado ao Bem. Os outros conhecimentos são inferiores e misturados, porque dependem de forma e finalidade para se justificar. O bem da cadeira é que ela seja possível tal como sua essência lhe determina, e que sirva ao seu propósito da melhor maneira, enquanto que os materiais de produção e o ato de produzir em si são bens relativos aos bens formais e finais. Isso é assim de tal maneira que se fosse possível a criação de uma cadeira de acordo com a forma e a finalidade, para o usuário da mesma isto seria perfeito ainda que os materiais componentes e o processo produtivo fossem gerados instantaneamente na condição do produto final, já que o bem para esse usuário não está no conhecimento e manejo dos materiais, e nem na produção da cadeira, mas no reconhecimento da forma e no uso prático da cadeira. Outra coisa poderia ser dita de um marceneiro por hobby que extraísse prazer justamente do manejo dos materiais e da arte da fabricação? Nem tanto assim, porque para este o que era meio se tornou finalidade, de modo que nunca se busca nada acima do próprio bem, mas os bens podem variar de acordo com as apetições particulares. Isto é, neste segundo caso a causa formal é o próprio artesanato enquanto atividade boa por si, e a causa final é a ocupação do artesão numa atividade que lhe seja satisfatória, e essas duas causas continuariam superiores às causas material e eficiente da atividade. O que interessa é entender a diferença entre a ciência livre e a escrava, a diferença entre a ciência que ama o bem da ciência que ama o poder. Aquele que conhece o de que a cadeira é feita, ou como ela é produzida, quando possui este conhecimento como meio para a produção da mesma para causar o bem a terceiros, conhece essas causas como escravo da Maldição ou do Poder (ou porque precisa se sustentar, ou porque quer ganhar algum lucro como meio de poder sobre terceiros), enquanto quem conhece a essência da cadeira e a sua finalidade possui uma ciência livre destinada ao bem. O mesmo diferencia o artesão por hobby do operário que trabalha por sustento ou lucro.
Aristóteles afirma que as ciências superiores buscam as causas supremas, e são, assim, atividades de homens livres. E não há causa maior do que a mais universal possível, que explique o ser de todas as coisas. Totalmente fiel ao legado platônico, o autor afirmará que a finalidade de qualquer ser é o bem, e que, sendo assim, o fim geral de todas as coisas é o sumo bem (982b5). Que exista uma causa unificada que explique universalmente o ser de todas as coisas é o reconhecimento que o autor presta aos méritos do idealismo platônico, e é o que livra definitivamente o Estagirita da acusação de ser um filósofo naturalista, ou empirista, etc. Já tivemos ocasião de afirmar isso antes, e aqui se consolida esse entendimento.
Na distinção entre o que é a sabedoria mais livre e próxima ao bem divino, que do ponto de vista filosófico é justamente a Metafísica, e todas as demais formas de saber humano dirigido a objetos inferiores, Aristóteles produz a sua sentença eterna que distingue a atividade intelectual livre da escravidão: “Todas as outras ciências serão mais necessárias do que esta, mas nenhuma lhe será superior” (983a10).
Com muita honestidade e humildade o autor reconhece que trabalha na esteira de uma sabedoria que os gregos já vinham produzido desde antes:
Entre os destaques do período pré-socrático na investigação do primeiro princípio, o autor destaca com razão Anaxágoras, Pitágoras (ou “os pitagóricos”), e Parmênides. Antes de Platão estes foram os melhores filósofos que encontravam explicações no Logos, no Número (especialmente no Um) e no Ser. Tudo isso fluiu para a descoberta do Uno como uma Inteligência suprema, mais ou menos identificado depois por Platão como Sumo-Bem.
Na sua crítica mais detalhada do platonismo Aristóteles com razão condena o procedimento de multiplicação dos seres: não bastasse o problema do Múltiplo tal como percebido, ainda por cima se fará toda uma infraestrutura formal entre o Uno e o Múltiplo, e com isso supostamente vamos entender melhor a realidade? O que ele ainda não diz, porém, é que o idealismo platônico era necessário para a descoberta da sua causa primeira. E, mais ainda, para o futuro recurso da analogia dos entes. A complicação do Mundo das Idéias foi um aborrecimento necessário para o aproveitamento dessas outras possibilidades no progresso da filosofia futura. Mas era necessário que Aristóteles se destacasse dos platônicos de estrita observância, então compreendemos a sua posição. Cada nova geração deve manter o que há de melhor na filosofia anterior, e prosseguir com as contribuições de que for capaz. Aristóteles definitivamente fez isso e muito bem.
Com uma maturidade exemplar o nosso filósofo honra a humildade de Sócrates –que lhe foi bem transmitida pelo mestre, e nisto deve haver um mérito platônico–, reconhecendo que a relação do homem com a verdade é, ao mesmo tempo, sempre imperfeita e inescapável, e que essa deficiência tem que ter algo a ver com a nossa forma de ser, e não com uma característica da verdade em si:
Depois outros filósofos abordarão esse problema de maneiras diferentes e com resultados variados. Mário Ferreira dos Santos, por exemplo, no seu Filosofia da Crise, tratou da questão, mas a meu ver de modo deficiente, com excesso de drama, ou tragédia, como se o gnosticismo luciferino fosse um problema de defeito do ser, e não uma questão de orgulho. Coisa igual fez Olavo de Carvalho com a sua noção do “Trauma da Emergência da Razão“, que é mais ou menos a mesma questão reformulada em outros termos. Em suma: ao homem o conhecimento pleno nunca é viável, mas nunca é impossível, e justamente quanto mais realiza a sua forma de ser racional, mais o ser humano deve ser humilde de reconhecer os seus limites. Assim que se explica a queda de Lúcifer: o maior dos intelectos criados precisava da maior virtude da Humildade para resistir à tentação da negação de seu próprio limite.
Por outro lado, o conhecimento do que é contingente e relativo sempre será inferior ao conhecimento do que é transcendente e absoluto, como o que é temporal é inferior ao que é eterno, e o transitório ao que é permanente:
Mais ainda, quando se conhece o ser de que outros seres dependem, conhece-se mais o próprio ser dependente nessa relação. E como a série das causas precisa ter um princípio para que ela seja atual e não mera potência, do fato de que exista um ser qualquer se pode deduzir o ser da causa primeira que lhe gerou por meio de qualquer processo de atuação de causas intermediárias:
O nosso autor estabelece assim a necessidade do primeiro princípio. Mas este se identifica com aquelas noções primordiais das filosofias precedentes: o Ser, o Um, e o Bem. E finalmente com o Estagirita o primeiro princípio é qualificado sob essa categoria indestrutível da filosofia aristotélica, o da Substância.
Diz ele: “Na medida em que é ciência soberana e mais digna entre todas para dirigir, na medida em que a ela todas as outras ciências, como servas, justamente não podem replicar, a ciência do fim e do bem parece exigir a denominação de sapiência (todas as coisas, com efeito, existem em função do fim). Por sua vez, tendo sido a sapiência definida como ciência das causas primeiras e do que é maximamente cognoscível, esta parece ser a ciência da substância“.
Ora, o que é a Substância senão o Uno de onde se origina todo o Múltiplo, e o que é isto senão a Mônada? A Metafísica, portanto, enquanto ciência do Ser que é a Substância, equivale à Monadologia.
Que seja necessário o permanente para que haja o transitório faz Aristóteles afirmar outra das máximas consagradas em sua Metafísica: “Se não existisse nada de eterno, também não poderia existir o devir“. O princípio de identidade que afirma qualquer verdade a respeito de qualquer coisa que veio ao ser ou que deixou de ser fala justamente sobre o ser que permanece ele mesmo, e isto deve transcender totalmente a realidade dos contingentes. Afinal, se o intelecto reconhece e afirma algo sobre o devir, sua proposição identifica principalmente o que é eterno no contingente. Se existe um objeto para a intelecção, esse é o ser que se preserva e em face do qual é percebido o próprio devir. Imaginem que salto, em termos de esclarecimento, significa verificar essa necessidade metafísica por trás daquela abrumada teoria do Mundo das Idéias de Platão. A questão fica mais clara do que nunca, ainda que Aristóteles não possua todas as respostas. Sobretudo a relação Uno-Múltiplo ainda lhe desafia. Vale a pena acompanharmos o raciocínio como um todo:
Temos pistas para as respostas que o filósofo deseja. O particular existe no universal como manifestação, sendo o universal justamente o Intelecto, e o particular o objeto parcial de sua Percepção (exceto para a Mônada Incriada, onde a Percepção é total pela potência do Intelecto infinito). A forma de todos os homens é uma só porque a Substância é idêntica pela forma, embora para precisar este ponto fosse necessários esclarecimentos como o do Princípio da Identidade dos Indiscerníveis, de Leibniz. Como ocorre que o mesmo é o outro? Ocorre pela total analogia, porque a Substância Simples, que já identificamos como a Mônada, existe singularmente e percebe apenas a si própria. O preço da simplicidade da ontologia monádica é o descarte, porém, do composto e da matéria, como meras manifestações do ser no conteúdo da percepção. Não tem jeito: se qualquer coisa além da Substância Simples possuir ousia, as aporias são inevitáveis e insolúveis. Porém, como pode o Múltiplo ser explicado, se só existe o Um, isto é, a Mônada, ou Singularidade? Somente como conteúdo intelectual da Percepção, de modo que o Ser é eminentemente cognitivo e tudo o que chamamos de Multiplicidade nas suas relações de matéria e de compostos são produzidos pela reflexividade monádica.
Não se pense, porém, que o nosso filósofo não consegue se aprofundar tanto quanto queira no problema e tirar de suas perguntas todos os poderosos insights que seriam necessários para as melhores filosofias futuras. Exemplo:
Já falamos que a comparação do Uno com a unidade na matemática, ou com o ponto na geometria, pode favorecer esse entendimento de como o ser, por assim dizer, se “reproduza” na sua própria forma essencial, embora essa forma não possua partes e também não possa constituir partes de outros seres justamente por não ter extensão. Como o número natural Um pode formar o Dois, se ele mesmo não tem uma quantidade em si que possa agregar o resultado do Dois (você pode somar frações que são derivados da unidade, mas não pode desfazer a unidade de modo natural), e pior ainda, como o Dois pode ser ele mesmo e, portanto, ter na sua essência a forma do Um, porque é igual a si próprio, mas ao mesmo tempo não ser o Um, mas uma espécie de “outro” Um? Ou, na geometria, como o ponto que não tem extensão pode formar linhas e superfícies que possuam extensão? Tudo isso evidencia o Princípio da Analogia, que é um conceito fundamental do Idealismo Transcendental. Porque nada disso pode ser negado: nem que o Um não seja substância, e nem que existam grandezas e extensões que são unidades por si mesmas, embora sejam diferentes entre si. Tudo isso é evidenciado por intuições e pela observação da realidade. A difícil ponte entre esses dois mundos não é o Mundo das Idéias de Platão. É a Analogia, e então a reflexividade monádica. Aristóteles, ainda que não tivesse o domínio da solução, já progrediu muito no avanço da investigação ao estabelecer critérios mais claros e decisivos do que os que tinham sido estipulados pelo platonismo.
É óbvio que as contribuições dos pré-socráticos foram recebidas e processadas pela filosofia aristotélica que pôde então entregar ao futuro um entendimento mais minucioso e profundo do problema da Relação Uno-Múltiplo. Especialmente a necessidade de que a substância seja simples e livre de composição e decomposição, e dos processos naturais de geração e corrupção. Exemplo:
Independentemente de Plotino e das contribuições do neoplatonismo, Leibniz certamente leu e foi profundamente impactado pela leitura de passagens como esta. Existe, enfim, uma certa tradição de filósofos ligados à investigação de uma metafísica monadológica, e Aristóteles com certeza faz parte dela.
Pensem nesta afirmação:
Inteligente como poucos, é evidente que a Aristóteles esse padrão não escaparia. Os filósofos vêm definindo o problema com termos e conceitos diferentes, ou analisando a questão sob aspectos diversos conforme suas preferências, mas por trás da variedade é possível encontrar o padrão que pode ser identificado nessa “redução” –usando a expressão do próprio autor– a um problema essencial que é o da Relação Uno-Múltiplo.
De certo ponto em diante o autor trabalhará em detalhe com as definições dos termos empregados na investigação do tema de sua Metafísica, o que em grande parte podemos deixar de lado e deixar mencionado apenas para a consulta daqueles que desejarem se aprofundar na questão técnica. O que tem valor diferenciado, porém, é o trabalho com a categoria da Substância.
Como o autor não pode aceitar que somente a Substância Simples tenha ser no sentido pleno, ele deve necessariamente se gastar em diversas considerações sobre as respectivas supostas substancialidades da forma, da matéria, e do sínolo (composto). E no fim das contas ele assume que certos problemas são insolúveis. Não que ele não tivesse os meios de resolução. Raramente esse é o problema dos bons filósofos. Mas talvez faltasse a vontade de adotar uma solução mais simples que fosse menos gnóstica e naturalista.
As pistas para a solução são dadas pelo próprio autor. Em 1036a, por exemplo, ele afirma: “a matéria por si é incognoscível“. Ora, como aquilo que depende de uma essência formal para ser conhecido pode receber o status de substância? O ser que é a substância primária não deveria subsistir sem depender de outro ser? Ele sabe que sim. O problema é que na Percepção nós conhecemos a qualidade daquilo de que as coisas são feitas, e no nosso pensamento nós conhecemos essências abstraídas da concretude por lhes faltar algo, e este algo deve ser uma coisa como a matéria. Nada mais natural do que afirmar que essa qualidade do substrato da Percepção é aquilo que falta para que as essências abstraídas ganhem concretude e então chamar isso de “matéria” (hyle). Não é difícil perceber que o que chamamos de matéria é uma abstração que sempre poderia ser predicada como qualidade da verdadeira substância. O conceito filosófico de matéria é uma abstração pelo menos desde a filosofia aristotélica, como se pode observar, isto apenas para não se atribuir o puro predicamento desde as Formas (ou Idéias), algo que tinha muita importância no sistema do Estagirita. A matéria é um conceito funcional e intercambiável com o de potência (dynamis) na própria concepção do nosso filósofo. O que é mesmo necessário, porém, é que algo distinto do pensamento humano possa tomar a forma das essências que podem ser separadas pelo intelecto. Se a Luz divina que ilumina o intelecto humano realizar essa operação, ela é então a verdadeira matéria da Percepção. E essa luz é transcendente à toda Gnose da criatura. A ciência da Física já atingiu a evidência suficiente para confirmar a paradoxal imaterialidade da tal “matéria”, mas isso não impede que o ser humano continue desejando dominar a Luz com a Gnose. Nisso não encontramos nenhuma novidade desde a história daqueles traidores, Lúcifer e Adão. Que particularmente alguns cristãos ainda aceitem ou até legitimem essa Pretensão, isto sim é algo espantoso.
Nosso autor está o tempo todo esbarrando na verdade inescapável de que apenas a Unidade pode ser Substância com plenitude. Ele não foi o primeiro e não será o último.
Por exemplo, em 1036b lemos:
Ou em 1039a lemos:
O problema é sempre o mesmo. E a expressão “problema dos universais” deveria ser reconsiderada pelos historiadores da Filosofia: a expressão mais cabível é “problema da Relação Uno-Múltiplo”, pois a questão dos universais só é difícil quando de pretende atribuir a substancialidade da Unidade ao que é Múltiplo, então essa é a forma mais essencial do problema. O que persiste, à quem negar a Monadologia (ou pelo menos alguma Fenomenologia baseada na Crítica kantiana), é a incompatibilidade entre a integridade do Uno e a suposta ousia do Múltiplo tal como se infere nas impressões da Percepção. E a solução mais perfeita que consigo pensar é a da epistemologia da reflexividade monádica. Só a Mônada possui ser, e todo conhecimento é a Percepção do seu reflexo como Multiplicidade, de modo total e simultâneo para a Mônada Incriada, e de modo parcial e sucessivo para as mônadas criadas. Todas as dificuldades nesta apreensão derivam do hábito mental de se atribuir substancialidade ao que não convém, o que por sua vez resulta da influência do espírito de Idolatria que é, por fim, gerado desde o espírito de Presunção típico da Gnose luciferiana e adâmica (conhecer o Ser ou o Bem sem Deus, ou ter o domínio de Deus sem ser Deus).
Apesar de muito insistir no seu modo complexo de considerar o Ser –e tendo feito isso, lembremos, para escapar de outras tantas complexidades do idealismo platônico–, nosso filósofo não deixa de contribuir com noções valiosas, como esta em 1050b: “É evidente, portanto, que a substância e a forma são ato. E, com base nesse raciocínio, é evidente que o ato é anterior à potência pela substância. Também pelo tempo, como dissemos, há sempre um ato anterior a outro, até que se alcance o Movente primeiro eterno.” É por esse tipo de contribuição, com clareza e racionalidade, e sem nenhuma transigência com o idealismo precedente, que o pensamento metafísico pôde não só surgir nessa época da humanidade, mas se consolidar para sempre.
Adiante lemos uma passagem que reforça o que já foi dito sobre a necessidade do eterno para a ocorrência do temporal, mas com destaque para um aspecto diverso que vale a pena ser revisto:
Essa argumentação prova que o Estagirita antecipou as considerações do argumento ontológico que viria no Proslogion de Anselmo da Cantuária, e da identidade divina de essência e existência no O ente e a essência, de Tomás de Aquino. Pensando bem, esta é uma filosofia muito simples, como aliás toda boa metafísica costuma ser. E para que as futuras gerações de pensadores se entendessem dispensados de considerar a necessidade dessas evidências e relações, seria necessário mudar de assunto muitas vezes, o que é sempre mais eficiente do que querer realmente refutar a filosofia metafísica no seu próprio campo.
No livro XI o autor recapitula o problema de sua Metafísica como um todo, revisando problema por problema. Independente de seu embate com os outros platônicos, na sua revisão da Décima aporia, em 1060a, Aristóteles declara um dos grandes estranhamentos que exigem uma reflexão desse grau:
Reconhecida a necessidade dos primeiros princípios do Um e do Ser, e a sua eternidade, como é possível que deles derivem coisas não-eternas, isto é, submetidas ao devir, à entropia, corruptíveis e perecíveis? A sensação informa o Intelecto do temporal, mas a razão o informa do eterno. É o mesmo problema dos pré-socráticos, e dos platônicos, etc., em suma, o problema da Relação entre o Um e o Múltiplo, como já vimos.
Complementando o que já foi observado antes a respeito da prioridade da filosofia metafísica em relação às outras ciências –do ponto de vista da Sabedoria, e não da utilidade–, nosso autor afirma: “A relação da filosofia com a física é idêntica à relação que tem com a matemática. De fato, a física estuda as propriedades e os princípios dos seres enquanto estão em movimento e não enquanto seres, ao passo que –como dissemos– a filosofia primeira ocupa-se desses objetos na medida em que eles são seres e não enquanto são outra coisa. Por isso, tanto a física quanto a matemática devem ser consideradas só como partes da sapiência (1061b)”. Observe-se sempre que as perguntas sobre as relações de causas de composição e de decomposição, ou sobre as propriedades acidentais, etc., tudo isso é filosoficamente secundário em relação às perguntas sobre a essência dos seres, e sobre as suas finalidades, como já vimos antes. Mesmo do ponto de vista da utilidade, porém, é possível questionar a prioridade das causas materiais e eficientes, porque a sabedoria prática (phronesis), como todas as outras virtudes, depende também da Sabedoria como subsídio prévio.
Sobre o suposto problema do relativismo total e do tal paradigma moderno da “pós-verdade”, que é uma falsa questão na qual algumas mentes se envolvem tolamente, isso tudo já foi refutado sumariamente pela boa filosofia antiga, como temos nesta obra um testemunho em 1062b: “Enfim, se não é possível afirmar nada de verdadeiro, então também esta afirmação será falsa, isto é, será falso dizer que não existe nenhuma afirmação verdadeira. Se, ao contrário, existe uma afirmação verdadeira, então poder-se-á refutar a doutrina dos que levantam objeções desse tipo e destroem inteiramente a possibilidade do raciocínio“. Isso deve bastar para se lidar com o desconstrucionismo niilista de algumas ideologias contemporâneas, sem prejuízo de um bom ceticismo que critica com razão todo tipo de erro. De fato, se não existisse o exagero da arbitrariedade de tantos dogmatismos, não haveria essa reação irracional na outra direção. Uma sociedade sadia deveria ter uma boa dosagem de ordem e de ceticismo.
Ainda sobre o problema da matéria como abstração necessária para a manifestação do Múltiplo, como pura potência diante do puro ato, ou ainda como o Zero para o Um, em 1069b fica claro que este é o conceito de matéria na filosofia aristotélica, ao menos no que compete à Metafísica, independentemente da Física:
Essa é a “matéria-prima” da Escolástica, em contraste com o que costumamos entender como matéria pela experiência da sensação, que é uma matéria secundária, ou “assinalada pela quantidade”. Essa noção de matéria-prima no sentido metafísico é totalmente compatível com a da Possibilidade Universal, a potência que a Mônada possui em seu reflexo e que atualiza por ato de seu Intelecto. Assim se pode interpretar simbolicamente as águas primordiais e a terra vazia do Gênesis como a mônada de Adão, por exemplo. Por sinal, o nome de Adão tem como raiz etimológica a própria idéia de terra, e no mito ele próprio é tirado do barro, como a Percepção de seu corpo sendo um reflexo da sua potência monádica. Por outro lado o espírito (o ar) pairava sobre as águas, e tudo foi criado –isto é, atualizado– pela ação da Luz divina (o foto), etc. Cada elemento primordial no mito da Criação pode ser simbolicamente interpretado como uma representação das propriedades e atuações da Mônada.
Neste próximo segmento citado encontraremos uma das passagens mais citadas da Metafísica de Aristóteles pela raridade de sua expressão, quando o filósofo parece sair um pouco de sua função racional e entrar num testemunho de louvor do tipo religioso, mas isto é apenas algo muito apropriado porque um bom raciocínio metafísico deveria sempre evidenciar justamente as coisas que compõem o núcleo da experiência espiritual:
A única coisa que falta para o filósofo é a Boa Notícia que lhe relacionasse com a eternidade de Deus: o próprio Filho de Deus se fazendo homem para chamar o homem Aristóteles a ser filho adotivo de Deus, e herdeiro da eterna felicidade divina. É necessário, porém, prestar uma homenagem honrosa a Platão, que foi o mestre do Estagirita e que o colocou nessa pista de identificar o primeiro princípio, ou o Primeiro Motor Imóvel, com o Sumo-Bem, ainda que o discípulo tenha seus muitos (e razoáveis) problemas e disputas com os platônicos.
Além do Logos, do Sumo-Bem, e do Primeiro Motor Imóvel, outro conceito paradigmático com que os antigos filósofos gregos nos agraciaram ao tratar da essência da Substância Simples, que hoje podemos chamar de Mônada, há também pela pena de Aristóteles o testemunho a respeito da Visão da Visão, ou Pensamento do Pensamento, noesis noeseos:
Qual é a especialidade dessa noção no entendimento do Ser? É o da prioridade do Ato intelectual sobre os objetos da Percepção, de modo que quando afirmamos que há uma reflexividade monádica na criatura, isto deriva da mesma atividade presente de modo mais perfeito e total na própria Mônada Incriada, e é a assim que entendemos a divindade como Visão da Visão, e particularmente na teologia cristã é assim que compreendemos algo do Mistério da Trindade, etc. As contribuições aristotélicas nesse sentido não podem ser ignoradas.
Por boa parte de sua investigação daqui em diante o autor tratará dos problemas gerados pelas filosofias pitagórica e platônica, o que para nós hoje em grande parte pode ser cansativo e parecer desnecessário, pela simples razão de que a vasta maioria de nós não participa, e nem participou, de nenhuma dessas escolas, mas era preciso que Aristóteles, que participava dessa cultura, denunciasse as aporias e através disso sugerisse as suas soluções. Sobretudo na sua disputa com o problema da multiplicação dos entes pela Doutrina das Idéias, seu argumento é excelente, embora não possamos dizer que seja infalível sem conferir, por exemplo, a possibilidade da realidade de uma miríade de substâncias separadas, como se poderia supor, por exemplo, em algumas teologias.
No Livro XIV o autor dá um testemunho contra o dualismo gnóstico que acusa a matéria, ou o Múltiplo, de ser o mal:
O erro que o Estagirita acusa é o de estipular uma oposição entre o Um e o Múltiplo, embora ele também tenha suas dificuldades com o Um como princípio (justamente por considerá-lo como ente matemático e propriedade da substância, e não como conceito ontológico), e nisto tem toda a razão. Não que o Bem não seja um só, mas se o Múltiplo manifesta o Um, como ele seria mau? A relação não é de oposição, mas de reflexividade, especialmente na consideração dos intelectos limitados, já que para a Mônada Incriada o que nós chamamos de Múltiplo é a visão plena que o Uno tem de si mesmo eternamente.
De modo geral, para finalizar, a Metafísica é filosoficamente um bom estudo, e historicamente um verdadeiro monumento, mas para os nossos usos talvez não seja um documento muito recomendável por duas razões: (1) o excesso de atenção aos problemas do pitagorismo e do platonismo, que era uma questão importante para Aristóteles, mas para nós deixou de ser faz tempo; e (2) pelo peso de um certo naturalismo que ainda arrastou o filósofo a considerar a matéria de um modo menos ótimo do que seria se esta fosse apenas um elemento puramente abstrato para a concatenação dessa filosofia. Seria difícil evitar o primeiro problema, porque ele foi determinado pela circunstância imediata do autor, mas o segundo é mais dispensável, porque foi uma escolha arbitrária dele a escolha pelo estudo das ciências da natureza e de sua filosofia natural, com sua Física, e então a tentativa de fazer uma ponte entre esse universo de investigações e o da Metafísica, algo que seria mais fácil –e que resultaria numa solução muito mais elegante– se essa ponte tivesse a simplicidade e a pureza da Analogia. Esse conceito, no entanto, seria um patamar filosófico atingido apenas pelos Escolásticos na Idade Média.